30.11.06

"hai kai"

Tudo que é bom
dura pouco
Tudo que é pouco
durepox.

25.11.06

“a poesia termina quando a honestidade começa”

Sou o eterno vigiado em holofotes alcatraz
Sou o que vive sendo arrastado pelas ruas
Sou alimento para as fezes e para as putas
para a fome insaciável de lesmas sinceras
lentas e eternas por trás dos seus óculos de arte
e suas almas de vime tão recorrentes em palestras
de como se o mundo fosse o filtro de suas lentes
Sou o veneno dos seus chás efervescentes de tédio
Sou o sonho morto reencarnado em pedra brutal
Sou o abandono fictício de olhos sem nenhum élan
Sou a desfaçatez incorporada na palavra élan
o abandono acumulado nos olhos de quem implora
Sou o filosofo com preguiça de dar certo como nome de rua
ou aquelas estátuas de bronze já gastas na região da testa
Aquele que na sombra assassina elegias tetraplégicas
Sou o fugitivo das algemas invisíveis da vergonha de Rousseau
Em suma: sou egomaníaco e paranóico.

“amigos com sede no bar"

- é como comparar Picasso com Van Gogh...

- Mas eles não viveram na mesma época.

- Tá bom, Picasso e Dali...

- Não, o Picasso é muito melhor.

- Você diz isso sem dúvida alguma?

- Não, mas eu digo isso quase com certeza...

“frase de um jogador de sinuca”

que erroneamente me considerou um gênio
porque eu sorri.

“a genialidade não anula a medula”.

23.11.06

“Baudelaire de mau-gosto”

O velho estava sentado em suas partes de baixo escutando um adágio de Baden Powell numa antiga vitrola encharcada de madeira, embrenhado num trecho fidedigno de Charles Baudelaire, situação que, com um punhado de falsidade e bastante exagero, o fazia estremecer de pânico, alguma coisa a ver com um antigo ditado, talvez de Pascal.

Ao mesmo tempo o velho pensava em como terminar uma tripa solta de texto largada como ferida, sem perceber o distúrbio paralisante que Baden provocava quando acrescido de uma prosa curta de Charles Baudelaire, de modo que sentiu algo lhe escorrer pelo queixo, como saliva, ou sua própria imaginação fugindo de si como fumaça, como se ele próprio fosse uma guimba em brasa – os dentes no copo, olhando.

Ouviu grunhidos sufocados, pessoas se lamentando no seu pulmão. A música atravessou a leitura e ele olhou para o lado. A velha ao lado parecia uma orquídea envenenada, gemia pensamentos incompletos, lábios incompreendidos de branco, golpeava o ar dramaticamente, como costumava fazer sempre, por nada ou muito pouco.

O velho já havia aberto, cerca de dez minutos, uma garrafa de vinho uruguaio de seis reais e cinqüenta centavos, vinho parecido com sangue venoso, o mesmo que parecia ter tomado o corpo da velha ao seu lado, na mesma guerra, ou parecida. De modo que o aviso do fim da vida lhe obrigou a golfar e manchar as cuecas.

Enquanto se limpava viu a velha se arrastar até o banheiro, ainda tossindo muito, cabelos brancos como gotas aposentadas. Derrubou o livro no chão e seguiu a luz, esquiando em meias. A velha estava sentada – canelas marcadas com estrelas rarefeitas – no chão do banheiro, abraçada à latrina.

“O que foi?”, ele disse.

“Vou vomitar”, ela disse.

Inclinou o corpo e forçou o vômito, mas nada. Mesmo assim a cena era muito repugnante: a velha de camisola encardida, peitos decaídos como anjos demitidos, implorando à privada. Por isso o velho teve que voltar imediatamente ao quarto, onde reparou nos pingos de sangue no assoalho: seu nariz. Tonto, se atirou na cadeira. Viu a velha como um espectro esparramando-se na cama ao seu lado – convulsionando-se como um inseto virado de barriga para cima, com as patas esmagadas por um chinelo infantil.

Foi a primeira vez na vida que lhe veio com tanta força a palavra morte.

A velha começava a roxear, veias como alienígenas incubados na pele da testa.

“Estou morrendo”, a velha disse finalmente e com esforço, mas sem gaguejar e olhando o velho nos olhos, “os dela tão bonitos”, ele pensou, “violetas”. As mãos da velha em volta do pescoço esturricado, os olhos como a preparação para um salto ornamental de notas baixas.

O velho olhou para a velha e também achou que ela estivesse morrendo. Segurou seus braços e pôde sentir a pulsação de algo prestes a estourar.

A velha dizia palavras sem muita conexão, mas basicamente católicas. O velho foi correndo até a sala, o que quer dizer se arrastando. Atravessou a sala para apanhar sua boina, e o cão epilético, sem rabo, verrugas, oito comprimidos diários, feliz, lhe abanou o rabo.

O velho saiu como estava até a rua: cuecas azuis estampadas com estrelinhas e luas brancas, sem camisa, despenteado, sem cabelos. Correu até a avenida central sem conseguir coordenar o raciocínio, então lhe veio um trecho do “Mau Vidreiro”, de Baudelaire:

Há naturezas puramente contemplativas e perfeitamente inaptas para a ação que, no entanto, sob uma misteriosa impulsão, agem por vezes com rapidez de que se julgariam incapazes.

Isso lhe deu coragem para se atirar na frente de um táxi no meio da avenida central. O taxista não tinha cabelos, mas se comportava como se tivesse. Parecia assustado como se tivesse cabelos, mas não tinha. No banco de trás havia uma mulher escondida por sacolas cheias de detalhes assaltados por grifes, as sacolas e a mulher, ela pintada de batom como um palhaço, ou como uma mulher mesquinha recém chegada à alta sociedade.

“Sai do carro”, disse o velho de cuecas, “tem uma pessoa morrendo”, as mãos sobre o capô.

“Vai te fuder!”, gritou o taxista, finalmente como quem não tem cabelo.

E arrancou com o carro.

O velho voltou correndo, ...vidros que tornem as coisas mais belas..., bastante desnorteado, sentindo marimbondos no seu peito, pernas tentáculos, a marreta do vinho na têmpora, ...mas que importa a eternidade da danação para quem encontrou num segundo o gozo infinito?. A velha... Então precisou sentar.

Acabou encontrando um ponto de táxi, onde havia um táxi, outro saindo. O táxi que havia estava vazio e era antigo. Havia um homem sentado de costas numa cadeira de náilon lendo o jornal. Seus bigodes diziam algo um pouco vago sobre o seu caráter.

“Amigo, preciso fazer uma corrida”, disse o velho.

“Estou ocupado”, disse o taxista, virando a página do jornal.

“Tem uma pessoa morrendo. Roxa, sem ar”, disse o velho.

“Puta que pariu!”, disse o taxista por trás da cortina de bigodes.

Fechou o jornal, entraram no carro, levaram a velha para morrer no caminho até o hospital e, para o velho, até o fim daquele dia, tudo aquilo parecia algo de muito mau-gosto escrito por Charles Baudelaire.

“liev tolstói”

que fetiche
ter nascido
no mesmo dia
em que morreu
Ivan Ilitch.

21.11.06

“celsius”

Não existe febre
é pura consciência
gelatinosa de cismas
Eu bem que gostaria
mas não sei carregar
almas suicidas
Muito mal carrego
minhas próprias muletas
A vida é um gatilho
que implora ajoelhado
por olhos sujos de pólvora
e um último suspiro
das ampulhetas.

20.11.06

"enquanto Juca lia Fausto Wolff no jornal"

Juca e Dato numa manhã de frio, enroscados debaixo de cobertas já não tão limpas, no chão da sala com cozinha embutida. As mãos vermelhas e quebradiças refugiadas em xícaras com café forte e amargo. A chuva estala as janelas e é tão difícil se ver livre da poeira quanto do passado. Os jornais estão espalhados pela sala, com marcas antigas de copos de vinho e algum amor perdido em noites de sono. Dato usa apenas duas meias de lã acinzentadas e uma cueca samba-canção esgarçada. Está fora de forma e ostenta mamas salientes, mas ainda tem belas cochas e se orgulha delas. Juca corta as unhas do pé numa bacia e fuma um cigarro ao mesmo tempo. Com os cabelos presos em coque por uma caneta de cinqüenta centavos, bate as cinzas no tapete isfahan “do tipo polaco” e funga com o nariz entupido por causa da alergia ao pelo do gato. O jornal dobrado no chão.
"Outro dia me chamaram de reacionária porque eu disse que era bom a gente abrir o olho com a Amazônia, antes que ela vire um parque aquático americano", diz Juca olhando para o jornal, cortando as unhas e tragando sem parar.

Dato apenas olha e não diz nada. Odeia cigarros e quem os fuma, com exceção da Juca. Em alguns momentos. Não neste. Depois estica a coluna com os braços para cima. Se sente feliz porque ainda consegue ver as linhas das costelas através da pele. Relaxa novamente. Então olha para suas mamas enrugadas: o tempo não dá trégua a qualquer tipo de intenção beatificante.

No rádio, a mulher tem uma voz nasalada e levemente devassa. Um pouco fora de sintonia, diz:

A seguir, concerto número 1 para piano de Brahms, pela Orquestra Filarmônica de Israel, com regência de Zubin Mehta e Radu Lupu ao piano.

“Radu Lupu, quem?” – pergunta Juca esticando o jornal.

“Um solista...” – diz Dato calçando um pé do sapato.

“Sim, mas um pianista havaiano?”

“Como você sabe?”

“Pelo nome... Lupu... Deve ser nativo.”

“É romeno...”

“Eu achava que Lupu era doença crônica...”

“Lupus...”

“Pois é...”

“Ataca principalmente mulheres brancas.”

“O que causa?”

“Inflamação no corpo, nas juntas, no couro cabeludo... Uma doença africana.”

“Boa forma de vingança.”

Nenhum comentário.

“Mas Lupus não é também uma marca de meia?” – diz Juca lixando o calcanhar.

“Lupo...” – diz Dato.

“Pois é...”

Então Dato levanta e mistura mais conhaque no seu café. Cueca branca de braguilha aberta. Cabelo amassado na cabeça desproporcional. O rosto vincado por dias e dias de dobras de travesseiro. Barba demais, o pescoço tomado. Meias cinzas de algodão.

“Você pensa que é quem, Samuel Spade?” – diz Juca recolhendo unhas do chão.

“Só se você fosse uma daquelas putas dondocas de piteira na boca” – diz Dato calçando outro sapato.

“E digamos que eu seja, ou digamos que eu possa ser uma dondoca puta...”

“Então neste caso, minha querida, eu sou, sim, o Samuel Spade.”
Se beijam no sofá. A um incomoda o mau hálito do outro. Não reclamam mas, em compensação, também não fecham os olhos. A chuva aplaude do lado de fora. As folhas nas árvores se beijam, riem e choram. A gravação de Brahms é tão antiga que faz o mundo inteiro chiar na arranhadura da vitrola feita de madeira e ouro forjado. É quarta-feira, dia da independência, mas parece domingo e todos estão presos de alguma forma, a maioria sem saber. Dato ama Juca que ama Dato que ouve há anos que Juca o ama e diz há anos que ama Juca e pensa há anos que se a ama não deveria precisar dizer tanto que ama Juca. Mas às vezes são ditas tantas coisas que não sobra tempo para o amor. E mesmo no céu não há fogos de artifício em lugar nenhum.

"Uma poça transparente" (Elvis Noronha)

Uma poça transparente
Embora aparente
Ser de água verdadeira
Se olhares com paciência
É apenas aparência
É de água passageira

Mas um poço bem fundo
Que atravessa o mundo
Com sua água bonita
Se olhar sem medo
Não esgota tão cedo
Tua reserva infinita

Uma chuva apressada
Embora encharcada
Pareça temerária
Se olhar daqui do chão
Verás com exatidão
Que é de água temporária

Mas uma chuva carregada
Que causa enxurrada
E não some com o vento
Se olhares confiante
Tua água abundante
Molhará por muito tempo

Com tua poça eu posso
Pois se piso ela se escassa
De tão raso sentimento
Paixão vazia que passa
Mas não podes com meu poço
Que bomba água colorida
Que te engole com amor
E te cospe em seguida
Pois a sede que procuro
É do tamanho de uma vida

Tua chuva molha nada
Nem preciso de abrigo
Dura pouco e se evapora
Não quer ficar comigo
Mas a minha molha muito
Rega plantas e tudo o mais
Pois minha água apaixonada
Sabe o bem que faz
Quando encontra a terra seca
E o solo satisfaz


o poema acima foi uma surpresa enviada por um cara legal chamado Eros Casabranca, que me disse o seguinte:

É um poema de uma pessoa grande, maior que quase tudo. Só não é maior que a paixão que a move.

18.11.06

"Latrocínio na Cidade Baixa"

Sentados onde os estupros aconteciam, pessoas enxergavam coisas reversas através de planetas escuros. Lentes de solidão adocicada, folhas amarelas vomitando pólen, cinzas amarelas amarelas cinzas, segundos suicidas em reviravolta, heranças hesitantes do marinheiro de Whitman, alguns outros pintados de batom esmurrando cérebros, garotos raquíticos com anemia exibindo seus shorts de basquete. Algumas meninas mais bonitas e bem formadas já não sabem como se posicionar e ainda assim continuar no mesmo hemisfério. Aquela mão cheia de dedos que sobe por dentro dela, um punhado de grama lhe tampando a cortina dos olhos, essa poeira névoa coquetel de frutas cristalizadas, essa síndrome sobrevivente, essa poeira... Todos mortos, com óculos pretos, mascando a própria bochecha através de unhas decibéis.

Aftas como séculos de restos dos desejos múltiplos e irrealizáveis. Saltos como a espuma da loucura de alguém. Alguém que talvez houvesse passado a mão na sua jaqueta beat – eles a arrancaram como se fosse o precipício: para longe dos seus quinze anos. De resto – o céu escorria verde mofado de suor sanguíneo – estavam também ali seus traços procurando farpas de sol diante da cegueira lunar. Sua pele marcada pela reclamação da emergência populacional em castas. Talvez a terra verde solar na testa morna da menina pobre que recobrou seu fôlego gelatinoso num chafariz mentolado. Uma mesma menina que, poucos passos antes, tinha me roubado a jaqueta das idéias também. Agora enxugava o soluço cartilaginoso do adeus hesitante, o suor que pouco antes me inventou um livro que eu li tão rápido quanto fiz o último movimento antes do soco na barriga, para não ter que dizer a ela, levada para longe, depois que me deu sua luz, a mesma luz que me falta quando penso nela agora, trapo de brim: morta e escalada por nuvens aflitas.

E assim pude ler o pergaminho do seu tempo. A atitude é tudo o que importa justamente por ser estúpida. Escutava-se o desesperado lamento das coisas que se moviam em silêncio. Valsa muda de ingênua comoção em atitudes metabólicas. Todos bravos idiotas anjos antipáticos cativantes alcoólatras sensíveis que perderam a emoção porque se tornaram cúmplices dos escravos (dela) e depois os próprios escravos (ela sendo arrastada) e era justo. Garrafas em punho enquanto eu pensava em mim mesmo como uma grande farsa fragmentada em rostos sem fim, como o dela, ali, a boca monstruosa, o estômago parindo o medo, uma programação infinita de um mundo incompreendido, engaiolado em si mesmo, esparramado sobre as tripas do meio-fio.

Sua jaqueta, seus quinze anos, minha estrada fatiada em lágrimas de farpas e dúvidas permanentes, quando bem repartidas num filete de carne.

Acordo com quinze olhos fartos dentro das idéias sonolentas e firmes. Cansado de tanto que o nada tentava nadar e nadava tanto que nada acontecia entre tantos entretantos.

Cansado – totalmente cansado – dessa mentira pavorosa em letras preocupadas com fins históricos, que se amontoam como vermes nas prateleiras que assistem ao estupro. Dessa inútil contradição de espécies disciplinares (talvez uma sirene, talvez uma posta) da disparidade absoluta entre coisas tão bem-colocadas.

Desisti de esperar e fui, embora meu fantasma mais sensato tenha me aconselhado a escolher o caminho do aconchego teórico. Pobre viúva virgem, com frio prostituto, sem sua jaqueta... Te levo para casa. Não, não se canse ainda. Vive-se o que se pensa, e não o contrário. Sem fim que o fim é parar. Somos todos essas caixas vazias, essas saias insaciáveis, essas pernas suadas de passos mudos e latentes em assoalhos distantes e fiéis, esses corpos coloridos estendidos em tesão agudo frustrado guardado placidamente para o livre entendimento de feridas hemofílicas intactas através de categorias para o fim dos tempos. Mas não há fim dos tempos. O fim dos tempos é agora, está sendo, já foi, não há motivo por que falar no fim dos tempos. Somos o tempo e como ele somos também seu fim e começo. Não se preocupe com o fim dos tempos, querida, posso te chamar de querida, não posso?

Carnes secretas entranhadas em cada esquina esfaqueada. Entre cada cerca contaminada de passos tortos por um desejo comum. Um carro de janelas abertas cheirando a acordos ditatoriais através de charutos molhados. Um pedido de perdão do exterminador. Uma rosa, pelo romance. A explicação dos moinhos de vento numa parede com tinta acrílica. Um salto em órbitas oftalmológicas. Um bar com o nome do pintor preferido. Cabeças nos colos de poetas, uma briga de casal – a mulher bem mais velha se defendendo de um canalha saxofonista – um sorriso, outro, mais outro. Dois apertos de mão, uma canção chorando em pânico. Gritos espremidos em sussurros pré-matinais. Outros tantos corações apertados e divinamente satisfeitos – desamparados pela história dos homens, pela derrota dos sonhos prévios, pelo alvoroço das flores mortas (levadas pela gilete do vento) as quais amamos como flores rançosas, e a quem devemos tudo. De quem precisamos nos livrar: o adeus de cada dia.

Precisamos vê-los todos partir como jaquetas – eram dois, três? – sem lenços ou rodeios. Nada disso importa agora. Tudo é possível quando os sonhos deixam a realidade pequena. Adeus a tudo que está morto. Para haver o novo dia em que o sorriso patético dê lugar ao grito primitivo do diálogo, mesmo que diante do espelho: duas carreiras, dez braços apontando para a – mil braços! um milhão! – mesma direção sem dizer adeus, pensando bem (pensando?) sem dizer perdão. Dez braços reduzem a distância do sonho. Dez sonhos reduzem a distância do espaço. Dez passos reduzem a distância do soco. Mas não é ela ali, sou eu.

Acordo recíproco e completo de alma, mas em outro caminho distante do seu trançado de brim: no estômago secreto da minha mais honesta mentira vermelha. Que me escorre pelas bainhas.

16.11.06

“poesia e queda”

O tempo
é a areia
do homem
Dessa areia
uns poucos
– loucos? –
fazem castelos
onde se perdem
pelos corredores
A poesia é sempre
a diluição do tempo
A poesia será sempre
a queda de um castelo.

14.11.06

"o erro do significado"

O significado
de uma palavra
dura o tempo
que você souber
persistir no erro.

O significado
de um amor
dura o tempo
de uma dúvida
bem concebida.

O significado
de uma amizade
dura o tempo
que dois puderem
dizer não juntos.

O significado
de um deus
dura o tempo
que um homem
precisar de outro.

O significado
de um poeta
está nas palavras
que não existem
no seu poema.

O significado
de um poema
está na falta
do que não há
nas palavras.

O significado
de um erro
dura o tempo
da frase certa.

O erro somos nós.

13.11.06

“O intelectual”

Aqui no parque existe um chafariz desativado aonde os filhos das prostitutas vêm apanhar sol e gripe fugindo dos preservativos usados e objetos infectados cortantes aparentemente com sucesso pelo meu ângulo de visão ausente de vista.

Dia desses estava eu sentado às margens do tal chafariz mais uma vez o truque dos óculos de sol forjando uma presença solene comumente confundida com artrite.

Estava com este mesmo caderno de anotações no qual escrevo agora tentando em vão endireitar pensamentos preconcebidos quando duas dessas pequenas criaturas mais felizes do que eu pobre animal envelhecido passam um já com bastante verme na barriga e cueca vermelha de náilon o outro com aparência abatida e um pedaço de pau na mão.

Este último tão tristemente e com olhar beatífico então olhou para mim e disse:

“ô barbudo pára de estudar um pouco ô!”

"a queda"

Cabelos caem a casa cai
poemas caem calças caem
caem os dedos cai o sol
cai a chuva caiu o mar
Agora outra vez vai cair
o sonho que não amanheceu

Inútil é lutar contra o impossível
inútil e extremamente necessário
Porque se a queda é imprevisível
a queda é inevitável.
Então façamos dela beleza maculada
besta indomável, fúria pagã, cura
façamos dela beleza taciturna
beleza de pedra bruta, coração de lava
que permanece irretocável sob onda submersa
a não ser por Netuno ou então São Pedro
coração triste e exposto através dos séculos
coração faminto coração negado
coração em queda

Cem bastilhas caem todos os dias
e não tocam a tua margem
Caímos ao amar caímos ao vencer
ao nascer do dia à noite caímos lassos
conforme brotam pêlos e caem as carnes
caem os juros caem os muros os porres
Cai um sobre outro muro mudo
submundo de cobre
Muros de paciência!
Muros de evidências!
Quedas institucionalizadas...

Perdemos nosso tempo
pensando no que caiu
por que caiu quando?
Não demos conta da queda

O canto dos suicidas invertebrados
o engulho das aves de asas amputadas
a lubrificação das virgens esquecidas
a gripe final do tenor com sífilis...
O erro grave de dramatizar a queda
mas então que façanhas
que dores, que tréguas?

Síndrome de alguns anjos-poetas
a queda é fruto de não se contentar com a vida
que é a morte de passagem pelo nada
da existência universal plena e secreta

Portanto tirano perdulário amante
presidente secretário de finanças
carcereiro da morte mercenário
você colarinho branco ambulante
vômito anão mau hálito eunuco
crente pálido polido compreensível
você com buracos de culpa na cara!

Esquece o que te parece imprevisível
esquece o que te parece inevitável
Anuncia o que te soa agora incompreensível
nega tudo aquilo que te parecer vingança amarga
Esquece as criancinhas felizes que te atormentam

Preocupado com pequenos detalhes (inúteis)
poda com carinho teus galhos de ameba
poda de joelhos na terra desertada a tua queda

Depois esquece tudo dá umas voltas e morre
Então volta e vê o trajeto do teu peito
aquilo que foi abandonado por medo
para serventia da liberdade estagnada em gaiolas
para ser possível se sentir inteiro na solidão
Tudo caiu como a casa caiu o membro amputado
a capa do vilão a máscara das mortes elétricas
Caímos todos em vão, não há porque temer o fato
Abraça portanto teu vizinho caído e esquece o resto
(por que não?) esquece a culpa esquece a escotilha
somos todos marinheiros de primeiras viagens
Não há o que perder nessa viagem ridícula
se as coisas forem tratadas com carinho
Pois longa é a queda (não há tempo para suplícios)
e muito curta a viagem.

12.11.06

"sonho revelador"

Um cientista maluco prêmio Nobel
havia descoberto que de fato a pele humana
era alguns milímetros cúbicos menor
que o volume corpóreo que ela cobria
E assim ele chegou à conclusão de que as pessoas
só eram totalmente verdadeiras nuas
De modo que a maioria vestiu mais um casaco

10.11.06

"A Morte Absoluta" (Manuel Bandeira)

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.


Essa relíquia quem mandou foi o Fernando Ramos, editor do Jornal Vaia, sob coerente justificativa:

"Justificativa? E precisa?"

Não, Fernando, dessa vez não...

"Ausência" (Drummond)

Por muito tempo achei que ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba de mim.

(com o pensamento em Ana Cristina Cesar)

Quem enviou esse poema urgente foi Natércia Pontes,
com a seguinte justificativa:

"porque os dois são fodas".

É justo, justíssimo...

“anti-anti”

reparem que
boa parte
da chamada
arte de vanguarda
não passa
de uma tentativa
covarde
de um intelectual
sair do próprio
corpo.

mas arte
é efeito do corpo
e o corpo pertence
à arte
nunca o contrário.

corajosos mesmo
só os viciados.

9.11.06

“Perdido na Ilha de Man”


Pode ser que haja algo errado
inclusive talvez seja provável
Agora sou um homem que compra
Incenso.

Os ladrilhos do corredor em chamas
anunciam em limo a peruca cinza
da corrupção sutilmente suturada
Escorrem líquidos de tristeza inútil
pelas janelas frígidas de cristal barato
Enquanto isso eu ando tonto e absurdo
pelas ruas procurando a essência do meu
Incenso.

Outro dia meu avô (certamente
há algo errado) saiu do seu lugar
poltrona epilética e cão xadrez
e foi ao banheiro aparar os pêlos
(que pêlos?) de cada veia narina.
Enfureceu à siciliana por causa do
Incenso.

Ele olhou e disse, “que cheiro brabo!”
Eu virei e pensei: dentadura no copo
Então ele disse, “vai ter futebol na tv”
E eu fui até o banheiro correndo muito
pois por um momento, por um minuto
achei que a vida valia tanto quanto aquele
Incenso.

8.11.06

“Casais em Crise”

Feliz quando emudece
quando ando meio triste.

Sina dos ansiosos e descamisados
sonhar com quem lhes puxe pela mão.

Mas observo ao meu lado os olhos gritantes
de homens e mulheres desabitados forçados
a se calar pelo tanto que falam com ninguém.

“parênteses”

mulheres passam como os crimes do governo
subterfúgios de náilon violados por decotes
vozes saúvas imploram com medo
pelo triunfo da agonia renegada
através de êxtases calculados
à medida do sossego impossível.
decidiram por mim que preciso ficar sozinho
(as pernas doem, os porres já não são os mesmos)
mas do meu escalpo pululam multidões (fantasmas).

“condominal”

fui denunciado criança sem pele
passei em comichão pelo tiro do estilete
devagar sempre sobressaindo em brilho, o pus
de repente uma vaga luz me embota o estômago
acrescento ao bolo de merda pela boca
e não sai nada.

nasci no meio de uma terra infértil sob enfoque duro
na casa ao lado farta família negocia enquanto janta
um prato ziguezagueia até cair no chão e explodir
os olhos são da mesma propriedade que os pratos
todos se amontoam no chão atrás de quê?
jantar de vidro.

7.11.06

"Liberdade" (Carlos Drummond de Andrade)

O pássaro é livre
na prisão do ar.
O espírito é livre
na prisão do corpo.
Mas livre, bem livre,
é mesmo estar morto.


O poema acima foi enviado pela querida Julia Mendes, pelo motivo abaixo:

Sabe que poema que fica é poema pegando naquele ponto das costas que você não alcança direito... Esse, li nos meus 13 anos, comprei um livrinho do Drummond, folheava as páginas e escolhia para ler só os pequenos poemas. Sabe né, preguiça de adolescente. Ansiedade de criança. Não por menos ser livre: "livre bem livre é mesmo estar morto". É o meu ponto. Nunca alcancei a liberdade nas costas.

6.11.06

"Soneto do Amor Total" (Vinicius de Moraes)

Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te enfim com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.


A obra-prima acima foi enviada por Paula Merlino, sob a seguinte justificativa:

Léo, acho que Vinícius foi o primeiro poeta que eu conheci e amei, no tempoem que eu ainda achava que "no meio do caminho tinha uma pedra, tinha umapedra no meio do caminho" era só mais uma das músicas do meu pai (ainda nãohavia para mim o Drummond)...Esse soneto eu descobri quando era adolescente e me apaixonei pelo meuprimeiro namorado... Fiquei sem entender como ele conseguia traduzirexatamente o que eu sentia, e acho que continua me traduzindo sempre que meapaixono de novo. Por isso acho que é o mais especial, pois participou demaneira especial de um momento muito especial pra mim: o momento em queencontrei o primeiro de todos os muitos homens da minha vida.

5.11.06

"Estou com 25" (Gregory Corso)

Com o amor minha loucura por Shelley
Chatterton Rimbaud
e a tagarelice-carente dos primeiros anos
já fez correr de um ouvido a outro
EU DETESTO OS VELHOS POETAS!
Especialmente os velhos poetas que recuam
que consultam outros poetas velhos
que falam de sua juventude em suspiros,
dizendo: - eu fiz estes naquela época
mas isso foi naquela época
foi naquela época -
Ah eu faria calar os homens velhos
diria a eles: sou amigo de vocês
o que vocês já foram um dia, através de mim
serão novamente -
E depois à noite na intimidade de suas casas
rasgaria suas línguas que só sabem se desulpar
roubando-lhes os poemas.

4.11.06

"Procura da Poesia" (Carlos Drummond de Andrade)

Bom, eu tive que escolher essa porque me parece uma das poesias mais completas de Carlos Drummond de Andrade.

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

"poemais curtolindo"

Logo de cara recebi uma importante remessa de de C., com dois poemas antológicos dentro, para o concurso “poemais curtolindo”. C. sugeriu duas peças: primeiro, "Tabacaria", de Álvaro de Campos (um dos disfarces líricos de Fernando Pessoa); segundo, “Contagem Regressiva”, da poeta-musa Ana Cristina Cesar.
C. justificou assim suas escolhas: "tabacaria me fez despertar para Pessoa, contagem regressiva me amassa o peito. queria sentir aquela dor. roubá-la do sujeito poético da ana e mastigá-la todinha."
Como o primeiro poema é longo achei melhor fazer um link para ele abaixo:
O segundo é poema curto, mas igualmente longo. Segue abaixo. Deliciem-se... E mandem seus poemas.

“Contagem Regressiva” (Ana Cristina Cesar)

Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos.

3.11.06

“Os Fugitivos”

As pessoas se escondem atrás de rimas
mas não conseguem alcançar palavras.

As pessoas se escondem atrás de cílios
pintados enquanto os olhos se enganam.

As pessoas se escondem atrás de dramas
mas não conseguem ver quem não chama.

As pessoas se escondem atrás de fatos,
não representam a insistência do mar.

As pessoas se escondem atrás de nós,
nós que já não estávamos mais lá.

1.11.06

"poemais curtolindo"

ESTÁ ABERTA A SESSÃO "POEMAIS CURTOLINDO", NA QUAL CADA LEITOR, QUALQUER LEITOR, ME ENVIA UM POEMA QUE TENHA MARCADO A SUA VIDA E ESCREVE ALGO SOBRE POR QUE TER ESCOLHIDO ESTE POEMA. PODE SER QUALQUER POEMA, DE QUEM FOR.
PUBLICAREI, COM NOME DO REMENTENTE, CONFORME POEMAS FOREM SURGINDO.
OS TEXTOS DEVEM SER ENVIADOS PARA O ENDEREÇO leomarona@gmail.com E DEVEM SER CURTOS, NA MEDIDA DO POSSÍVEL, PARA O CASO, POSSÍVEL?, DE EU RECEBER VÁRIOS POEMAS JUSTIFICADOS.

“Elegia ao Erro Primordial”

O sexo é acima de tudo
um processo desequilibrado
sem igualdade.

Ao contrário do que exigem os pares
e do que dizem hipócritas e especialistas,
o sexo não é uma negociação estabelecida
em percentagens.

O sexo é um jogo de azar
injusto: é violento,
desmedido e sujo.
Máfia russa roleta
entre decapitados de
coração partido.
Muitas vezes estúpido,
estupidificado.

Tal é a real raiz humana
e sua tranqüila tragédia:
permanecermos greco-romanos
mesmo insanos, mesmo cegos,
mesmo mortos.

É o que nos torna verdadeiros,
é talvez o que nos torne poéticos,
apesar de cúmplices desonestos.

Aliás, de acordo com a espécie,
se observada com afastamento,
o amor é a maior tagarelice,
o amor quase nunca é verdadeiro.
Veja só, o homem: desaparecendo!

E normalmente a verdade não é fácil
de suportar no mundo das aparências.
A verdade não é equilibrada nem
o mundo das aparências utopias é.
A verdade nem mesmo é verdadeira!

E as mulheres desequilibradas
são portanto mais livres, mais inteiras.
E isso as torna sexualmente mais verdadeiras.
O sexo, que é a vingança da vida contra morte.
E que talvez seja a única verdade total, porque nega.
Afinal, as relações humanas são apenas
extensões sociais dos nossos instintos e erros:
os mais vergonhosos, os primordiais.

E para todos resta apenas conhecer o amor.