no dia em que eu não
estiver mais aqui,
um sol novo se abrirá
nos corações pulsantes,
as aves estarão no chão
se debatendo, pequenas e grandes,
por um pedaço histórico
de pão adormecido.
reconhecer-me-ei, ó
antigo, nas pequenas aves
que, sem comer,
alegram-se, e poderei assim
dar o pulo fremente na
direção do fantasma,
para entrar na ciranda primária
do esquecimento.
no dia em que eu não
estiver mais aqui,
haverá um sorriso
modesto de um jovem sensível,
porque um velho muito
velho, de suspensórios,
passará inclinado pelo
vento com a bengala para cima,
como se assim falasse
algo secreto
no dialeto incompreensível
dos velhos e de deus.
no dia em que eu não
estiver mais aqui,
não haverá mais
cigarros duvidosos fumados nas janelas,
por um dia apenas, os
que me amam
sentirão enfim minha
presença que dali escapa,
deixando ao menos um
abajur sem lâmpada num canto,
e no escape haverá o
instante em que tudo que é presença
afirma a adorável
encarnação do mistério da terra em nós.
por um instante, nesse
dia, por não mais que um instante,
saberão os que sofrem
algo a mais
sobre sofrer e
perseguir o sofrimento, algo além
dos conselho
sobrepostos por lágrimas,
algo além do corpo
segundos antes da convulsão.
saberão que a convulsão
traz consigo, segundos antes,
a claridade do que em tudo
está contido,
e a escuridão ganhará
um feixe de luz azul,
diferente dos filmes de
ficção científica, meu pai,
aqui registro: amo-te,
pai, e tudo o que fazemos neste mundo
tem esse vago propósito
de dar conta do que em nós é menos,
menos mundo e mais do
que está diante dos nossos olhos,
talvez infelizmente –
quem sabe não sabe, sabe apenas que
no dia em que eu não
estiver mais aqui,
não serão necessários
olhos, nem mesmo os teus, amor,
azuis como nunca o
foram em verdade para meus olhos
de cílios longos como é
longa a dolorosa incompreensão
da qual agora posso
fazer meu riso, e tua mão secará
contra a minha ainda
uma última vez, e compartilharemos
o raro frio entre os
que se amam sem dar respostas
a perguntas mudas, para
tocarmos no que se espalha
ao ponto em que se
comunica; um peixe chorará,
um polvo rebentará seus
tentáculos, os amigos
farão um freio súbito
para que se respire,
uma vez apenas e para
nunca mais, a terra preciosa
de que não
compreendemos os pontos,
e produzimos vírgulas
como grampos em nossa cruz.