5.4.20

“domingo – vida rara



acordo num domingo que,
mesmo diante da pandemia,
ainda parece com domingo.
o domingo sempre foi meio
assim como o fim do mundo.

existe agora um silêncio óbvio
que as ondas no leblon ignoram.
um silêncio gasto que precede
uma explosão de luz pelos ares.

os gatos, inquietos e amorosos,
me observam, os dois, com cara
de isso já não foi longe demais?

penso nos meus rancores, penso
na paciência que têm os inimigos.
e como acordei mais um dia aqui,
posso dizer: estou neste domingo
com pouca paciência e alguma
maldade dentro, que se dissipa
diante do mantra: amar a morte
é sempre um pouco necessário.

tenho cada vez menos vontade
de ir às ruas colher esse tédio
que desenvolve os algoritmos,
que envolve como um plástico
os meus humores de feirante.

ainda ninguém pulou do prédio,
ao menos cantam canções antigas.
a distância faz evoluir às margens
desejos que pairam sobre os pelos.

penso, inevitável, nos amigos
que tomam sol e desesperam,
ou encontram amor debaixo
de uma poltrona velha e feia
onde geralmente só os gatos
têm por certo o que encontrar.

espero do dia uma tangerina
que pingará em meus olhos
a paz ácida de mais um dia,
o meteoro que não chegou.

com dificuldades, medito.
é um privilégio poder sair
de cena aos poucos, como
o gato sai da caixa de areia.

amar essa almofada, esse
chão duro bonito de taco
que não disfarça a sujeira
com que amei essa farsa.

nenhuma asa agora, a vida,
não se pode tocá-la, perceba,
está livre de nós e as antenas
finalmente foram desligadas.

chegará, espero, a voz maior,
que justificará minha derrota,
arrastará meus olhos infantis
para dentro de outro carrossel.

nunca pensei que não sentiria
medo quando a vida fosse rara.
nunca pensei que, também eu,
precisasse tanto dos domingos.

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