A imaginação é a memória que enlouqueceu
(Mario Quintana)
Não sei se estavam todos mortos ou se respiravam por guelras. Além disso, não saberia dizer se na minha imaginação ou dentro dos meus olhos – e qual seria a diferença? – havia uma praça árida com brinquedos feitos de troncos ou ossos, que se despedaçavam um a um como sonhos, para crianças sem pernas, mas felizes, brincarem.
A praça era filha de uma corredeira com um rio de alma enrijecida. No meio da praça havia uma árvore, retorcida como mão reumática, que era órfã do vento, pelada e seca portanto, tal qual um namibiano. Esta árvore chorava muito de frio, mas a corredeira e o rio roubaram suas lágrimas e a largaram dura na terra batida – os galhos lhe rangendo a alma – como se fosse um vendedor de camelos.
Apareci por entre folhas molhadas de inveja e desejos inapeláveis, sem avisar às estátuas humanas, que por lá circulavam com os olhos costurados, sobre o meu pequeno problema de ordem sentimental. Minhas mãos tinham as pontas de gelo, de modo que meus pés eram ralos ósseos por onde escorriam gotículas de verdades liquefeitas que a mentira, por sua vez, impunemente encerrou numa frase de efeito. E não seria a verdade apenas uma mentira faminta que se cansou de esperar e morreu?
Uma voz ecoou do esconderijo da tristeza e, aparentemente, apesar das sobrancelhas pontiagudas do pasto seco, apenas eu ouvi:
“Lá vêm os almas-de-gato!”
Olhei para cima e, das profundidades do cinza holocáustico, vi formar-se uma nuvem que se parecia muito com a minha própria cabeça, de lado, como esperando uma passagem para seguir em frente entre os montes necessitados de alguma explicação. Fiquei feliz vendo a cena e imaginando coisas irrelevantes, como uma maneira de ser nuvem, até que o barulho de muitas asas se batendo, como palmas para Maria Callas, ensurdeceu as folhas que murcharam imediatamente e rodopiaram pelo chão como em desespero ou valsa trágica. Os almas-de-gato haviam chegado, me disse um velho ruivo que, por causa do mato moribundo e do cheiro suicida ao redor, me lembrou Van Gogh, depois um avô alcoólatra de olhos inexplicáveis que cantava Lupicinio Rodrigues, depois uma fogueira com vício em cinzas.
“Quem são eles?”, perguntei ao velho.
Ele se virou como se me reconhecesse e não gostasse muito disso.
“Eles são você”, disse, “só que muito melhores...”
“Eles voam?”, continuei, intrigado.
“Garoto”, ele disse irritado, “e por acaso você nunca viu uma alma?”
“Nunca vi”, disse comigo mesmo, esperando para cima. “Elas voam então...”
O velho saiu de perto e se acocorou sobre uma pedra. Sacou um pincel imaginário e começou a traçá-lo no ar, sem tinta ou tela. Fiquei olhando aquilo, convencido de que aquele velho era mesmo Van Gogh, ou maluco, ou estava salvo. Eu sempre soube de histórias nas quais grandes personalidades ressurgiam em momentos de pouco movimento, para pessoas especiais. Mas não me convenci imediatamente de que eu pudesse ser uma dessas pessoas.
Portanto me aproximei do velho mais uma vez. Ele continuou traçando no vazio.
“Desculpe, mas preciso te perguntar...”
Ele se levantou imediatamente, sem me olhar, e subiu na árvore seca que tinha sido assaltada pela corredeira e pelo rio, seus próprios pais, como num plágio de Shakespeare. Subiu até a copa vazia muito rapidamente, a princípio sem a ajuda dos pés, como se flutuasse, e ali se aboletou feito um monge e continuou a traçar o ar com seu pincel inimaginável.
Aquilo não era possível. Me aproximei da árvore. Balancei a cabeça. Nada mudou. As palmas das asas aumentavam gradativamente de intensidade e, assustado, me joguei no chão, mesmo que não quisesse fazer isso. Alguma coisa me levou ao chão. Alguma coisa mais forte. Na verdade, o chão parecia ter se desnivelado subitamente, o que me derrubou. Olhei para cima com o rosto sujo de terra. Ali estava o velho com seu pincel fantástico, a árvore aleijada que agora parecia sorrir, o céu pequeno-burguês com um charuto na boca, as folhas dançando a mazurca. Olhei para os lados, quase surdo com o barulho que vinha de dentro do absurdo primordial. Todos os mortos haviam desaparecido. Restavam apenas ossadas de peixe, espalhadas pelo chão feito de veias furtivas. Gritei:
“Ei, velho! Quem é você? E o que está pintando aí em cima?”
Ele ria como se esperasse pelo que já soubesse. Continuou de pernas cruzadas, a barba ruiva como uma labareda fanática. Olhou para baixo depois de mastigar seu pincel delicadamente e lamber dedo por dedo.
“O problema de vocês é que não sabem esperar por nada”, disse por trás de um sorrisinho sórdido. “Por isso nunca vão reconhecer a mágica”.
“O problema é que não vejo nada”, eu disse.
“Isso porque você fala demais”, ele disse enquanto limpava a terra dos joelhos.
Desceu da árvore como subiu, fez o movimento de como se estivesse recolhendo sua palheta e sua tela do chão – mesmo que não houvesse nada ali –, olhou para mim com seus olhos de orquídeas temperamentais, tristes na sua caixa de ossos, mas tão límpidos, tão brilhantes e cheios de vida, tão nus que me pareceram mortos. Ou feitos a tinta. Ou parte de algum sonho amarelecido.
Ficamos assim por um tempo: narizes colados. Então ele apontou com o dedo para cima, ainda sorrindo como quem bebeu demais. Com a outra mão tirou o chapéu em reverência.
“Você deveria saber”, ele me disse, “que é quando se esquece que se sabe mais”.
Então uma revoada de pássaros brancos, em movimento sincrônico, surgiu do vão entre as nuvens, fez sorrir as pedras e aterrissou sobre os galhos secos da árvore deserdada. Esticaram suas asas ao mesmo tempo, para se espreguiçar, e depois se transformaram em bolinhas de algodão. A árvore seca ficou toda branca. Exatamente como a foto que um dia se apagou da minha memória sépia. E era como se eu a tivesse recuperado ali, naquele instante, por entre a hesitação do vento e a desolação dos grilos. Bem ali, no delicioso mistério das rugas do velho ruivo de olhos bonitos. Como se ontem amanhã já tivesse sido. No momento exato em que, dentro de mim, algo vago e firme se mexeu. Algo que havia adormecido na cegueira dos pedidos escritos nas linhas do medo.
O velho abriu a boca com o dedo em riste, sorriu mais uma vez, dessa vez um sorriso de dever cumprido por estar incompleto, vestiu seu chapéu de feltro e desapareceu na neblina que o acompanhava, não sem antes dizer:
“Preste menos atenção e verá tudo”.
No que senti algo me molhar os ossos, enquanto a sincronia dos pássaros enviesava os olhos do romance perdido. Depois decolaram como os garranchos do absurdo, que insistimos em não ler porque preferimos soletrar com os olhos fechados para dentro.
Andei muito, andei sozinho. Sem saber o que fazer com aquelas imagens. Sem saber onde guardá-las. Minha inclinação era anotá-las, por insegurança. Mas palavras nunca são suficientes quando se trata de olhos. Pensava se de fato alguma coisa poderia ser feita daquilo, ou de mim, ou se não passávamos da redundância de coisas não feitas. Pensava também em tudo o que havia para ser visto, em tudo o que me havia passado despercebido, porque eu tinha falado, tinha falado quando precisava escutar, tinha falado demais sobre o que me calava fundo, por medo do silêncio das coisas inauditas, que comandam os erros e as paixões. Lágrimas me rolavam pelo rosto, caudalosas e grossas como pinceladas impressionistas. Não entendia porque chorava. Não sabia para onde estava indo. Nem as lágrimas. Sentia falta delas, mal me escorriam. Sentia fraqueza, vertigem, como se tivesse respirado pela primeira vez, aos borbotões de placenta. Como se o abandono das lágrimas justificasse algo imperdoável. Algo sólido em mim que se havia dissolvido em tudo aquilo que eu não pude desejar com mais força, pela necessidade de ter.
De repente pensei que gostaria de ter sido como aquele velho pintor de fábulas, que apenas coloca o chapéu e parte sorrindo. Procurei por ele. Procurei como se estivesse procurando pela minha memória enlouquecida. Procurei pelos cantos da floresta órfã, pensando no quanto não soube esperar. No quanto palavras haviam enganado meus anseios mais legítimos.
Quando olhei para trás estava tudo cinza como um pedaço de verdade esquecido num quadro dentro de uma gaveta úmida. Havia crianças no parque, nem felizes nem tristes, apenas fadadas. Uma árvore saturada começava a dar as primeiras flores, todas implorando em vão por uma outra chance. Havia um velho de boina pintando um quadro ao pé da árvore.
Corri feito louco até o velho de boina. Era um velho pálido, magro, entrevado, um tanto gótico, com olhos fundos e distantes. Usava suspensórios esgarçados e havia uma garrafa de vinho barato ao seu lado, derrubada no chão. Mordia a língua com a testa retraída. Olhava para a árvore, depois para longe, então tirava medidas com o polegar. Contornei seu espaço para ver o que pintava. Era um menino sentado num banco de pedra. Um menino não muito bonito, mas muito atraente, que chorava lágrimas amarelas. As lágrimas iam dos seus olhos até a copa da árvore.
Olhei em volta, na busca do menino. Em cima de um banco de pedra sujo o encontrei: não tão menino, não tão atraente, parecia mal-tratado pelo tempo, meio trêmulo, com os sapatos desamarrados, as roupas esburacadas fora de estação, cercado por crianças revoltadas, fustigado pelo vento cínico, anotando num papel amarrotado umas mentiras sobre aquilo que foi perdido e que portanto precisava ser reinventado em olhos, para que ele pudesse se esquecer de como havia perdido os seus – ou os meus.