o isolamento agora me
permite
algo que a vida comum
impede:
que eu me sente por uma
hora,
em posição bastante confortável,
sem me mexer, pensando
pouco,
sem dizer nada ou coçar
o nariz.
e mesmo sem quase nada
a fazer,
ninguém com quem se
possa falar
– refiro-me a completos
estranhos
com quem posso criar as
mentiras
e não a família que eu
sei, me ama,
e estaria melhor, eu
tenho certeza,
se eu pudesse sorrir um
pouco mais
– sobre as coisas sem
importância
a que damos estatus de
ovo de ouro
da nossa colisão que distraía
a morte,
ainda assim passo apenas
uma hora
sem dizer palavra que
salve alguém
de mim mesmo ou eu
mesmo de mim,
como aprender a morrer
sem pressa,
como espalhar
substância imaterial.
coisa mais estranha,
ando ouvindo
joão gilberto e realizando
refeições,
meditando à tibetana e querendo
sair
do corpo de uma vez ou
pelo menos
encaminhar o morto ou
mentalizar
uma lápide na nossa vala
comum.
estou feliz ficando
cabeludo, além
dessa fuça de cientista
desmiolado.
as plantas, como eu, não
reclamam
e quase posso sentir
que estão até
muito felizes porque
todos em volta
agora se parecem um
pouco com elas.
cozinho tudo com batatas
e não toco
em nada que possa me
contaminar –
mas a sensação é
exatamente oposta,
ou seja, a de que eu
contamino tudo.
perdi o mérito
narcísico de estar preso
a minha própria idéia de
mim mesmo.
o isolamento como
instrução massiva
fere o solitário em sua
trilha fantasma.
terminei um romance
gordo e só leio
dois ou três poemas por
dia, naquela
máquina automática de
caçar moedas.
os gatos, como eu, não
sabem se estão
de fato felizes ou
miseráveis pela falta
da nossa tão esperada
ausência típica
da nossa espécie que,
em alguns casos,
veio ao mundo só para
louvar os gatos.
gosto de sentir como se
fosse um deles,
por mais que isso venha
acompanhado
por uma fina fúria contra
essa extinção
que empurramos contra
nós mesmos.
queria dizer ainda bem
que existe arte
e podemos alimentar
nossos espíritos
com a consolação
estética da epidemia.
estico até onde posso
uma corda velha
que ninguém via e agora
ninguém vê.
para os sempre
concentrados em morrer
a idéia não modifica a turva
substância
que me empurra para
dentro do silêncio
e desinfeta as mãos da
minha esperança.
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