3.11.05

"Uma certa nostalgia que não é minha"

para meu pai e meu avô

Havia quase 30 anos de diferença entre eles
mas tinham as caras parecidas,
o mais velho, Mario Osório,
costumava levar o mais novo,
Mario Renato, domingo nas corridas,
e às sextas-feiras para jogar botão
no clube Caixeiros Viajantes lá em Viamão.

Mario Osório enchia a cara de cerveja,
apostava as calças e a esposa na biriba,
sempre um pouco antes da última mesa,
dava um jeito de arrumar uma briga.

Mario Renato tinha amiguinhos imaginários,
o jeito de não chorar enquanto o pai apanhava.
depois arrastava o velho até o ponto de ônibus,
apenas uma carcaça cheia de coágulos,
depois que os outros viciados
tinham cansado de lhe chutar a cara.

e Mario Renato jamais esquecia dos conselhos do outro Mario:
“não importa apanhar ou bater, importa é dar o primeiro soco”.
cuspia uma bola de sangue e vez por outra um dente vinha junto.
e Mario Renato prontamente limpava com a manga da sua camisa.

um dia, os dois, nas corridas de cavalo, se perderam
porque Mario Renato ficou vidrado num tordilho
que jogou longe o jóquei ainda na volta de apresentação.
Mario Osório estava num daqueles dias.
mandou às favas o caixa-registrador,
jogou nas raias o radinho de pilha
e foi se embebedar a fiado,
no boteco do Agenor.

chegando em casa, vermelho de cachaça,
Maria Zula, velha companhia, perguntou:
“e quedê o guri, pai?”
Mario Osório gritou, mãos na testa, chute na parede:
“puta merda! esqueci o guri no jóquei!”
quando voltou viu Mario Renato sentado na sala dos achados e perdidos,
entre uma carteira de cigarros de prata e um paletó de linho azul-marinho.
fez o sorriso mais sincero quando viu Mario Osório entrar amuado cuspindo no chão.
gritou com o guri: “e tu, por que foi sumir?”, um tapa na nuca lhe desfez o topete,
voltaram os dois sem dizer palavra no que já era quase de manhã.
tão bonito, no Rio Guaíba, o amanhecer.
e tão feliz estava Mario Renato porque
Mario Osório tinha voltado por sua causa,
que nada mais importava além daquilo.

Havia quase 30 anos de diferença entre eles
e eram tão parecidos que se um comia o outro punha a mesa.
amavam-se cada um do seu jeito.
um não dizia o que o outro sabia.
o outro não sabia se sabia direito.

mas Mario Renato adorava quando,
alta madruga,
Mario Osório deixava um bombom com licor de rum assim que chegava do aeroporto (onde trabalhava no setor de abastecimento enchendo tanques de aviões) ao lado da cabeça do guri em cima do travesseiro.
e ele fingia que estava dormindo,
porque o velho cheirava a puteiro,
sem que nada precisasse ser dito,
nem nada precisasse ser feito.

2 comentários:

Carla Diacov disse...

lindas teias,querido!
e obrigada pela visita!

Anônimo disse...

uma certa saudade que nem é minha...