19.3.07

"clichê"

dizer que ainda te amo, oh dúvida!
e que lá fora os pássaros sibilam
e os casais passeiam de mãos dadas
e as crianças tagarelam, assustadas
e os adultos assustados, em revolta
ordenam que elas se calem e obedeçam.

ex-vedetes colhem notas do violoncelo
e as novelas anunciam os casamentos
e as que amam se masturbam aos prantos
e os que negam não fazem mais subir
mas ainda falam em rodas sobre sexo.
e políticos se escondem e nos culpam
pelo trabalho que não souberam fazer
e eu mesmo também me culpo, e a eles
mas, escondido, continuo confiante.

dizer que os parques têm seu ritmo
e que, sem dúvida, as saias nas ruas
giram em cores de sorrisos fratricidas
e as meninas tomam sorvete e alienam
o que pensam os meninos nos banheiros.
dizer que as frutas mortas de Cézanne
ou a camisa de força de Antonin Artaud
ou os touros e odres de Papa Hemingway
ainda povoam à noite meus pensamentos.

ou até mesmo dizer: “vamos juntos!”
vamos juntos a passeio, sem medo do dia
em que as provas da vida nos marcarem
com o destino para sermos o que fomos.

dizer “destino, amor, pássaros, sonhos”
ou dizer “quero sombra e água fresca”
quero um futuro de flores explodidas
ou quero uma vaga no céu de Pietá
ou uma corda do violão de Pablo Picasso
ou mesmo nuvens-avenidas de Pablo Neruda
e quem sabe aquela mão que não me embalou
quem sabe aquela mãe que se foi e continua
a me levar calmamente para longe da cama
e que anula minha dormência com sua paz.

tudo isso é mesmo um verdadeiro clichê.
a verdade não passa de um clichê negado
para que possamos, sujos, recolher os cacos
dos nossos melhores momentos, esquecidos.
uma pena que para terminar com este relato
eu tenha que, tão perto do fim, morrer
para – somente assim – permanecer vivo.

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