26.4.20

“uma canção amorosa”



tenho sorrido, tenho chorado,
tenho agradecido e penado,
tenho sido divino e humano,
porque finalmente as coisas
se abrem em fluxo anímico
numa estrada que me cega
e mesmo de olhos fechados
eu posso seguir com vocês.

porque preciso de cada um,
de cada alma que percebe
a dificuldade de estar aqui.
a dificuldade também pela
beleza de tudo ser tão difícil
e, só por isso, magnânimo.

quero a dor de cada um
perto da minha dor e que
cada alegria também seja
repartida por cada pessoa.
não vestir mais o pijama
em meu coração tão frágil,
poder arregaçar as mangas
do espírito e me abrir para
tudo que constitui a vida.

a felicidade é também uma
dureza pela qual agradeço.
porque muitas vezes não sou
meritório e mesmo não sendo
recebo as dádivas do mistério
deste perigo próspero, desta
entrega convulsa que se doa
para que todos sejamos puros
em nossa profunda imundice.

que seja possível ter na mão
este bastão em chama fluida
por anos de se levantar e cair,
e que o meu pai possa sorrir
quando a imagem do seu filho
às vezes pobre, às vezes rico,
pairar em sua mente paterna.

que ele saiba que este ciclo
serve apenas para limparmos
a antessala de nossos defeitos
para que a sujeira seja a luz
e o guia de toda boa vontade.

eu agradeço até pela culpa
que se reverte em luta leve
e por cada pedaço de limo
em minha caixa d’água tão
suja e pelo amor que sinto
pela sujeira permanecente
que me permite continuar
a limpeza sem que precise
descansar, vestir o pijama
na alma às vezes exausta
e tão sedenta de liberação.

quero andar junto a todos,
até me arrastar eu quero,
porque estar por inteiro
lado a lado com cada um
vale o esforço amoroso
de abrir o peito, fechar
os olhos e querer o bem.
pois estamos em chamas
e tudo em volta é brilho,
apesar de toda escuridão.


25.4.20

“no sonho era um céu cor de rosa”



para victor lampert

no sonho de ontem, eu
era uma criança barbada,
com camisa do colégio
e um tênis vermelho sujo.

estava na casa do victinho,
que é mesmo quase uma
criança e não tem barba.

havia uma festa incômoda
na qual me divertia e fazia
palhaçadas e trocadilhos,
que são minhas aptidões
aqui na chamada vida real.

havia outros velhos mais
velhos do que eu também
vestidos como crianças
de colégio, mas bêbadas.

a irmã do victinho, mas
nem sei se ele tem irmã,
ouviu minhas palhaçadas
e me disse: você é chato,
se eu fosse você eu leria
um pouco deste filósofo
que atende por emmanuel
levinas e é chato como
você – vão se dar bem.

aquilo me ofendeu, mas
não muito: eu disse puxa!
levinas: não tenho roupa
pra isso, veja: sou apenas
um estudante de colégio.

com toda coragem fugi,
corri atrás de um ônibus
cor de rosa como estava
também o céu, o coração.

corri, entrei no ônibus,
bufei de prazer apenas
pelo compromisso de
ser uma criança lúcida.
quem dirigia o ônibus
era o famoso arruaceiro
neal cassady, e também
havia doidões com ele.

pedi para saltar no meio
da ponte rio-niterói; neal
disse: você é louco? eu
disse: assim como você,
vi o céu cor de rosa, mas
esqueci a minha mochila.
e agora eu quero estudar,
para entender o levinas.
agora que tenho coração.

17.4.20

“moedas, amigos”


o medo bate à porta,
a fé então responde:
não tem ninguém aqui.

não sei se estou calmo
ou se estou deprimido:
ficou velha a indecisão.

humildade é o silêncio
perpétuo do coração:
sentar por uma hora.

procuro pelas músicas
que os amigos ouvem.
fecho os olhos, escuto
como fossem um beijo.

conto minhas moedas
e torço pelos amigos.

mesmo desesperados,
eles ajudam a calmar
meus ânimos com luz,
refletida na cara gorda
de dom pedro primeiro,
do barão de rio branco.
refletida na cara magra
de pedro álvarez cabral,
de tiradentes paga-pato.

e tudo regressa ao início
de uma linda pilhagem
que chamamos amor fati.

16.4.20

“tenho feito reuniões”



aqui dentro, nós esprememos as nossas feridas
enquanto lá fora o mundo acaba mais uma vez.
as feridas estão abertas mas estão se fechando,
antigamente vomitávamos e engolíamos o pus.
firme execução de promessa ou compromisso,
fé: força malhada de fino torque, invisível tato.
levar o compromisso pontiagudo com a palavra
até ver, ainda que pequeno, um tamanho de vida.

13.4.20

“de uma criança dos anos 80”


para moraes moreira
in memoriam

pelos meus olhos
tristes de morte,
da vida à mingua,
fechados-calmos,
explodem flores,
de carne e amor.

hoje tu vais longe
como se partisse
os teus vândalos
em time de bola.

hoje aqui morre
o riso da abelha,
que essa criança
dos anos oitenta
bem sabia imitar.

quantos fedelhos
tu não fizeste rir
da simples ideia
do zum infantil?

abelha carneiro
que salvou pais
jovens e loucos
aperreados até
por não terem
forma de saber
porque choram
os tristes filhos.

não rir é difícil
quando se pensa
qualquer coisa
que tenha a ver
com tua imagem.

só por isso tens
entrada franca
no céu pequeno
de toda criança.

mestre que sabia
a secreta música,
a dor que traduz
vontade mágica.

juba-leão-preguiça,
és o próprio rosto
dos heróis de gibi.

e nós ficamos aqui
com vilões pálidos,
o coração no bolso.



12.4.20

“eu mesmo vou libertar”



ainda acordo com os gatos & buda na cabeça.
a mais nova, juno, ontem sentou no meu colo,
eu feito um índio ancestral enrolado no lençol,
tentando sair do samsara e entrar no dharma,
mas dando muitos pequenos risos por dentro.

eu justamente meditava concentrado em pensar
que todos os seres vivos mereciam compaixão,
principalmente aqueles que me fazem muito mal.
então no meio de tudo vieram as chagas de cristo.

juno não se mexeu pois os bichos, diz buda, estão
num nível abaixo do nosso na, digamos, corrida
evolutiva do espírito flutuante até deixar a carne.
mas juno me olha como se fosse leonardo da vinci.

terminada a meditação, juno e eu nos separamos,
estranhamente mal-humorados um com o outro,
como passageiros que, não sei por quê, levantam
imediatamente ao se apagarem as luzes da cabina.
ou aqueles que, no salão de embarque, enfileram
seus corpos ligeiros assim que o voo é anunciado.

estou ficando verde, cabeludo e bonito, embora
ainda não tenha tomado parte em nenhuma das
inúmeras aparições pública que pessoas fazem
das suas casas, contando coisas próprias como
faríamos lá fora ao depormos diante de um juiz.

outra vez este poema não consegue ficar curto,
apesar de toda dedicação, não devo me frustrar.


10.4.20

“canino à esquerda”



ontem dormi tarde e
tentei me masturbar.
dormir tarde foi bom.
masturbação foi mais
triste do que esperava.

durante a noite sonhei
que perdia um dente
na arcada superior.
exatamente o dente
canino à esquerda.

levantei bem frustrado
tentando ser um buda,
estúpida necessidade.

coisa óbvia é perder
os dentes, aprender
a morrer é bem fácil.

mas e se a morte vier
num susto, mesmo um
bom de sentir, como,
no sonho, passar a língua
no buraco e sentir que
o dente não estava lá,
mas uma superfície lisa
como um bebê no útero?

acreditar nas pessoas
é mais fácil quando nós
não somos uma delas.
essa é para você, buda.

e o futuro se aproxima
lentamente, como um
elefante que esmigalha
na sua passagem tímida
a famosa flor de lótus,
paz que não comunica.

depois fugir à perfeição
e na trilha ver  o velho,
o doente e o cadáver;
só então permanecer.

8.4.20

“um tímido começo”



tenho tido sonhos,
mas só lembro partes.
no último era a máfia,
as pessoas eram gatos.

o chefe da máfia felina
era um gatão branco.
eu estava de olho numa
gatinha bege que tinha
uma cicatriz que cruzava
da orelha até o queixo.
no sonho eu estava
louco naquela cicatriz.

a casa da máfia felina
tem paredes de madeira
de uma cor bem bonita
como as paredes do bar
em que van gogh bebia.

é feliz lembrar os sonhos,
mesmo os mais esquisitos,
mesmo que apenas partes.

então eu acordo e tento
meditar por uma hora.
hoje no meio dessa hora,
pensei que os seres vivos
eram todos a minha mãe.
esse foi um pensamento
muito estranho também,
mas estranhamente bom.

6.4.20

“gritos nas janelas”


desejaria também gritar pela janela,
mas nada me diz que seja um grito coletivo.
grita-se mil vezes por motivos que se engolem.
isso é o ser humano, parece possível apontar.
mas não parece possível dizer muito alto.

o que é isso que chamamos ser humano?
o que é você? – perguntavam humanos
nas peças elisabetanas e aquilo sempre
me chocou um pouco, dizer algo assim,
com tamanha naturalidade – ficava eu
imaginando aquilo sendo dito no palco
por um homem com roupas esquisitas
e no fim era bom e eu dava uns risinhos.

mas o que é você? – pergunto ao espelho
enquanto vejo meus pelos que não param,
eles não pararão nem mesmo no caixão –
meus olhos cada vez mais claros e perdidos.

tudo é essa contradição: a boca que beija
de augusto dos anjos, a mesma que cospe,
por isso não grito, não beijo, não cuspo.

estou em silêncio total, hoje não fui bem
com as palavras mais uma vez, que terrível
é imaginar que algo com que vou tão mal
seja a única coisa que me interesse aqui.

quantos gritos se engajam na vergonha
que substitui o arrependimento e junto
à mania de grandesa nos libera da culpa?

eu queria hoje escrever um poema curto,
mas não consigo agora, aparentemente.
as paredes às vezes se fecham e preciso
gritar e não grito e escrevo nesse lugar
que sairia melhor como filme de terror.

entre os poucos afazeres que me permito
passo mal com o desejo voraz de escrever
este poema curto e que diga tudo e salve.

então faço poemas longos porque aqui
a vida é longa em seu menor momento.

5.4.20

“domingo – vida rara



acordo num domingo que,
mesmo diante da pandemia,
ainda parece com domingo.
o domingo sempre foi meio
assim como o fim do mundo.

existe agora um silêncio óbvio
que as ondas no leblon ignoram.
um silêncio gasto que precede
uma explosão de luz pelos ares.

os gatos, inquietos e amorosos,
me observam, os dois, com cara
de isso já não foi longe demais?

penso nos meus rancores, penso
na paciência que têm os inimigos.
e como acordei mais um dia aqui,
posso dizer: estou neste domingo
com pouca paciência e alguma
maldade dentro, que se dissipa
diante do mantra: amar a morte
é sempre um pouco necessário.

tenho cada vez menos vontade
de ir às ruas colher esse tédio
que desenvolve os algoritmos,
que envolve como um plástico
os meus humores de feirante.

ainda ninguém pulou do prédio,
ao menos cantam canções antigas.
a distância faz evoluir às margens
desejos que pairam sobre os pelos.

penso, inevitável, nos amigos
que tomam sol e desesperam,
ou encontram amor debaixo
de uma poltrona velha e feia
onde geralmente só os gatos
têm por certo o que encontrar.

espero do dia uma tangerina
que pingará em meus olhos
a paz ácida de mais um dia,
o meteoro que não chegou.

com dificuldades, medito.
é um privilégio poder sair
de cena aos poucos, como
o gato sai da caixa de areia.

amar essa almofada, esse
chão duro bonito de taco
que não disfarça a sujeira
com que amei essa farsa.

nenhuma asa agora, a vida,
não se pode tocá-la, perceba,
está livre de nós e as antenas
finalmente foram desligadas.

chegará, espero, a voz maior,
que justificará minha derrota,
arrastará meus olhos infantis
para dentro de outro carrossel.

nunca pensei que não sentiria
medo quando a vida fosse rara.
nunca pensei que, também eu,
precisasse tanto dos domingos.

3.4.20

“como eu”




o isolamento agora me permite
algo que a vida comum impede:
que eu me sente por uma hora,
em posição bastante confortável,
sem me mexer, pensando pouco,
sem dizer nada ou coçar o nariz.

e mesmo sem quase nada a fazer,
ninguém com quem se possa falar
– refiro-me a completos estranhos
com quem posso criar as mentiras
e não a família que eu sei, me ama,
e estaria melhor, eu tenho certeza,
se eu pudesse sorrir um pouco mais
– sobre as coisas sem importância
a que damos estatus de ovo de ouro
da nossa colisão que distraía a morte,
ainda assim passo apenas uma hora
sem dizer palavra que salve alguém
de mim mesmo ou eu mesmo de mim,
como aprender a morrer sem pressa,
como espalhar substância imaterial.

coisa mais estranha, ando ouvindo
joão gilberto e realizando refeições,
meditando à tibetana e querendo sair
do corpo de uma vez ou pelo menos
encaminhar o morto ou mentalizar
uma lápide na nossa vala comum.

estou feliz ficando cabeludo, além
dessa fuça de cientista desmiolado.
as plantas, como eu, não reclamam
e quase posso sentir que estão até
muito felizes porque todos em volta
agora se parecem um pouco com elas.

cozinho tudo com batatas e não toco
em nada que possa me contaminar –
mas a sensação é exatamente oposta,
ou seja, a de que eu contamino tudo.
perdi o mérito narcísico de estar preso
a minha própria idéia de mim mesmo.

o isolamento como instrução massiva
fere o solitário em sua trilha fantasma.
terminei um romance gordo e só leio
dois ou três poemas por dia, naquela
máquina automática de caçar moedas.

os gatos, como eu, não sabem se estão
de fato felizes ou miseráveis pela falta
da nossa tão esperada ausência típica
da nossa espécie que, em alguns casos,
veio ao mundo só para louvar os gatos.

gosto de sentir como se fosse um deles,
por mais que isso venha acompanhado
por uma fina fúria contra essa extinção
que empurramos contra nós mesmos.

queria dizer ainda bem que existe arte
e podemos alimentar nossos espíritos
com a consolação estética da epidemia.

estico até onde posso uma corda velha
que ninguém via e agora ninguém vê.
para os sempre concentrados em morrer
a idéia não modifica a turva substância
que me empurra para dentro do silêncio
e desinfeta as mãos da minha esperança.