27.12.05

"O dia em que matei a lua"

Num dia cinza, fim de tarde, vi uma mulher na rua: pele de cabra empalhada, juba arrasada de medusa, quanto às vestes, semi-nua, olhos de mil coelhos sentados na face obscura da lua. Marcas vermelhas na pele marcada por ausências inoportunas, triste esquecido presente passado, futuro perdido na falta de tato para uma entrega compreensiva, porque a compreensão exige sangue, exige vida, exige mortes pequenas mal-vividas. Mas o vento do tempo desdentou o que um dia foi chance.

Com quanta mágoa se compõe um trago? Mais duas cachaças pernambucanas, ela pede, Engenho do Meio, vômito branco, glândulas na base do pescoço, hipertireoidismo latente, as costas ardem, feridas no céu da boca. Me pega pelo braço, piscando assopra: “sou viciada, preciso de uns tranqüilizantes, você me arruma o dinheiro?”. Dou a ela um real, tudo que tenho para loucura alheia, porque minha vergonha custa caro demais para um mendigo mais gordo do que eu. Ela aceita e me fala do mar da praia do diabo e de quanto andar sem rastro se lhe significa quando ela sempre teve a chance de fazer aquilo que pouco podia transmitir sem virar os olhos por causa da abstinência daquilo que moleques pálidos da minha idade são incapazes de compreender sem um sorriso abobalhado cheio de bico num novo e velho úmido enterrado trago de qualquer coisa que seja aquilo que não é o que você, rapaz razoavelmente educado, é capaz de pensar sem levar a mão à boca numa atitude exageradamente sincera, porque mentirosa, já que toda sinceridade inquestionável esconde uma velha dúvida eterna em meio a pedras e girassóis fosforescentes.

Sei que era gorda e feia, como eu sempre imaginei a mim mesmo, e no fim acabava imaginando os mais bonitos da mesma forma, porque meu mundo era cinza, bonito como as cinzas de uma civilização passageira ao sabor da corrosão da história – meu pai cinza, grisalha figura feita de areia rala e branca, coisa que mais gosto porque gruda na pele –, a areia muda sempre para melhor, em vários formatos de redemoinhos e dunas alexandrinas, com buracos feitos de maré, erosão das trevas, meu pai, sempre ele, minha única incompreensão de mim mesmo. E queria tanto poder orgulhá-lo (só por causa do hífen) que acabei sendo motivo raro de orgulho e escárnio para o diabo, aquele velho vagabundo que sem querer fez carreira no meio da religião católica de olhos fechados para possibilidades caóticas, e não pensem vocês que essas palavras vêm de mim agora, quem fala é a tal gorda da pele de cabra, focinho de mula manca, pedindo perdão antes de errar pela última vez, pelo que eu jamais conseguirei enxergar o tanto do pouco que existe naquilo que não se arranja em dignidade suficientemente para mentir sobre a própria vida que não se tem mais por causa da...

”Barbitúricos, meu bem, sabe o que são barbitúricos?”. Queria dizer que sim, que sei, que sou, que sempre fui, que viajei para Tânger, que chamei de preguiçosos os pobres argelinos do Casbah, só porque carregavam seus cordeiros imaginários, como Burroughs, como Clash. Além disso sou apenas um agente secreto de outro planeta, e o problema é que não sei porque me enviaram, me esqueci da maldita mensagem, disse Old Bull Lee para Sal Paradise, tudo na pele flácida da gorda de gânglios lunáticos, todos aqueles olhos obtusos, uns quantos cinco, girando na forma de uma chance morta num cargueiro onde conheci um velho polonês chamado Gniezno Kossubudzki, açougueiro e mercenário capataz, capaz de ficar completamente bêbado antes de molhar os lábios, só porque nasceu sem ter morrido primeiro, o que é raro e claro que eu já tinha tomado umas, assim como se faz logo antes de se pensar.

Disse à gorda que era contra barbitúricos, mas pagaria a ela um sanduíche de pão com provolone, se fosse longe a fome do nome chamado homem. Ela riu. Uma gorda viciada rindo... Lembrei da minha mãe e chorei sem conseguir rir junto com ela.

Foi tudo muito raro, a começar por mim mesmo, ao escrever essa história, nem tão rica nem tão pobre, nem tão triste nem tão viva, por que afinal negociei um sanduíche de queijo com a morte, e isso não é todo dia.

Fui para casa dormir. Chorei de novo num novo sonho. Jogava damas com minha avó materna, com quem nunca troquei nenhuma idéia. Ela vestia camisola florida e as peças do tabuleiro eram todas de madrepérola. Sangrava velha como uma úlcera. Pus a culpa nos suecos, porque nunca pude compreendê-los, e assim era mais fácil e menos triste, aparentemente. Dois dias de cama. Balanço: semana estranha. Acordei seco e calmo no dia em que tudo deu certo, porque resolvi me errar.

Mês depois, a mesma gorda, dessa vez com trança, camisa de botão fechada no pescoço, saco plástico onde se lia “salve-se que deus te espera do outro lado do fosso”.

Eu estava sóbrio, péssima opção. Ela chegou até mim, eu que tinha acabado de ver um filme sobre a vida e a morte de Vinicius de Moraes, pelo qual quis nascer de novo dentro de uma concha na praia de Itapuã, devasso pela primeira vez. Estava para poucos amigos, quando a gorda chegou outra vez – dada a situação – valendo por três:

- Que deus te abençoe (sinal da cruz, amém)! Vendo umas medalhas da Nossa Senhora da Conceição... Quer colaborar com uma?

- Não sou católico.

- Mas as medalhas são de ouro.

- Sim, mas não sou católico.

- Posso te mostrar as medalhas? Tenho também Santa Rita, Santa Filomena, Santa Francisca Cabrini...

- Dependendo da medalha, eu compro.

Mostrou a medalha. “Tem essa e essa e essa”, disse. Tirou outra do bolso. Todas iguais. Caíram umas tantas no chão. A mulher tremia, prestes a ter uma convulsão.

- Perdão... Mas não me interessam.

- Natal... Compra pra sua mãe.

- Minha mãe morreu.

Me senti mal imediatamente. Não pela mãe morta, pela frase. A gorda perdeu a lua dos olhos do primeiro dia e sem luz eu passei a enxergar enviesado. Me amou sem paixão, pobre gorda viciada em perdão, há muito ninguém lhe olhava nos olhos, talvez porque não os tivesse mais, agora que a lua se apagou com tiro, meu tiro, as medalhas escorrendo pelas mãos, aquele ódio muito bem criado.

Matei a lua porque ela se apaixonou por mim e, como eu, nunca mais ela voltou a nascer. Pelo que me culpo mesmo quando finjo que ponho o ponto final aqui.

Um comentário:

Anônimo disse...

sou romantica
Só o titulo me fez lembrar uma musica bonita " When you love someone" de Brain Adams...
Onde se diz "you shoot the moon put out the sun when you love someone... Beijos