Vinha andando pela Marquês de Abrantes, do metropolitano até a cama, com meu radinho particular de pilha esquentando as orelhas e o céu não era grande coisa, mas sempre é melhor olhar para cima, então tateei os bolsos, num deles achei uma bússola, que tinha ganhado de presente, há tanto tempo sem um presente e agora essa bússola e todos os seus significados implícitos e, sim, eu adorava estar perdido, o norte louco e trêmulo da bússola me desorientava ainda mais, só porque era meu norte e minha bússola e minha vida, pois estar perdido era ainda a única maneira de se continuar procurando, e eu vinha pensando nisso e numa porção de outras coisas mais confusas quando no chão vi um anjo de ébano maltrapilho escorado numa mureta com um cachimbo de pipa na boca e uma bengala apoiada no hidrante da calçada – os cabelos brancos e cheios e os sulcos de sangue estancado lhe davam o aspecto de um jangadeiro que volta do mar com sua rede de arrastão vazia, e ele me olhou e eu quase tropecei sobre suas pernas porque John Coltrane, fanático por Stravinsky, tinha dado um passo grande demais muito perto da têmpora, então me agachei levemente, sorrindo com amabilidade, arranquei os fones das orelhas, com a mão espalmada na sua direção, e meus olhos procuraram os seus olhos, verdes olhos musgosos cheios d’água sem pupilas de quem já viu demais e hoje usa uma caneca com moedas como método econômico de expressão – eu estava ali como quem pede desculpas por não saber dar a mão – já que foi assim que a junção cósmica se fez valer e, automaticamente, dado que o velho anjo decaído tinha a mão de palma virada e esticada para mim, eu disse que não tinha um tostão furado – o que não era bem verdade, mas também não era indelicado, apenas não era dessa vez, e essas situações precisam ser naturais, pelo que o negro riu de uma maneira tão solta e debochada que o céu se abriu novamente – estávamos na frente de uma igreja pseudo-gótica e a luz que iluminou a risada do anjo era rala, muito distorcida, daquelas que você pode ver pouco antes de desmaiar, e eu tenho um ranço católico, porque quando era muito pequeno e fazia a catequese minha mãe morreu e daí eu não quis mais comparecer aos ensaios para a primeira comunhão, a qual iria acompanhado de uma menina muito feia e dentuça chamada Maria Romero, que tinha a mãe mais gorda que eu já conheci – talvez a impressão fosse fortalecida pelo fato de irmos sempre juntos para casa depois do colégio num BR-800 que tombava para a esquerda sempre que a mãe dela se esparramava no banco e me esmagava em seguida ao chegar bruscamente o banco para trás – eu sempre atrás, ao lado de sua filha, que me amava e tinha um mau hálito terrível – e eu mesmo era um gordinho ansioso e desatento não muito simpático e de voz estridente, sendo que abandonei a catequese no dia seguinte ao dia em que Jussara se foi e, logicamente, esse dia seguinte durou meses e anos deitado no porão de portas fechadas e persianas alquebradas, assim como minhas próprias esperanças de um dia ter aquilo que os homens inventaram para justificar um sorriso e deram o nome de felicidade, o que imediatamente destruiu o significado puro e dúbio que um sorriso verdadeiro pode ter – eu deitado olhando para o teto durante festas de família, as risadas tão gélidas e gralhadas que a partir de então, para mim, o diabo era um homem de gravata que ria o tempo todo daquela maneira inesquecível – apenas um menininho cabeludo de virilhas assadas, boné e camisa regata, sem conseguir entender o que era aquilo que produzia um gosto metálico na boca e nenhuma lágrima, por mais que doesse a espadada na têmpora e meus olhos não conseguissem mais olhar para além do chão e eu por vezes não conseguisse reunir as forças necessárias para me salvar da falta de ar ou pelo menos rogar a deus, com a mão erguida para a resposta seca do teto branco – “apenas uma bronquite crônica”, disse o médico familiar que nunca me olhou nos olhos e se dirigia a mim como “O laudo”, e eu era apenas um laudo, uma folha de papel que voava ao sabor das grandes correntes arejadas, porque sempre me faltou o ar, assim como ao mundo todo, às flores, à beleza que sussurra dos cantos mais sórdidos, escorada em prevaricações forjadas, e àquela beleza maquiada e muda que murcha por sobre os ombros satisfeitos de plácida sabedoria e poder sobre nada, dado que tudo que nada morre, e o que não nada se afoga – e quando eu disse que não voltava mais à catequese, que “para o diabo com essa maldita catequese”, minha guia espiritual, uma velha guru que um dia deve ter sido muito bela, ou muito me engano, pois era mais antiga do que o conceito de beleza, e só falava de olhos fechados na medida do anúncio divino e usava um grande pince-nez de bronze onde pendurava os ósculos de lente que eu nunca a vi usar, pois, como disse, ela apenas fechava os olhos para o mundo e se fazia entender sem dar bola à forma como era entendida, aquelas largas ombreiras me pareciam a própria cruz do nazareno, e eu me lembro que chovia muito quando me esqueceram no colégio e já era noite e eu tinha fome e medo do escuro e do barulho da chuva, porque não estava acostumado a conversar e a chuva retorquia demais – mas muito mais por desalento e solidão – e ela me levou de táxi para casa, onde ninguém me esperava a não ser meu teto branco, e eu disse: “Tia Darly, se a senhora não se incomodar, não queria voltar mais à catequese”, e ela disse: “mas por que diz isso, meu filho?”, de olhos fechados, e eu fui sincero: “porque minha mãe morreu ontem” – ela engoliu toda aquela prece e fez um sinal da cruz, de modo que nunca esqueci para que servem os sinais da cruz e cuspo um sumo marrom no chão toda vez que vejo alguém fazer um, então ela sentenciou, de olhos fechados, porque podia entender tudo, desde que não visse nada: “que deus te abençoe, meu filho, e te guarde e proteja, pois agora estás livre e sozinho na vida”, e me largou debaixo da chuva em frente a um prédio cinza na Visconde de Pirajá onde, no térreo, havia uma joalheria, e me lembro que tantas vezes por ali corri de chineladas em volta da mesa da sala e tantas vezes ri de barriga para cima e brinquei de fazer cócegas para depois dormir levemente ouvindo os sons uterinos de Jussara, sons tão íntimos e caseiros nos quais minha cabeça se recostava, que hoje não consigo ficar mais em casa sem ouvir os sons por debaixo das portas, ela que me lavava as costas e emprestava a bochecha gelada para que meus dedos descansassem em paz e me fazia ouvir Elis Regina e dizia que um dia eu leria Clarice Lispector e escreveria tão bem quanto ela porque ela me achava melhor do que o mundo todo, e foi por isso que, sentindo-se menosprezado, o mundo a levou embora e não sei por que diabos foi pensando nisso que falei ao anjo negro sobre um espectro enfumaçado de luz, e que eu já não tinha mais um tostão porque os que vivem, vivem para dar, mas eu estava tão morto quanto a prima Mary de John Coltrane, cujo espírito ainda zunia em fast-bop nos meus tímpanos – eu era um morto que andava como tantos outros, e o jangadeiro santo do cachimbo de pipa parecia tão vivo e tão convicto do seu capítulo nessa face injusta de terra, que quase me despedaçou de vergonha e beatitude, quando olhou para mim e disse:
– Não quero nada, irmão. Teu sorriso e tua atenção me bastam. Quero apenas que você tenha um bom dia e que mantenha a cabeça arejada, que assim tudo vai dar certo.
E então eu fui e tive um bom dia, porque assim quis meu anjo negro da guarda.