28.2.07

"os dentes de leite da esperança"

Sentia o escarnecimento do sol, com os cílios indiscretos das folhas cochichando maldosamente por debaixo das sombras das árvores, às minhas costas. Foi quando me aconteceu a coisa mais estranha: cruzei no caminho com a esperança em pessoa. Vou explicar melhor.

O sol formava sombras rarefeitas que pipocavam sobre minha cabeça e em volta estava tudo completamente granulado: a areia congestionada de um lado, a redoma de fumaça do outro, eu sem saber do que era feito, paralisado de mim. Uma animosidade suspeita cobria como poeira a mobília do mundo. E a esperança gosta dessas horas, por isso apareceu, adaptada à silhueta de um menino magro inchado de vermes.

Este menino acinzentado, magreza funérea de sorriso nauseado, se aproximou de mim e disse:

- Seu moço, pega pá mi a rabiola, que ela ficô garrada no galho.

E me estendeu uma linha de pipa com uma pedra amarrada na ponta. Eu olhei para o garoto desnorteado. Vinha tentando enganar a mim mesmo com complexidades amenas para não ter de encarar a simplicidade avassaladora com que aquilo que nos define também nos atropela: no meu caso, uma sensação de conspiração e fracasso, que gera apavoramento e confusão mental.

Comecei a girar a linha presa à pedra como se fosse um pêndulo no ar. Fiz isso por um minuto, para testar as possibilidades, então segurei a linha. E olhei outra vez para o garoto, que parecia uma estátua egípcia mal conservada:

- A linha é muito curta – eu disse. – Não vai alcançar a rabiola.

Seus olhos eram duas bolotas assustadas que se mexiam sem conexão uma com a outra, o tempo todo, como dois pequenos demônios num processo de exorcismo. A boca aberta também, os dedos lambuzados de saliva dentro dela.

Lancei uma, duas vezes a linha, em vão. O garoto me olhando quieto. Na terceira tentativa, lancei com muita força, porque já estava ficando cheio daquilo: daquela criança que parecia saber dos meus segredos, me olhando fixamente sem eu saber o que lhe passava pela cabeça. E a linha acabou presa num galho. Dei um puxão e senti que ela se esgarçou até quase arrebentar. Olhei para o garoto mais uma vez. Minha testa escorria tensão.

Tinha uma fisionomia intrigante e ao mesmo tempo assustadora. Pela primeira vez reparei na longa trilha de cal que lhe cortava a barriga bichada em dois pedaços esquecidos de vida. Me olhava com olhar de ancião. Um olhar taxativo de censura e piedade. Muitas vezes recebi este olhar, sem saber como defini-lo ou rebatê-lo. Outras tantas, em sonho, tinha visto aqueles mesmos olhos presos ao rosto sem dentes de um velho desconhecido. Era a cobrança pela minha juventude desperdiçada. Por toda a negligência e pelos vícios que me desviaram do curso natural do meu destino – esse tipo de bobagem. Tudo isso agora estava claro. Aglutinado naqueles olhos, dentro daquele corpo mirrado, manchado de cal virgem.

- Moço, cuidado quando puxá a linha pá ela não rebentá.

E ainda por cima aqueles olhos falavam!

Com as mãos trêmulas, forjei um sorriso. Então tomei todo o cuidado, vendo meus pingos mancharem a terra batida, e consegui desvencilhar a linha do galho. E outra vez – desta vez pensando em como teria sido ser marinheiro no porto da Antuérpia – fiz o pêndulo e lancei a linha na direção do galho onde a rabiola estava presa. A pedra foi se aconchegando, a cada volta, ao coração da rabiola, até paralisá-lo totalmente. Por um momento me pareceram dois amantes trágicos.

Puxei a linha com delicadeza para dar um grande desfecho àquela pequena cena, memorável para ninguém que não a esperança e eu. Olhei para o garoto quando lhe entreguei a linha enroscada na rabiola. E pude ver que, além de tudo, a esperança estava trocando seus dentes de leite. Isso me encheu de algo tão doce que envergonharia a própria felicidade. E fui embora assustado, roubado da minha tristeza.

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