5.6.06

“sou agora o que falta em mim”

a primeira coisa que fiz ao desembacrcar no porto alegre, após esquecer como evacuar, foi misturar meu choro à chuva fina que trazia a poeira invernal no fim do outono e, em seguida, ser enterrado junto a operários uruguaios com espessas suíças e dentes tártaros nas pedras da submissão civilizada, logo após ter visto dois homens esquecerem da possibilidade íntima com línguas afiadas em gomas de cabelo estéreis, enquanto meninas pálidas de estômago envernizado me lembravam o perdão meticuloso das saias bordadas nos dentes azuis do vinho barato, metade gengivas abastadas de chances, metade placas na direção distante das ruas tomadas pela enchente positivista, ou panturrilhas flácidas cobertas de olhos tagarelas até que a argamassa secou e fiquei...
...nas paredes da catacumba – como um rascunho esquecido – quente e acarpetada de pedras ruminadas pelo vento frígido, sobre as quais borbulhava e escorria o sangue da reserva especial do merlot Gambrinus, douravam-se suores acumulados na estrada asmática ainda curta, entrecortada pela areia vermelha da constipação emocional, onde havia também quadros: uma bandeirola com a letra itálica de Rubias de New York – acima a foto de Gardel sem as bolas do saco e de chapéu pardo; Pablo Neruda embriagado em costeletas mortas dentro da boina listrada de avalanches, seu rosto como pergunta na interrogação das papoulas, palmas de mão como última solução para o vento infinito; Albert Einstein sendo tão estrangeiro ali quanto eu, estranhamente, com um rabo de cavalo.
perguntei por entre a fumaça da vela fictícia, que transformava aquela masmorra num útero apodrecido pelo amarelado das fotos inimagináveis, sob a sombra de garotinhas e garotinhos góticos:
“vocês têm cerveja uruguaia aqui?”
“Patricia, Norteña ou Pilsen”, disse o rapaz de avental escuro, com cara de meia-direita trombador.
a cerveja tinha 960 mililitros, os canivetes de cristal lá fora trespassavam meu pensamento com a vaga lembrança de dentes grandes e pernas magras, compridas, brancas e tortas, como minha necessidade – enterrada em sorrisos desconexos – de que um dia houvesse uma guria frágil e que fôssemos outra vez todos frágeis e apesar de tudo isso, de dois numa só fragilidade, quando fôssemos tempo verbal hesitante, teria sido insípido como uma solução incompleta de instantes endurecidos em lágrimas, mas seríamos ao menos metades siamesas sem encaixe, embriagadas de culpas antecipadas, porque se esperaria do mundo apenas o que se espera dos anjos, e minha memória carente de boas afeições, ou de ao menos algodões, doce se voltaria para o banheiro, onde poderia ainda compreender sozinha o som do meu peito, estigmatizado de flores, no reflexo da catarata espumante do desejo latrina de mais, sem saber como por menos, por um segundo ou dois, que passaram há muito e que mais uma vez não consegui sequer exprimir com modéstia e gratidão e palavras suficientemente simples, sempre intoxicadas pelo “por que não?” nas copas dos fungos nocivos das veias rítmicas em esperas absurdas sob a chuva que copula o inverno dos corações acinzentados como o asfalto ou dentes finos de carniça e obras populares sob a placa que diz em castelhano, enquanto meu cérebro avermelha nas raízes dos tijolos incompatíveis:
“há o mar, há o vinho, há o céu, há o barro; mas sem ti não há o milagre”.

havia, sim, um casal feliz, compartilhando nuvens em frente a minha penumbra: a menina, muito alta e de nariz bávaro, flutuava para dentro do bolso do rapaz leporino feito em corte numa loja de departamentos onde nascem bebês – pobre sobretudo que nos acomoda em pêlos eriçados mas recônditos – molambos ambos sem se conhecer ou se conhecendo o suficiente para serem felizes.

outro casal, ali, bem ao meu lado, quando tudo em volta era um cálculo simples para dois: a menina parecia o rapaz e o rapaz parecia interessado no outro rapaz de avental que atendia por Morrón Guantelmo, ou algo como uma rua deserta onde verdadeiros poetas morrem de frio, mas honrados pelas linhas quentes e, no outro lado do erro obediente, o romance marulhava em grená: quem sabe meu sangue ou o reflexo do sangue que escorria do meu nariz através do espelho que refletia meu pai passado apenas pelo matiz anuviado de mim?

de volta à realidade, foi difícil para mim, onde tudo menos paredes ou idéias borradas de norma marfim, só ligas de metal flutuantes nas pontes onde por baixo se sobe e por cima se vê o fundo das memórias fotográficas em sobrancelhas feitas de colonização alemã além do que não há mais nada que eu possa compreender agora que perdi meu travesseiro na estrada e Bob Dylan falhou enquanto o vento soprava forte e minha cabeça pende carente no que quente inventei do que vivo e os dedos doem nas teclas pardas porque faz frio e chovem facas mas meus camaradas vão comigo onde de repente raízes sem caule se cobrem de uma esperança vaga da cor do musgo – obrigado, Cartola, por tudo.

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