29.5.07

"peixe"

estava apenas contando
a história sofrida de Edgar Allan Poe.
ela ao meu lado ouvia, bocejava, dizia:
“Você está competindo com o som”.
tocava Bob Dylan, eu por isso dizia:
“nesse caso não há competição”.

na seqüência eu comecei
a ler a saudosa biografia
de Edgar Allan Poe.

em dois minutos uníssonos,
justo na parte em que ele tinha sido expulso
de Boston, ou do colégio onde seu salvador
e seu algoz o pôs, para criar William Wilson,
eu narrava histórias um tanto esclarecedoras
sobre este sujeito notável – era uma noite fria,
com certeza sentíamo-nos todos sozinhos,
como talvez tenha sido com William Wilson
ou com Edgar Allan Poe, ou Aline, ou eu.

27.5.07

"afazeres dominicais"

limpar o cinzeiro
fechar os livros
pegar no sono
rasgar poemas
queimar a língua
com café preto.

contar as nuvens
esquecer as contas
ouvir Lou Reed
acender incensos
pensar em Buda
em Bleecker Street.

falar com Ulisses
com Doce Desdêmona
abrir mapas abissais
transpirar outonos
pintar as paredes
simétricas do vício.

"Matinal"

Maldição! O dia desponta bonito: chance de chuva e muito vento. Um terror gris no ar, cães em coro lento, ladrões de casaco em frente a fogueiras feitas com óleo velho, próstatas que levam amídalas para passear na praia imunda mas ainda paisagística, tudo lindo, tudo ótimo, tudo bossa nova, um dia de descanso, descanso do quê? – descanso disso. Um dia de sono, de sono alcoólatra, de sono que acorda, um dia de olhos acordados no corpo antigo, purulento, marcas que não irritam e pelas quais tenho até certo apreço. As gaivotas são tão bonitas, parecem setas no horizonte. As garças são gatos marítimos, e perto delas sinto vergonha. Mas temos ainda os jovens antigos e os vizinhos abelhudos: não se preocupe, descanso. Descanso de quê? Esqueço.

Maldição! Não deveria ter aberto o jornal, não deveria ter olhado para o céu como fosse presságio, não deveria ter entortado as patas da andorinha. Mas olhei como se fosse, sobraram apenas penas repartidas. Olhei para nós dois na reflexão da poça feita da água do esgoto dos ricos. Só poderia dar nisso: o colunista social que cobra mais de cem mil por uma palestra para jovens escolásticos ou presidentes de grandes corporações, grandes como seus carros, seus iates, suas máquinas de sexo, inversamente proporcionais ao seu desejo, para homens enrolados em gravatas que mascam chicletes, o colunista que freqüenta o clube da cocaína vendida em pernis de porco entre pizzas de berinjela, ele mesmo disse que eu sou um hipócrita, hoje, no jornal, que sou indiferente – e ele tem razão. Coisa que eu não, por isso fui ler meu horóscopo, que dizia: vá trabalhar!

25.5.07

"ode ao onanista"

este esguicho branco-pardo
de tantas tardes de sono
quando as onças dormiam:
jorrar convicto, lacrimoso.

esta gota encorpada
que de nós escorre
e também é bílis:
massa do infinito,
cheiro nauseabundo,
gota pai, gota mãe,
gota imperdoável.

de onde viemos tão tolos,
gota mole, insubstancial?
gota que, quando esgota,
nos torna fósseis de nós.

estribilho transparente
- gota do não me apague.

enquanto de mim esguichares
sem saber se és vida ou vício
escutarei o silêncio cálido
da tua motivação narcísea.

"Rua Augusta"

Via-se através do espelho avermelhado a sombra perfilada do cantor de voz trêmula barítono, e era aquela antiga sensação de que se usava a expressão “antiga sensação” sempre para tratar de algo completamente novo, pois o que chamamos de antigo é aquilo que não mais tocamos e está em nós, intocado, como flocos de sentido. Uma senhora hippie, melhor, uma hippie senhora se aproximou da nossa mesa e nos ofereceu cigarros aromatizantes enrolados em folhas de uva. Era de certa forma irônico que só eu, enquanto meu yin e meu yang estrebuchavam animosidades ao meu lado, prestasse atenção naquela pobre senhora hippie, hippie senhora dos dentes separados – que do seu jeito meio pálido, me levou a transcendências. Emocionaram-me as folhas de uva, a voz barítono, os dois – yin yang, vê se pode - se dando bem à minha revelia, pobre senhora, “na verdade, estes cigarros são feitos com especiarias da China”, sou pobre também, hippie senhora, aceito os cigarros de uva, quero cachos, minha senhora, quero cachos!

22.5.07

"cortaziano"

antigamente
sob holofotes
estava escuro
e nós ficávamos
cortaziando
pulando quadros
rasgando ícones
deixando pistas
perdendo o foco
plantando esfinges
em nós, coelhos
amores órfãos
enquanto quartos
um a um fechavam
nós não sabíamos
que talvez hoje
quem sabe nunca
estaríamos juntos
outra vez sem saber
na cama de dados.

"evocação da santa magrinha"

ó minha santa
santo bandeira
a noite é cheia
a dor é manto!

minha santinha
que me deu vida
ó santa livre
dos cabarés.

és santa e mãe
ó pranto antigo
ó santa tísica
me dá tua mão.

senti tua falta
santa só minha
linda e sozinha
santa de grife
cheirai o pó.

e torna santa
nossa chacina
ó santa antiga
que do chão brota
antigo câncer.

dá-me guarita
ó santa puta
da boca roxa
anti-maria.

ó santaranha
dos moribundos
santa mundana
é tua a culpa!

18.5.07

"rotina"

eu vi você no parque
recolhendo algodão.
você falava e cuspia
e eu dizia que não.

portanto entre cuspes
não podiam nos dizer
que o grito que urge
somos nós e não você.

ambos no fundo se amando:
Bob Dylan e Joan Baez.
vida curta, longo engano:
sonho que não tem vez.

"modinha"

chove bastante na cidade,
em mim não cai um pingo.
chego na casa dela tarde,
é mais um dia de domingo.

na rua, todos sem dinheiro,
vejo pela cara do porteiro,
que me vê e não cumprimenta.

não existem aves nos galhos.
ela me recebe ainda gripada,
olhos de uma doce violência.

antes tentamos coisas leves:
viu a chuva que vem de longe?
pensei que chovia há séculos.
as amenidades não funcionam.


tentamos os olhos, traiçoeiros.
ela está irritada, pegou virose.
eu estou excitado, sem a calça.

então ela me estapeia a cara,
eu a levo até a cama na marra
e nos amamos como sertanejos.

"Infância" (Arthur Rimbaud)

*tradução de Ferreira Gullar



III

No bosque há um pássaro, cujo canto te detém e te faz corar.
Há um relógio que não soa.
Há numa fronde um ninho de bichos brancos.
Há uma catedral que desce e um lago que sobe.
Há uma pequena viatura largada no mato ou que dispara caminho abaixo enfeitada de fitas.
Há uma trupe de pequenos comediantes vestidos a caráter que se percebe na estrada através da orla do bosque.
Há enfim, quando dá fome e sede, alguém que te expulsa.

11.5.07

"Jussara"

“I need you,
I don’t need you”

(Leonard Cohen)


Agora, com os olhos estalados de insônia, queria escrever algo que não me fosse infância, que não fosse o mesmo que dizem como limite do eu não posso sozinho e nego, algo que eu não possa entender porque estou embriagado de amor, sim, esse amor não falado, assim tão tingido, antigo e vago, e que ao mesmo tempo embalasse meu sono tardio, algo que não bolasse bocejos ou ruminasse golpes, que saísse para pegar o leite e criticar o vizinho, e me apanhasse no colo (ou no cio), e me largasse quando eu sentisse o fígado, mas sobretudo algo sonolento que vendasse os dias de clausura, sobretudo que não fosse poesia ou frase – o problema é que tudo que a gente faz de verdade não é falso nem verdadeiro, mas é poesia ou frase, boa ou ruim – mas mesmo assim queria algo que se diluísse com o barulho da ampulheta sem a minha atenção, e não tivesse a forma grandiosa de um gênio bêbado dizendo a um poeta promissor sobre versos orientais, e tivesse o som de um pêndulo que viesse e fosse e estivesse aqui como aquele sonho que só vem quando estou sozinho e ocupado, mas meus olhos estalados, tristes de insônia, a cama desfeita, teu buraco ainda nela, ou na minha cabeça, ando, ando, ando, sem solas, vírgulas, ou repetições para tantos passos – e afinal, andar para que se é de mim que escapo? – mas, nu e sozinho, quero escrever algo que não me cause nenhum arrepio, que saiba olhar nos olhos de quem ainda não se ama com delicadeza e susto ácido, nada além do ritmo interior do mundo, nem feio nem bonito, louco, aquilo que ninguém vê e nos embala cegos, quando então desaparece e a gente morre enfim pobre nona sinfonia, que só desmerece o poema que não fiz.

10.5.07

"ses e talvez"

talvez fosse a mulher da minha vida,
talvez fosse outra frase pelo meio.
quem sabe não fosse o último beijo,
aquele que nunca se sabe despedida.

no fundo morto de todo homem
há sempre uma criança perdida.
ela só sabe que veio de ontem,
veio do escuro já que de ontem não lembra,
e que tudo que se encontra a frente é escuro.
por isso que lá bem no fundo tudo
o que um homem precisa é de uma fêmea
que o faça dormir como cria lambida.

mas, agora, já chega de poesia!
poesia de “ses” e “talvez”, nó embusteiro.
um fim para mais essa mentira!
o que passa quebrado nunca volta inteiro.

4.5.07

"Tão triste quanto um prelúdio de Claude Debussy"

Estou doente do coração. Mas não são apenas palpitações arrítmicas, é uma explosão repentina que de repente pára. E quando pára o mundo fica escuro. E isso tudo é tão banal que eu não posso parar de pensar no assunto. Mãos e bons-votos de sabedoria estão por toda parte: existe bondade numa flor amassada no asfalto. Mas o que procuro debaixo dos tapetes? Disseram que era uma felicidade difícil, mas eu sou tão fácil que tenho medo de dizer “vamos juntos”. Porque me disseram que era uma felicidade difícil, então passei a desconfiar das palavras. E meu coração adoece: pobre membro supervalorizado, escravista de veias e mitos. É chegada a hora fúnebre, onde amigos já não são cavernas tranqüilas, e a dor já não muda de freqüência, e de repente me pego dizendo “deus, por que te neguei tantas vezes?”. E o dia está mesmo tão propício. Tudo parece sufocado. Por que fui ler Clarice Lispector? E mesmo as coisas coloridas estão murchas, como se estivessem enjoadas após uma série de abortos diários. Tudo de repente – enquanto tento rasgar meu peito – ruma para o mesmo lugar. E é essa coisa truculenta, maciça, é essa unidade de constatação, que chamei felicidade difícil. E pensando nisso, deito a mão no meu coração, peço calma, peço com delicadeza dessa vez, aceito a derrota. Mas ele não pára nunca, e está doente. Ele não pára nunca, está vendado, lhe amassaram as plaquetas do mistério, confiscaram o vulto secreto da sua mão veludosa que protege a todos e desfalece quando não há perdão. Desejei a tudo amargamente, e num castelo de ouro cercado de uivos fiz a cama do meu precipício. Vejo agora a fumaça que sai da minha boca, tão desordenada que nunca varia. E eu, sempre tão ordenado, sempre tão inalcançável – só depois da felicidade difícil – grito a mim mesmo coisas que não vêm dos homens. Coisas que eu mesmo não entendo, e não é minha própria voz, e dizem alguns que a voz muda de tom antes de morrermos ou virarmos santos, mas não sou ambicioso. Onde foi todo mundo? Não, Silvia, o gás não será aberto. Eu fujo de mim mesmo passo a passo – esse inatingível clichê – para dentro de mulheres que nunca conheci, em cujos olhos procuro o que nunca foi tocado, mas agora me observa como olhos vermelhos numa floresta escura. Eu sou aquele que foi sempre demitido, mesmo que nunca tivesse tido um emprego.

"nossa incrível linha evolutiva"

os mais novos artistas
são fanáticos bipolares
com boletos bancários
em filas de aeroporto
fretados para a China.

saber que o próximo passo
será sempre o último passo
pode fazer muito sentido
na primavera negra de Paris,
se você for Henry Miller
no bar tomando um apéritif.

aliás, por que será que todos os homens geniais
(ou seja, pessoas mortas) falam do mesmo jeito?
como bêbados pedófilos que usam suspensórios
e um bigode bem-aparado como o dos homicidas.

a vida não é o que nós pensamos que ela é.
podemos ser os reis do mundo se estivermos
todos deprimidos, desesperançados, acuados,
acaçapados sem nenhum motivo muito lógico,
por mais que vivamos uma vida ultra-lógica.

podemos ser uma tarde de sol enferma
sempre prestes a acontecer e terminar.
mas o sol vem sempre de trás do monte
e é bem mais amigo do deserto que nós.

então, vendo o sol sem poder culpá-lo,
barriga com barriga, sem nenhum defeito,
diretamente ligados, e sem esperança,
aprendemos a baixar a cabeça, e a dança.
aprendemos a nos contentar
com o que nós ainda não temos.

somos a antiga nova geração,
nosso nome pertence a deus,
deus minúsculo, pois que tudo
que é pequeno permanece vivo.

o que pensamos que é, sempre vem
acompanhado de algum tipo de morte.
mas o que é, é justamente por estar
distante, algo novo a cada segundo.

porque somos vida e morte no mesmo lugar,
no mesmo único e impossível instante cego.
e se ao acaso você passasse um segundo antes
sob chuva forte e se eu lhe tivesse olhado,
talvez não estaria agora correndo até a ponte.

morte e vida, a mesma coisa,
o mesmo lado da única moeda.
o outro lado somos nós:
os loucos de deus ou da filosofia,
os desconstrutivistas de cactos.

mas, de fato, as coisas são apenas
por uma contradição inacreditável:
sempre a um segundo de acontecer,
nunca previsíveis, sempre imponderáveis.

pelo que uns se matam,
outros pensam que estão vivos.
mas estamos todos enlouquecendo,
porque viver, e até mesmo
o que consideramos que seja não viver
é enlouquecer a cada instante,
como se tudo fosse uma surpresa impassível,
uma caixa de pandora que nunca se abre.

e até mesmo eu, que digo isso, estou louco.
e ouvi dizer que as abelhas estão acabando,
todas misteriosamente migrando para o além.
então não se preocupem com guerras atômicas,
porque já vai chegar a hora de vocês também.

"o resgate da formiga: todos nós"

uma formiga perdida na minha escrivaninha,
de repente mais perdida: sobre meu pulso.

pelo que eu penso: mato agora essa formiga.
depois reparo, porque toca o Réquiem de Mozart:
se ela se perdeu do resto, como agora estou eu?

então faço tudo para, com o dedo, tirá-la dali.
isso quando poderia muito bem matá-la sem culpa.
– e quantas vezes não matamos pela nossa culpa?

a pobre se debate sozinha, perdida no meu antebraço.
eu falo para ela: vamos, te ponho de volta na mesa.
mas ela não tem ouvidos, é preta, cega, mínima, seca.
e todos nós, em grupos, somos do mesmo jeito sem saber.

por fim ela se rende, talvez sentindo a morte, e sobe
no meu dedo que, também perdido, apenas maior, a devolve
à escrivaninha, onde ela continua sozinha como todos –
e isso, percebo, me enternece muito mais do que Mozart.