28.2.07

"os dentes de leite da esperança"

Sentia o escarnecimento do sol, com os cílios indiscretos das folhas cochichando maldosamente por debaixo das sombras das árvores, às minhas costas. Foi quando me aconteceu a coisa mais estranha: cruzei no caminho com a esperança em pessoa. Vou explicar melhor.

O sol formava sombras rarefeitas que pipocavam sobre minha cabeça e em volta estava tudo completamente granulado: a areia congestionada de um lado, a redoma de fumaça do outro, eu sem saber do que era feito, paralisado de mim. Uma animosidade suspeita cobria como poeira a mobília do mundo. E a esperança gosta dessas horas, por isso apareceu, adaptada à silhueta de um menino magro inchado de vermes.

Este menino acinzentado, magreza funérea de sorriso nauseado, se aproximou de mim e disse:

- Seu moço, pega pá mi a rabiola, que ela ficô garrada no galho.

E me estendeu uma linha de pipa com uma pedra amarrada na ponta. Eu olhei para o garoto desnorteado. Vinha tentando enganar a mim mesmo com complexidades amenas para não ter de encarar a simplicidade avassaladora com que aquilo que nos define também nos atropela: no meu caso, uma sensação de conspiração e fracasso, que gera apavoramento e confusão mental.

Comecei a girar a linha presa à pedra como se fosse um pêndulo no ar. Fiz isso por um minuto, para testar as possibilidades, então segurei a linha. E olhei outra vez para o garoto, que parecia uma estátua egípcia mal conservada:

- A linha é muito curta – eu disse. – Não vai alcançar a rabiola.

Seus olhos eram duas bolotas assustadas que se mexiam sem conexão uma com a outra, o tempo todo, como dois pequenos demônios num processo de exorcismo. A boca aberta também, os dedos lambuzados de saliva dentro dela.

Lancei uma, duas vezes a linha, em vão. O garoto me olhando quieto. Na terceira tentativa, lancei com muita força, porque já estava ficando cheio daquilo: daquela criança que parecia saber dos meus segredos, me olhando fixamente sem eu saber o que lhe passava pela cabeça. E a linha acabou presa num galho. Dei um puxão e senti que ela se esgarçou até quase arrebentar. Olhei para o garoto mais uma vez. Minha testa escorria tensão.

Tinha uma fisionomia intrigante e ao mesmo tempo assustadora. Pela primeira vez reparei na longa trilha de cal que lhe cortava a barriga bichada em dois pedaços esquecidos de vida. Me olhava com olhar de ancião. Um olhar taxativo de censura e piedade. Muitas vezes recebi este olhar, sem saber como defini-lo ou rebatê-lo. Outras tantas, em sonho, tinha visto aqueles mesmos olhos presos ao rosto sem dentes de um velho desconhecido. Era a cobrança pela minha juventude desperdiçada. Por toda a negligência e pelos vícios que me desviaram do curso natural do meu destino – esse tipo de bobagem. Tudo isso agora estava claro. Aglutinado naqueles olhos, dentro daquele corpo mirrado, manchado de cal virgem.

- Moço, cuidado quando puxá a linha pá ela não rebentá.

E ainda por cima aqueles olhos falavam!

Com as mãos trêmulas, forjei um sorriso. Então tomei todo o cuidado, vendo meus pingos mancharem a terra batida, e consegui desvencilhar a linha do galho. E outra vez – desta vez pensando em como teria sido ser marinheiro no porto da Antuérpia – fiz o pêndulo e lancei a linha na direção do galho onde a rabiola estava presa. A pedra foi se aconchegando, a cada volta, ao coração da rabiola, até paralisá-lo totalmente. Por um momento me pareceram dois amantes trágicos.

Puxei a linha com delicadeza para dar um grande desfecho àquela pequena cena, memorável para ninguém que não a esperança e eu. Olhei para o garoto quando lhe entreguei a linha enroscada na rabiola. E pude ver que, além de tudo, a esperança estava trocando seus dentes de leite. Isso me encheu de algo tão doce que envergonharia a própria felicidade. E fui embora assustado, roubado da minha tristeza.

25.2.07

"Ulisses"

com que olhos agora me veste
o pálido coração amedrontado?
com que boca tu não me disseste:
o que nos leva à morte é o fardo
de manter na cama a discrepância,
cordas tensas na laringe tísica.
ecoe, portanto, no sino do câncer
a poesia eterna da poesia extinta.

na horda dos santos que apontam crucifixos,
por quantas portas você – eu mais velho –
não foi jogado na lama por olhos injetados
no desejo enclausurado das horas em pânico?

você de quem herdei no sangue
harmonia e maldição, luz e veias,
você que a noite clareou, alheia,
no estertor da vela embalsamada e
do coração necessitado coberto de

cinzas cristalinas, apaziguadas.

meu assassino, minha flecha preciosa!
que morreu no dia de ter nascido poeta.
filho boêmio, pai esteta, avô indígena,
se me falta poesia é porque meus olhos
marearam agora que te vejo tão repleto,
tão cheio de deus, com gazes no nariz.

"a teia da aranha eterna"

há ninhos de aranha e mangues
há mambos
nos planos de uma nova história
inglória
para os que precisam de muito
há moras
para os que tem o que precisam
amoras
para a espera aflita e silenciosa
esporas
para os que estão sem braços
abraços

há sangue na moral da história
crianças
cada morte uma pedra a mais
nas contas
do colar mais caro de diamante
há brocas
nas narinas injustas dos deuses
há meses
que chove aqui dentro e lá fora
embora
meu corpo em chamas me chame
exangue
na direção do regaço das horas
senhoras
e todos os cafetões e putas na rua
disputas
pelos últimos grãos da nossa morte
e a sorte
sempre distante dos que amam
e sambam
nos mesmos ninhos pisoteados
tomados
pela teia inchada da aranha eterna.

22.2.07

"o sacrifício"

pela primeira vez na vida
encontrei o Grande Poeta.
isso foi no dia dos pais
e eu estava com o meu
almoçando no Bar Lamas.

meu pai me dizia qualquer coisa
sobre nos aproximarmos mais, mas
meus olhos discretamente vidrados
na mesa ao lado onde
o poeta sentado em curva, mudo,
olhando para baixo e distante
enquanto ao lado uma senhora hesitante
metida num conjunto estampado
(colar de pérolas apertado no pescoço de pato)
tomava uma sopa com pedaços boiando dentro
(os olhos do poeta, onde haviam parado?).

outra mais moça também os acompanhava
– afinal, tudo se passava no dia dos pais –
vestida com roupas pretas em estilo gótico,
brincos inoxidáveis espalhados pelo rosto,
os cabelos da cor de uma laranja estragada,
falava alto ao telefone e tinha belas olheiras,
em frente a um embrulho de papel celofane.

então eu me virei, dei um abraço no meu pai e disse:
"acho que devemos nos aproximar um pouco mais".

21.2.07

"que há de nós?"

havia
essa forma
desconexa
de olharmos
juntos.

havia
nossas crises
por não saber
exatamente
o quê.

havia
essa esquina
e a forma como
eu nunca sabia
se deveria
virar.

havia
nós indecisos
sobre a melhor
forma de virar
a esquina.

havia
riso e choro,
flores e esperança
e, acima de tudo,
havíamos.

"turminha do barulho"

da esquerda para a direita:
drummond, vinicius, bandeira, quintana e paulo mendes campos


20.2.07

"a invenção do amor"

depois do furacão do corpo, com a alma enregelada, corremos em direção ao topo, corremos de olhos fechados – estamos juntos, enfim?

não sabemos mais plantar nossos mistérios, mas estamos confiantes diante do buraco negro a pensar caminhos – de repente somos atalho.

sim, de mãos vazias, de mãos dadas vamos, cada um com seu planeta, sim, de olhos abertos seguimos rumo ao peito dissonante, sim, múltiplos, ocultados delicadamente pelos abismos da ilusão doce, tudo muito rápido: maquinaria de trombetas ensandecidas e estamos lá - estamos enganados?

sim, estamos muito perto de repente, e longe de tudo, longe do resto, do deus que nos criaram e que nos recrimina, longe das cascas de pão largadas em trilhas sombrias - longe demais?

estamos juntos – e só isso nos importa? – somos juntos o desnudamento das horas, a unificação do âmago, somos juntos o que se chamou ingenuidade, ao se desdenhar da origem de cada sentimento. ardemos juntos pela dor da comunhão, estamos sós, de repente frios, como quando um cometa de gelo se aproxima e sua cauda convulsa corta a nuca, então caímos para trás extasiados, mortos e vazios, repletos, e de olhos abertos sorrimos, pela primeira vez os olhos procuram a continuação do branco, nas portas dos edifícios, nos milagres dos santos, no leite coalhado da azia, na poeira sobre a vitrola antiga, no teto chumbado com gaiolas de mármore, que dançam ao sabor do vento da eternidade.

procuramos o branco fugaz desesperadamente, logo após as trombetas do segundo silêncio, e de repente o silêncio se transforma em nuvens carregadas sobre uma taça coberta de limo, e tateamos nossos pedaços – ainda vazios – no escuro dessa intimidade que nos devora, e nos concebe sem meias-verdades, nas tardes em que lambemos nossas feridas com o carinho do que também fomos capazes de assassinar.

você dorme, você falece por trás das cores confusas da tarde – é tarde? não há cedo ou tarde e você já conhece toda essa conversa melosa: nós conhecemos bem.

pulamos, portanto, os arquétipos de uma ternura endurecida. pulamos o sentimentalismo novelesco dos umbrais de aço que se fecham. pulamos páginas como quem anseia pelo adiamento da ansiedade. agimos conforme o vento no lado de dentro de um quarto vazio fechado.

escondemos nossos esconderijos com esfinges e fogos de artifício. mas quem poderá nos culpar pela entrega desmedida, quando a curva do silêncio atingir em cheio os olhos da escuridão?

não posso dormir sem você e você (como Shakespeare desaprovaria) esparrama sobre mim sua desesperança, que tanto me consome e que me fascina, e de repente some, sumimos e somos este vão: esta cor inconcebível de nós dois alados.

as algemas são colares e os desafios sem recompensa. delicadamente pulamos o que daria até um bom poema. carinho de hálito, seu braço cai sobre meu ombro, e isso, depois do furacão do corpo, com a alma enregelada, parece tão inconcebível e tolo, mais parecido com um sonho – um noturno de Erik Satie.

"Acorrentados" (Paulo Mendes Campos)

Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.

Texto extraído do livro "O Anjo Bêbado".

19.2.07

"nossa cor"

existe em nós um (preto) erro fundamental
que torna (cinzas) nossos portos submersos.
existe (vermelho) um erro brutal que grita
no silêncio (bege) constrangido por palmas.

dentro deste erro somos toda vida embalados
como (azuis) crianças nascidas com acefalia.
surdos ouvimos (verdes) os gritos enjaulados
da gigante realidade harmônica, apodrecida.

dela vêm as larvas do nosso choro celofane,
vem o aviso sem palavra: erro da nossa cal.

nosso erro fundamental foi o nosso ofício,
nosso desafio de simbologias desmistificadas
em semblantes com designações seculares:
fundos neste erro, marcharemos sobre ossos,

e dentro deste erro superlotaremos as redomas,
e deste erro, um a um, nós morreremos de vidro.
no coração do erro nossa carne (anil) adormecerá,
até que o corpo se torne (púrpura) unidade amorfa.

então (amarelos) nós anteciparemos a esperança,
a no desbotar do erro recolheremos a nossa cor.

"artistas"

ela perguntou, fumaça:
existe afinal prazer em escrever?
ele respondeu, sem graça:
entre o ato e o equívoco, talvez...

17.2.07

"carnaval"

o sol é tão frio e distante que fere
a solidão com cinzas prateadas.

onde estará a antiga promessa
dos pergaminhos da nova saída?

enquanto morremos, esperamos sem pressa
pela curva sem volta do mais novo adeus.

os olhos seguem, vesgos, versos avulsos
fadados de tanto se forjarem imaculados.

que fazer com a fétida carcaça ferida
se o ritmo que rege nossa veia pálida

é tão indiferente de nós
quanto o sono de deus?

16.2.07

"o primeiro movimento"

(Jean Sibelius, 1927)



se roleta russa fosse nosso destino
ficaríamos pela eternidade ligados
a toda sorte de parasitários em vidas
(literárias ou enfadonhas) condenadas
a abandonos alados em becos sem saída
onde tiros sem mira acertariam corpos
perpetuados na dor de uma vida infinita
em artifícios e armadilhas lindas como

o primeiro movimento
da primeira sinfonia
de Jean Sibelius

que ouço agora e que me denuncia
silenciosamente enquanto lá fora
do lado de lá do meu aqui dentro
vem com o vento a voz de um homem
que estaria gritando por ajuda enforcado
pelas tranças violentas de sonhos úmidos
azuis de um mistério tão claro e tão fundo
quanto o fogo da pureza que nos cega.

15.2.07

"contradição básica"

o talento é fundamental
e ainda assim
o menos importante.

14.2.07

"na praia dos séculos morremos"

vagarosamente
vago esbaforido
e mergulho no ritmo
silente e crescente
(murmúrios de gritos)
descalço das certezas
do chão das sombras,
navego cadáveres e
alimento o pão ilícito.

o que a morte não compreende,
perdida para sempre em seu capuz ensopado,
é que nos sonhos do decapitado,
ou daquele que no sonho perdeu os dentes,
eu apontava, findo em mim mesmo,
aos que, sem saber como, perderam o rastro,
tendo seguido, porém, em frente.

o desespero é que a vida não cobra pedágio.
a vida é o carro que estourou as cancelas
da estrada por onde não passam mais carros.

e - pobres de nós! - com os olhos acesos
de acessos interrompidos e macas vazias,
tateamos com lágrimas o orvalho negro
que cobre nossa esperança diária de poesia
como o pano que cobre o bêbado abandonado,
aquele que morreu, abstrato, na praia dos séculos
(cujas ondas ainda tombam para escoar a língua)
dos que do fundo enxergaram as veias azuis da vida.

"Canção Pesada" (Murilo Mendes)


A negra pena
Comprime a alma,
A negra pena
Da massa viva
De dores cruéis,
Do amor que punge,
Da glória inútil,
Sutil serpente
Que morde o peito,
Que enrola o homem,
Constringe-o todo,
A negra pena
Que se alimenta
De sangue e fel,
Triste cuidado,
Lembrança amarga
Dos impossíveis,
A negra pena
Sem remissão,
Que, morto o homem,
Lhe sobrevive
Em novas formas,
Antiga pena,
Futura pena,
Eterna pena.

13.2.07

"a pétala da vida"

para meu irmão Daniel Cruz


descascar a cor dos sinônimos,
repartir a fundura dos abismos
das coisas para atingir de revés
sua própria simultaneidade mista.

erramos sempre ao pensar
que a guerra diária, essa labuta
que nos esgoela sem esforço,
escolhe trincheiras e aliados.

todos explodimos no erro básico
de que a esperança exata distribuirá
com igualdade as doses cavalares
de mistério e inconstância.

e, mesmo vendo as ondas,
tão para sempre falhas e profundas,
persistimos em acertos desflorados
e colhemos espinhos com mãos desavisadas

do nosso amor e da nossa recusa.

"essa é para você"

o problema do mundo não é com o fim do mundo:
o fim é sempre solene, o fim é beleza convulsiva.
o problema do mundo é com você desde o princípio.
sim, você mesmo, que pede licença antes de matar,
que olha sempre à frente na pista de atropelamentos.
você que suga a vida com sorrisos feridos de gazes,
você sujeito que prega com as veias da segregação
e fura o olho do sol com seu hálito marrom de cicuta.

isso é para você que emudeceu o grito do amor petrificado,
você que detona montanhas de loucura com regras de medo,
você que é a vergonha da satisfação através da luxúria surda,
você força calva do erro magnético sob as dores de amanhã,
você pessoa com sonhos torpedeados pelo desejo exclusivo,
você que perfura vidas com sorrisos como estacas de gelo,
você pessoa ajustada e cênica, pessoa com garras nos olhos.

você que sobrevive aos cuidados do oposto ao genocídio,
a fim de custear suas causas estáticas e chumbar a culpa.
você que sonha com celas apinhadas e vive da lei diária
que esfacela as impressões digitais daqueles que falecem
sem ter tocado a luz que ilumina o rosto nunca antes visto.

você que é feito das nuvens precedentes ao choro de sangue
que deforma ácido a lava seca vulcânica do amor desativado.
você que anima as rodas sociais com frases retas sem ânimo,
porque o ânimo seria a dúvida de que algo possa estar errado.

você que decora cartilhas resgatadas na profunda ausência
e empilha dilemas secretos sobre asas de anjos decapitados.
você com tanto medo de viver que cria o sim do que nega.

você eu morto porque vivo sou chaga do amor aos poucos,
você que é o resto da porção eterna do erro final do tempo.

12.2.07

"nublado"

dia nublado de carnaval e frio,
dia sonâmbulo nos leitos vazios
dos hospitais senis e dos ilhéus,
dia em que o mar é plágio do céu.

dia nublado de carnaval e réus,
dia de morte no leito infanticida
dos hospitais da loucura química,
dia do mar regurgitar seus véus

e medirmos todos nossos esforços
na vida que escorre pelos esgotos
junto à morte dos que não sambam.

“até mais!”, dizemos, santos, ao diabo nu,
e seguimos os passos da felicidade insana
que finge que afaga os nossos anos de luz.

“analogia”


quando ele olhou para ela e disse em tom barítono “queria que você lesse um texto que escrevi”, ela disse soprano “tudo bem, mais tarde eu leio, agora estou com sono” e ele, muito envergonhado e um pouco irascível disse “se você não vai ler agora, você não vai ler nunca mais” e ela disse que ele estava exagerando e ele que ela não entendia sua relação com a escrita, que era uma relação envergonhada, como se ele tivesse vergonha de sentir prazer nisso, e ela continuou sem entender e bocejou e ele disse “assim como você gosta de apanhar na cara enquanto trepa, mas tem vergonha de falar no assunto, eu gosto de escrever, mas me envergonha dizer isso”.


10.2.07

"plantão de sábado"

não existe guarda-chuva contra solidão
nem capa dura que cubra o que está
entre o desconhecido e o redescoberto.
não existe frase que dure pelo desejo
de se saber perto da distancia do fim.
não existe perdão na boca que me diz
que não existe pecado no túnel cinza.
estamos aqui, sempre, distantes de nós.
não existimos, você nem eu, não aqui.
porque se você existisse eu não estaria
aqui, pensando em tantas negações de ti.

8.2.07

“Comunismo”

Amigo, eu quero um sorvete, quanto custa?

Dois reais.

(o rapaz entrega o dinheiro ao sorveteiro)

Hoje tá duro, difícil... Só vendi três sorvetes.

Mas justo hoje que tem sol!

Justo hoje...

Ali na frente tem uma creche. As crianças devem estar saindo agora.

É, acho que vou dar um pulo lá.

Vai sim, e baixa o preço do sorvete em cinqüenta centavos.

Boa idéia.

“retificação ao editor”

João, meu querido,
fiz duas correções no texto.
Precisavam de mais capricho.
Outras também deveria ter feito,
mas no fundo não era preciso.
Ignore, portanto, o primeiro texto
e fique com o que ainda está vivo.
Deixo aqui um grande beijo,
do teu amigo, Tarcisio
(só para continuar a rima).

"Pensamentos incompletos para Mario Quintana"

Os pés dizem tudo que o coração esconde. Passo pelas ruas olhando para baixo e todos pensam que estou triste, ou que acabei de matar alguém. Gosto de imaginar que as pessoas possam ter esta impressão, gosto de exalar um odor assassino, por mais que as pessoas dificilmente venham a ter qualquer impressão honesta, afinal, hoje em dia, uma impressão honesta custa caro demais, mancha a imagem – e só com hora marcada.

O que ocorre é que pelos pés imagino um mundo ulterior, mais bem definido. Uma unha encravada – um coração partido. Um dedão esfolado – tempo demais à beira do abismo. Duas unhas descascadas – um amor descuidado. Unhas bem pintadas e lixadas – traição ao marido. Unhas lisas, bem feitas, mas sem tinta – tentativa de rever os pecados. Pés de dedos finos e esbranquiçados, com canelas mortas sob a pele quebradiça – cocaína em frente a um aquário com um peixe morto de fome. Calcanhares – bom, nesse caso o apaixonado seria eu, e não tocaríamos no assunto.

A barriga da perna me faz pensar em filhos, aquelas criaturinhas formidáveis que estragamos para a vida porque pensamos se estamos fazendo o certo, porque temos medo do que é errado, porque instauramos irreversibilidades, e só o que conseguimos é reprimir aqueles olhos enlouquecidos, que obviamente acabam se escondendo em algum lugar – normalmente no bolso do jaleco de algum psiquiatra com mau-hálito e brotoejas no pescoço. Mas hoje, quando saí de casa, o dia nublado estava sendo dublado por uma dublagem iraniana numa repetição contínua de movimentos desesperados. Talvez fosse uma danceteria, onde os pés comprovam que os corações enlouqueceram. Sofro do que chamei de Síndrome dos Sintomas Incorporados. De fato, é mais difícil ser triste e não saber exatamente por que motivo, quando há uma criança desnutrida contraindo cólera na Faixa de Gaza.

Há perguntas que sempre tive a curiosidade de te fazer, Passarinho, mas tenho dificuldades com as palavras. É engraçado: as perguntas, eu as sei de cor, mas eu não sei as palavras. Do tipo: você pode ao mesmo tempo querer o meu fim e ficar junto de mim, ou você só gosta de ficar junto de mim quando perto do fim, como agora?

Mas, no fim, a estratégia é uma só: pegamos umas mentiras, fantasiamos de verdade, e temos a utopia.

“paulo coelho style”

hoje me tornei um sujeito
que gosta primordialmente
de ficar sozinho,
mongeabundo.

não acredito que isso
seja algo que venha
de auto-aprendizagem
ou especulação de alma
– nada disso.

penso apenas que ficando
tempo o bastante sozinho
fica mais fácil sentir o prazer oculto
no conhecimento dos meus próprios
anacolutos.

7.2.07

“decartiano”

no escuro da noite
onde não há perdão
permanece o amor.

somos um pedaço
do que não restou
no escuro da noite.

onde não há perdão
somos um pedaço.

do que não restou
permanece o amor.

6.2.07

“anjos nos bolsos”

poderíamos passar a noite conversando sobre o ato de beber ou deixar de beber, bebendo, ou deixar de beber, falando, apenas pelo falar sobre fazer ou deixar de fazer. no entanto presenteiam-me com uma cerveja pós-impressionista e meia porção de marfins em cubos. eu bebo, mas não pago, é só impressão cubista. algum alienado me acusa de ter roubado os seus marfins. justifico dizendo que são meus dentes e que, afinal, o marfim era por conta da casa. o bar é feito de madeira antiga escura, como um bordel bávaro, e na frente dele há um letreiro em néon totalmente destoante que pisca “Van Gogh”, com falhas no v e no h – ou então meus olhos. natural que fosse a última possibilidade de uma noite que chorava por estrelas retorcidas. saí do bar, olhei para uma menina que passava sem demonstrar interesse algum, o tipo mais interessante para se morrer por, mas isso pouco importava agora: eu havia me tornado um pintor tísico de nus, familiarizado com as novas tendências e tabacos, e com as mais sugestivas inclinações para o amor trágico. outro sujeito embriagado aproxima-se e me cumprimenta: a embriaguez se contenta com qualquer milagre. existem ainda os movimentos, existe ainda uma maneira de cuidar dos cabelos na frente de quem observa a tua fuga – e é uma maneira literária, só interessa quando se manifesta como cachos.

“nosso crime”

a poesia começa
como fosse fardo.
o fardo se dissipa,
peça de três atos:
um plano suicida
e um assassinato;
recolher os corpos e
por fim (casos raros),
a poesia se torna vulto
de um homicídio culposo
sem vítimas, só cúmplices.