Existem coisas para as quais só a alma tem explicação. Coisas que não estão nas estatísticas televisivas. Nem nas rodas sonolentas de comentaristas egocêntricos sem cabelos, pagos pelas suas sobrancelhas. Nem mesmo na agressividade do texto do seu cronista preferido. Elas estão em outro lugar. Num lugar de onde não se espera nada e do qual se duvida. Um lugar de onde nada vem e para onde tudo vai. Coisas que independem do que sustenta a carne. Dessas coisas da alma, sobre as quais tanto se fala e pouco se sente, Ronaldo Nazário perdeu dez quilos ontem. Acredito numa forcinha paralela do Bussunda.
Galvão Bueno está muito parecido com meu avô italiano: dizendo os nomes das ruas logo depois que as ultrapassamos. Ele simplesmente não consegue fazer mais nada certo, na hora certa, da maneira devida. Meu pai diz que é um preguiçoso. Ele conheceu Galvão Bueno. Trabalharam juntos. Me pareceu, pelas suas descrições, um bonachão. O colar pega-rapaz apertado no pescoço e o cabelo mergulhado no gel fortalecem a hipótese. Talvez seja mesmo um preguiçoso, não importa. Mas ele vez por outra diz umas frases sem pensar, puro instinto, que ultrapassam a sua incompetência – são suas frases mais passionais – e talvez seja isso mesmo um tipo de delírio da velhice (no caso dele, precoce, segundo meu pai, pela preguiça), a mesma que sustenta Zagallo, uma espécie de medalhão da sorte – e na verdade esse texto todo é apenas sobre isso –, que geme como se esperasse a extrema-unção, mas é extremamente premiado pela vida, como um exemplo do que não somos, e por isso Zagallo é unânime sem burrice, contrariando Nelson Rodrigues, pois todos sabemos que ele não é mais necessário para nada, assim como Galvão, mas, como eu disse, há coisas de alma sobre as quais não sabemos nada, então deixamos os dois velhos nos seus lugares, como múmias carinhosas, um no banco, outro debaixo dos fones de ouvido, só por elas, pelas coisas sobre as quais falamos sempre, como se com certeza delas, mas que com uma lufada nos deixam recolhendo cacos de dúvida.
Não queria falar sobre isso. Tudo isso não passa da flor do espetáculo. E tratando-se de um espetáculo, espera-se magia. Aí chegamos ao ponto exato, que acabou de me escorrer pelos dedos outra vez, justamente porque é exato, e meus dedos não. Não importa de que tipo de magia se fale, o importante é que encha a alma. A vida só se mantém com certa dose de magia, sempre acompanhada de nostalgia e medo. Um menino que dorme numa caixa de papelão e de repente olha uma estrela cadente no céu. Um ricaço daqueles de bochechas cor-de-rosa, pouco antes de terminar seu quinto uísque, minutos antes do último enfarto, ouve a voz de sua velha mãe costureira por trás das cortinas, e lhe parece que nunca viveu antes disso. Normalmente são pequenas coisas, que carregamos para sempre, ou que nos carrega para sempre, prefiro dizer, porque somos marionetes crentes, e essas coisas são leves como pluma, elevadas acima do que se possa falar sobre elas, como insisto nesta crônica inútil.
Ontem tivemos muitas pitadas delas. Quando o Japão fez o gol, aliás, um belo gol, por mais que Dida não precisasse ter se agachado, pensei comigo: “agora vamos saber que time é esse”. O time passava bem a bola, mas ainda muito carregado do estilo prancheta sem linhas do Parreira. Passes exatos para lugar nenhum. Caminhávamos para mais alguns minutos de sofrimento, nos quais sempre me pego pensando: “por que eu sofro pelo que esses caras não fazem?” Isso não sei explicar. Seria ainda mais inútil. É leve demais. Não vou carregar esse sentimento puro, singelo, desnecessário e até mesmo estúpido do torcedor com palavras. Seria injusto. O gol de cabeça talvez tenha sido um presságio de que as coisas seriam ainda mais estranhas.
No segundo tempo, tenho a convicção de que algo aconteceu enquanto Ronaldo vestia as chuteiras com dificuldade, enquanto Ronaldinho Gaúcho olhava sua cara feia suada no espelho, enquanto Juninho pensava que deveria ter feito a barba. A mágica!
Ela esteve na tabela entre Ronaldo Gaúcho (existem boas jogadas, existem jogadas de gênio) e Ronaldo Gorducho, ou no lançamento do primeiro para Cicinho, ou na régua exata para Gilberto (Roberto Carlos deitado como Marilyn Monroe), ou na cavalgada celestial de Robinho área adentro – um deslize dos deuses. Foi o jogo das provas de aritmética reprovadas pelo conhecimento dos analistas de formação técnica. Um jogo tão exato que não admite cálculo. Um lance decidido por estrelas meio apagadas, como diria Mario Quintana, se ainda estivesse por aqui. Dez quilos e meio a menos para um homem que insiste em se provar para hienas. O jogo das almas esteve em campo, quando um zagueiro de asas dinâmicas alçou vôo pelo coração do milagre, como sempre, na hora certa da fuga de sua timidez harmônica. Pode ser que não ganhemos mais nenhum jogo. Pode ser que tenha sido como foi porque o time do Japão é muito ruim. Ou, mantendo a minha teoria, porque Zico e Copa do Mundo são como um paquistanês e um indiano num elevador enguiçado. Essa vitória de ontem não garante nada, nem é base de raciocínio para tese alguma de como ser campeão. É justamente o contrário disso. É prova de que raciocínio lógico e futebol se constrangem. É a diferença entre assistir falando e agarrar calado. Algum de vocês prestou atenção nos olhos do Juninho Pernambucano enquanto ele comemorava seu gol? Estavam vermelhos, furiosos, quase maus. Aquele vermelho carrega tudo do que o futebol precisa. O resto é papo furado, estatística, não vale uma vírgula.
E Galvão Bueno, por mais que os tempos tenham sido talvez traiçoeiros com ele, oferecendo com facilidade luxos e benefícios por pouco em troca, disse uma das frases pelas quais eu continuo assistindo aos jogos do Brasil através da sua narração, logo após o segundo gol do nosso anjo gordo: “Não há mais ninguém na frente dele!”
Galvão Bueno está muito parecido com meu avô italiano: dizendo os nomes das ruas logo depois que as ultrapassamos. Ele simplesmente não consegue fazer mais nada certo, na hora certa, da maneira devida. Meu pai diz que é um preguiçoso. Ele conheceu Galvão Bueno. Trabalharam juntos. Me pareceu, pelas suas descrições, um bonachão. O colar pega-rapaz apertado no pescoço e o cabelo mergulhado no gel fortalecem a hipótese. Talvez seja mesmo um preguiçoso, não importa. Mas ele vez por outra diz umas frases sem pensar, puro instinto, que ultrapassam a sua incompetência – são suas frases mais passionais – e talvez seja isso mesmo um tipo de delírio da velhice (no caso dele, precoce, segundo meu pai, pela preguiça), a mesma que sustenta Zagallo, uma espécie de medalhão da sorte – e na verdade esse texto todo é apenas sobre isso –, que geme como se esperasse a extrema-unção, mas é extremamente premiado pela vida, como um exemplo do que não somos, e por isso Zagallo é unânime sem burrice, contrariando Nelson Rodrigues, pois todos sabemos que ele não é mais necessário para nada, assim como Galvão, mas, como eu disse, há coisas de alma sobre as quais não sabemos nada, então deixamos os dois velhos nos seus lugares, como múmias carinhosas, um no banco, outro debaixo dos fones de ouvido, só por elas, pelas coisas sobre as quais falamos sempre, como se com certeza delas, mas que com uma lufada nos deixam recolhendo cacos de dúvida.
Não queria falar sobre isso. Tudo isso não passa da flor do espetáculo. E tratando-se de um espetáculo, espera-se magia. Aí chegamos ao ponto exato, que acabou de me escorrer pelos dedos outra vez, justamente porque é exato, e meus dedos não. Não importa de que tipo de magia se fale, o importante é que encha a alma. A vida só se mantém com certa dose de magia, sempre acompanhada de nostalgia e medo. Um menino que dorme numa caixa de papelão e de repente olha uma estrela cadente no céu. Um ricaço daqueles de bochechas cor-de-rosa, pouco antes de terminar seu quinto uísque, minutos antes do último enfarto, ouve a voz de sua velha mãe costureira por trás das cortinas, e lhe parece que nunca viveu antes disso. Normalmente são pequenas coisas, que carregamos para sempre, ou que nos carrega para sempre, prefiro dizer, porque somos marionetes crentes, e essas coisas são leves como pluma, elevadas acima do que se possa falar sobre elas, como insisto nesta crônica inútil.
Ontem tivemos muitas pitadas delas. Quando o Japão fez o gol, aliás, um belo gol, por mais que Dida não precisasse ter se agachado, pensei comigo: “agora vamos saber que time é esse”. O time passava bem a bola, mas ainda muito carregado do estilo prancheta sem linhas do Parreira. Passes exatos para lugar nenhum. Caminhávamos para mais alguns minutos de sofrimento, nos quais sempre me pego pensando: “por que eu sofro pelo que esses caras não fazem?” Isso não sei explicar. Seria ainda mais inútil. É leve demais. Não vou carregar esse sentimento puro, singelo, desnecessário e até mesmo estúpido do torcedor com palavras. Seria injusto. O gol de cabeça talvez tenha sido um presságio de que as coisas seriam ainda mais estranhas.
No segundo tempo, tenho a convicção de que algo aconteceu enquanto Ronaldo vestia as chuteiras com dificuldade, enquanto Ronaldinho Gaúcho olhava sua cara feia suada no espelho, enquanto Juninho pensava que deveria ter feito a barba. A mágica!
Ela esteve na tabela entre Ronaldo Gaúcho (existem boas jogadas, existem jogadas de gênio) e Ronaldo Gorducho, ou no lançamento do primeiro para Cicinho, ou na régua exata para Gilberto (Roberto Carlos deitado como Marilyn Monroe), ou na cavalgada celestial de Robinho área adentro – um deslize dos deuses. Foi o jogo das provas de aritmética reprovadas pelo conhecimento dos analistas de formação técnica. Um jogo tão exato que não admite cálculo. Um lance decidido por estrelas meio apagadas, como diria Mario Quintana, se ainda estivesse por aqui. Dez quilos e meio a menos para um homem que insiste em se provar para hienas. O jogo das almas esteve em campo, quando um zagueiro de asas dinâmicas alçou vôo pelo coração do milagre, como sempre, na hora certa da fuga de sua timidez harmônica. Pode ser que não ganhemos mais nenhum jogo. Pode ser que tenha sido como foi porque o time do Japão é muito ruim. Ou, mantendo a minha teoria, porque Zico e Copa do Mundo são como um paquistanês e um indiano num elevador enguiçado. Essa vitória de ontem não garante nada, nem é base de raciocínio para tese alguma de como ser campeão. É justamente o contrário disso. É prova de que raciocínio lógico e futebol se constrangem. É a diferença entre assistir falando e agarrar calado. Algum de vocês prestou atenção nos olhos do Juninho Pernambucano enquanto ele comemorava seu gol? Estavam vermelhos, furiosos, quase maus. Aquele vermelho carrega tudo do que o futebol precisa. O resto é papo furado, estatística, não vale uma vírgula.
E Galvão Bueno, por mais que os tempos tenham sido talvez traiçoeiros com ele, oferecendo com facilidade luxos e benefícios por pouco em troca, disse uma das frases pelas quais eu continuo assistindo aos jogos do Brasil através da sua narração, logo após o segundo gol do nosso anjo gordo: “Não há mais ninguém na frente dele!”
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