3.4.20

“como eu”




o isolamento agora me permite
algo que a vida comum impede:
que eu me sente por uma hora,
em posição bastante confortável,
sem me mexer, pensando pouco,
sem dizer nada ou coçar o nariz.

e mesmo sem quase nada a fazer,
ninguém com quem se possa falar
– refiro-me a completos estranhos
com quem posso criar as mentiras
e não a família que eu sei, me ama,
e estaria melhor, eu tenho certeza,
se eu pudesse sorrir um pouco mais
– sobre as coisas sem importância
a que damos estatus de ovo de ouro
da nossa colisão que distraía a morte,
ainda assim passo apenas uma hora
sem dizer palavra que salve alguém
de mim mesmo ou eu mesmo de mim,
como aprender a morrer sem pressa,
como espalhar substância imaterial.

coisa mais estranha, ando ouvindo
joão gilberto e realizando refeições,
meditando à tibetana e querendo sair
do corpo de uma vez ou pelo menos
encaminhar o morto ou mentalizar
uma lápide na nossa vala comum.

estou feliz ficando cabeludo, além
dessa fuça de cientista desmiolado.
as plantas, como eu, não reclamam
e quase posso sentir que estão até
muito felizes porque todos em volta
agora se parecem um pouco com elas.

cozinho tudo com batatas e não toco
em nada que possa me contaminar –
mas a sensação é exatamente oposta,
ou seja, a de que eu contamino tudo.
perdi o mérito narcísico de estar preso
a minha própria idéia de mim mesmo.

o isolamento como instrução massiva
fere o solitário em sua trilha fantasma.
terminei um romance gordo e só leio
dois ou três poemas por dia, naquela
máquina automática de caçar moedas.

os gatos, como eu, não sabem se estão
de fato felizes ou miseráveis pela falta
da nossa tão esperada ausência típica
da nossa espécie que, em alguns casos,
veio ao mundo só para louvar os gatos.

gosto de sentir como se fosse um deles,
por mais que isso venha acompanhado
por uma fina fúria contra essa extinção
que empurramos contra nós mesmos.

queria dizer ainda bem que existe arte
e podemos alimentar nossos espíritos
com a consolação estética da epidemia.

estico até onde posso uma corda velha
que ninguém via e agora ninguém vê.
para os sempre concentrados em morrer
a idéia não modifica a turva substância
que me empurra para dentro do silêncio
e desinfeta as mãos da minha esperança.

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