31.10.06

“por trás dos hospitais”

Hospitais sempre foram para mim um estímulo sexual indescritível e vergonhoso, quase de perversão. Depois de pensar sobre por que é assim, cheguei à conclusão provisória de que, como o sexo é a negação da morte e o hospital é o ambiente de morte por excelência, então o estímulo sexual que ele me provoca – através de portas entreabertas, jalecos brancos com assinaturas dos nomes das enfermeiras em letras de formato clássico, a brancura devassa dos pesadelos molhados de meias-calças até o início das coxas, e até mesmo as macas vazias num canto do corredor – talvez venha de uma tentativa desequilibrada de tentar inconscientemente equilibrar os pólos: contudo um instinto profundamente moralista.

No hospital, até mesmo os elevadores apresentam clitóris secretos. Tudo parece lascivo, como se não se pudesse escorregar por paredes geladas de éter, como se não poder pensar no assunto fosse mais erótico do que o próprio assunto pensado em pequenos atos. Um lugar simbolizado por cruzes, onde é proibido sorrir, por vergonha dos moribundos e mortos e vivos mortos que circulam. Num lugar como este, a libido é a única forma de reação carnal contra a putrefação. Isso ou os olhares baixos que dizem amém ao diabo. Porque pensar muito é mentir. E sentir é se corromper socialmente. Portanto, quem se veste de branco todo o tempo está fadado ao pecado.

Foi lá também, no refeitório, que pensei sobre outro assunto diretamente ligado ao sexo:

Por que é comum homens perderem a vida por mulheres desequilibradas de personalidade explosiva, violentas?
Porque o sexo, que é o que move as pessoas de encontro umas com as outras, acima de tudo, é um processo desequilibrado, sem igualdade. Ao contrário do que os pares exigem, e daquilo que dizem os especialistas e os hipócritas, o sexo não é uma negociação estabelecida em percentagens. É um jogo de azar injusto, violento, desmedido, mafioso, muitas vezes estúpido, bestificado. Essa é a verdadeira raiz humana, e sua tragédia. Por isso continuamos gregos, mesmo mortos. É o que nos torna verdadeiros, aliás, de acordo com a espécie quando observada com o devido afastamento. E normalmente a verdade não é fácil de suportar. A verdade não é equilibrada. A verdade não é nem mesmo verdadeira. E as mulheres desequilibradas são portanto mais livres, inteiras. E isso as torna sexualmente mais atraentes. O sexo que é a vingança da vida contra a morte. E que talvez seja a única verdade total, porque nega. Afinal, as relações humanas são apenas extensões sociais dos nossos instintos e erros, os mais vergonhosos e primordiais.

30.10.06

“o enigma”

as costas
da gal costa
são o maior mito
sexual
da modernidade
recente;
e tudo aquilo
que com elas
tiver vindo
às costas.

"o idiota"

não se preocupe
em ser o que você
não consegue ser.

preocupe-se apenas,
isso sim, em não ser
o que você pensa que é.

“epitáfio de um ditador”


sua vida foi um ajuste de peles:
constante convulsão mitológica.

“prelúdio para um serial killer”

dois homens sob um andaime
debruçados em seus sanduíches.

uma mulher passa como mais pernil,
com a vida dividida em duas
por uma calça apertada e canelas finas.

um homem olha para o outro:
“e então, cometer um crime?”,
a saliva da satisfação proibida:
“não” – o outro responde – “fazer arte.”

“academia clandestina”

porque de acordo com as idéias
pelos poetas reclamadas
(refiro-me aos de almas aladas)
a poesia é uma tentação débil –
apoio de mãos leves na escuridão
– ato falho em asas de anjos –
que são poetas superiores à palavra
que sai de um nada para outro nada.

“cerveja”

pensei em algo de que gostei,
fiz algo de que não gostei.
não fiquei satisfeito com isso.
tentei sorrir,
tentaram por mim,
não foi possível.
pedi licença:
“buscar cerveja”,
a dentes sujos,
indiferentes de tristeza.
voltei alegre de corpo cheio,
lotado até a alma de cerveja
para o copo de mim mesmo.

29.10.06

“olhos fechados”

não existe mais a desculpa da poesia original
depois de Carlos Drummond de Andrade:

Antes de mim outros poetas,
Depois de mim outros e outros
Estão cantando a morte e a prisão.

portanto, meus amigos mortos, fadados,
falemos sobre a especificidade da poesia,
que quanto mais logo mais se distancia,
que quanto mais demora menos se atrasa.

“geração?”

todos que escrevem pra valer
escrevem pra ficar na história.
isso acontece na cabeça
bem antes da capacidade,
no caso comum dos gênios.

mas quem escreve pra valer,
por sorte, de duas uma:
ou é um entusiasta simpático
relacionado com as tendências
que os sustentam sorridente,

ou é um louco sem rumo,
a quem se chama gênio,
por mais que ele morra
normalmente quando
já morreu há muito tempo.

“os amantes desconhecidos”

frente à lápide
dois mortos,
uma tumba,
cinco velhas
e cinco anos.

“eles trocavam textos”,
uma velha disse enquanto
seu lenço chorava ciscos,
“nunca se viram antes”.

26.10.06

“boate”

ela tinha
um jeito
meio ultra
pós-moderno
de dançar:
além-influências.

mas o mau
do amor
é que ele
começa a falhar
quando nomeamos
sua presença.

“apenas uma questão de gênero”

decepados,
os versos são o de menos.
o poema é aquela verdade
intransigente e mentirosa
encravada de maré escura,
escrita pela própria língua
que o lê,
sendo que
ela nega
perspectivamente o poema,
tal qual o homem de gravata
acorda para navegar a morte
através de cifras mitológicas
e cabeças roxas de meninos,
decepadas.

"O cão e o frasco" (Charles Baudelaire)


“Meu belo cão, meu bom cão, meu querido totó, aproxime-se e venha respirar um excelente perfume comprado no melhor perfumista da cidade.”

E o cão, mexendo o rabo, o que é, acho, nesses pobres seres, o sinal correspondente ao riso e ao sorriso, aproxima-se e curiosamente pousa o úmido nariz no frasco aberto; depois, subitamente recuando de pavor, late para mim, à guisa de reprovação.

“Ah, miserável cão, se lhe tivesse oferecido um embrulho de excrementos o teria farejado com delícia e talvez devorado. Assim, até você, indigno companheiro de minha triste vida, se parece com o público, a quem nunca se devem apresentar perfumes delicados que o exasperem, mas somente imundícies cuidadosamente escolhidas.”

"divina comédia animal" (Julia Mendes)

dizem esses existencialistas
que a vida só há quando a vida passa
sem haver de se perceber a passar.
esses animalescos
se não sofrem o quadro esquizo das minhas angústias
não haverão
de conhecer minhas alegrias.

23.10.06

“o primeiro homem foi uma mulher”

só podia mesmo
se chamar Safo
a poeta grega
cantora do amor
entre mulheres
na ilha grega
de Lesbos.

“pós-cultural”

são tantas as possibilidades de arte
que inúteis ao tocar no assunto
tornam-se indiferentes ao vago
tratado com acuidade que assunta
o direito legítimo de isolamento
por fama, por cama, por gaze:
ressentimento que resseca frases com dúvidas
permutas adiantadas tanto quanto geriátricas
ou comadres de mijo debaixo de camas sorridentes
como se arte de vanguarda fosse um quadro sob análise de queixos
e escutar fosse um meio sem falhas de humanidade celofane.
ou como se uma frase contrária ao que se revela arte queixosa
fosse restar não tão simplesmente como algo
que vago nunca deu realmente certo
– apesar das paisagens moralistas –
quanto o medo do sentido absoluto
que tanto apego causa ao eclipse.

20.10.06

“morte e vida quarta-feira cinzas”

O amor havia se fantasiado de cigana. Nos encontramos em Santa Teresa, em meio a pensamentos de confete, e terminamos numa cama desfeita, arrepiados de saliva. Depois que o amor tirou a fantasia, ou melhor, depois que a fantasia foi arrancada com os dentes deste que vos confessa, não houve sono nem sexo, mas houve tudo, sem nexo, pois era o amor outra vez e o amor, quando é outra vez, não admite sono nem sexo, de modo que dormimos de olhos abertos para dentro, abraçados enquanto os ponteiros do relógio derretiam sobre as notas soltas de uma orquestra dissonante no fundo do corredor já sem prédio, dentro do bairro já sem cidade. Não podia amá-la, mesmo fantasiada, afinal não se ama o meio, o amor, mas o fim, aquilo que ele não diz. E no vazio do embalo coxo de uma dança com poucos movimentos calamos juras de carnaval com beijinhos de esquimó e asas de borboleta foram encontradas dentro dos nossos bolsos, dos meus e do amor travestido de cigana inamável. No dia seguinte, como era de se esperar, ele o amor, ela a cigana, já não estavam mais lá: a fantasia era minha. Olhei no espelho e nem eu: trapos sobre um corpo estranho atravessado por idéias de sorriso no choro incontido em gases violetas. Não era eu mesmo, mas foi tão bonito! Da pia do banheiro fiz a manjedoura. Das lâminas do êxtase a profecia. Do pulso as água de minhas palavras vermelhas. E ao lado da barriga aberta de sonhos inatos, nada além de uma carta escrita com letras gregas, trêmulas de vinho, dedicada àquela que se foi sem ter vindo. Escorreguei pelas escadarias sem saber que as escadarias eram serpentinas desenroladas conforme passos. Quando cheguei no não sei onde chegar, percebi com os dedos dos sonhos – ou seria ela? – que com sorrisos não se cabia mais nas ruas. As pessoas em volta, em minha homenagem, insistiam em ignorar minhas perguntas. Mas elas cabiam, pois carregavam pastas e frases postiças, além de carreiras de tosse. Uma ofendia a madrugada, agarrada a um poste. Outra acompanhava um funeral, cercada de mais alguns conhecidos. Entre eles um outro, muito parecido comigo, por sorte deitado, mãos cruzadas de céu, era levado pela ressaca de mãos e lágrimas, tal qual o mito de Noel. O sol fazia barulho de expectativa. As crianças estavam embriagadas, obscenas, envergonhadas dos adultos. E os adultos esfaqueavam sombras, desejo de serem reconhecidos pela própria emoção. Pus as mãos nos bolsos, pus atrás dos olhos: as asas haviam se desmanchado em cinzas da quarta estação. O sol tocava surdo a chuva reco-reco o ritmo de outro mundo onde as coisas arrastavam a pressa de um mundo pintado no interior dos anos que não passaram; ficaram deitados nos bancos de praça sussurrando nomes antigos cobertos pelas páginas sujas das notícias de ontem: olhos necrosados pelo sentimento do mesmo mundo faminto, tão perto, tão colo, tão longe, tão calo, apesar de nosso, que é hoje e sempre, meu amor. Não amo porque sou o amor, morto apesar de eterno, asco de asas pálidas perdidas como olhos pintados na cor esquálida dos bolsos secretos, apesar do que o cérebro degolado monta quando não quer se despedir do adeus.

“constatações óbvias não momentâneas”

as coisas estão ficando bastante perigosas,
existem sérios riscos de acidente no ar.
persistem os critérios cínicos e o mar,
apesar de parecer uma estultice heróica
seu amarelo cansado de tanta ressaca,
acorda de manhã de acordo com o espelho.

Caetano fez um bom disco de músicas inéditas,
Buarque fez um mau disco de músicas inéditas,
Bob Dylan fez um bom disco de músicas inéditas
(só que as letras foram plagiadas: sorte do poeta).
Marisa Monte está tocando o cavaquinho como convém:
pelo ingresso – na bilheteria padronizada por segredos inconcebíveis
você se diverte com drinques morais à moda da casa – e paga só cem.

ontem sonhei que era o detetive Philip Marlowe e podia voar on the rocks.
as chaves do apartamento, pedir que Nilva traga as chaves do apartamento.
há brigas por menos que nada e as pessoas se preocupam em explicar tudo.
a teoria das abelhas é filosoficamente vital,
mas o trabalho das moscas é indispensável.
o artista, quando nasce, necessariamente morre.
e seus restos humanos residem na contradição
que lhe permite descaradamente
permitir que o corpo viva em vão.

mas comigo isso não acontece
e apesar de tudo tenho
absoluta convicção de que
aquilo que Brahms fez
na quarta sinfonia
não foi música e sim
uma espécie de pintura rítmica.

17.10.06

“sem saída”

todas as frases
são de amor.
mesmo a frase
de ódio
é na verdade
herança
de um amor
incompreendido.

15.10.06

“homem sentado na varanda de um bar”

que coisas bem sérias
são as mulheres cabisbaixas
que, baixas, recebem
todo o valor de um sonho salto
alto desvalorizado por olhos dentes
de um sujeito qualquer indecente
que apenas, sensível
em gritos silenciosos
espera o momento exato
de sair intacto, apaixonado
por um mundo vazio de lábios
ou membros dormentes despudorados
que, súbito, se enchem de artérias
como braços negros acorrentados
por dentro das calças sem saber como
nos sonhos de uma calçada perfis
confundem a silhueta da tarde
com a vontade que morde e arde.
elas são bem mais que Josefinas,
muito mais que sombras concretas.

Perséfones natimortas, almas de mármore,
elas são rastros num labirinto de olhares,
cisnes uterinos de lágrimas latentes
e nós, à mercê de quantos nós
o álcool fez em nossas mentes,
pobres mendigos depravados
disfarçados por sorrisos
mais antigos do que bocas,
também sem pés nem cabeças
conforme o pensamento cujos
calcanhares se entregam à gagueira
mas, pobres de nós, olhos puros de
sentimentos espremidos em calos
que, de gole em gole, morremos
e nunca recebemos o direito vago
de nos escondermos em sonhos
ou na indiferença superior
daqueles significados mudos
que passam sem dizer adeus
nas barras das saias dos anos.

13.10.06

“os vagabundos são os melhores amantes”

todo sentimento verdadeiro e único
está fadado a um final trágico.
seja através do mesmo erro mágico
que se mantém latente e úmido
sob a pele já sem cor do sentimento
mascarado por um comportamento
insuficientemente espontâneo
por conseguinte falso até a dor,
(e isso o transforma em ressentimento,
que é uma outra tentativa frustrada de fuga
na repetição requentada do sentimento original).
isso ou adesão abraçada por lágrimas sem olhos
nos braços da completa indiferença forjada
mais dor portanto pelo silêncio estuprado
que é sempre mais honesto e
moralmente mais adequado,
no entanto ainda mais trágico
pois neste caso específico
– o da solidão alada –
percebe-se que o amante
sem muito sacrifício
e mesmo bem antes
já não estava mais lá.

12.10.06

"música para ler e ouvir"






John Coltrane Quartet - tocando "Afro Blue"
no programa Jazz Casual,
apresentado por Ralph J. Gleason.

piano - McCoy Tyner
baixo - Jimmy Garrison
bateria - Elvin Jones
saxophone soprano - John Coltrane

11.10.06

“poema terminal”

são palavras diabéticas
mas não diabólicas,
apesar de sem pernas.

são folhas metabólicas
com aumento de açúcar
no sangue caduco
de quem pensou sobre
ontem amanhã será.

defeitos de secreção anunciarão
o alimento via veia com insulina
mas no fundo são apenas palavras:
minhas palavras, meus erros doces,
meus desejos carentes de glucanon.

e até que eu saiba o significado
exato da palavra patogênese,
esse rasgo na pele do pâncreas
deverá assumir que os erros doces
são responsáveis pela cegueira voluntária.

e enquanto o mijo sair cego
em pisos de azulejos alheios,
estarei mais perto, mas não junto
do acordo procurado como cura.

o fim da cicatriz, no fim
significa tão somente
a amputação do membro.

“chinaski”

dear henry,
i imagine what
you’d say about that…
perhaps it’s just
another mistake but
it’s specifically that:
i do like people.
and simple people,
without their meaning,
are just as beautiful
as they’d believe in
their would’ve being
masks.

9.10.06

“desconforto torácico”

tenho chorado ao assistir a filmes antigos e trágicos
em tardes pretas e brancas
desvanecidas em cinzas cômicas.
tenho chorado ao ver pergaminhos tortos
formados por formigas prenhas de velhos vícios
sobre a mesa da cozinha listrada.
tenho chorado pelos espaços vazios
entre as pedras portuguesas
do centro da cidade.
tenho chorado ao consultar o dicionário
sobre o verdadeiro significado
da palavra colear.
tenho chorado mais do que o chuveiro
sobre poros d’água coleados de miragens.
tenho chorado ao ler cartas amareladas
que escrevi a mim mesmo
depois de rasgá-las.
tenho chorado ao lembrar de mãos
com unhas vermelhas e gastas
prendendo cuecas no varal de náilon.
tenho chorado ao me lembrar
de que não lembro nada
sobre nossa infância ancestral.
tenho chorado sempre que vejo alguém chorar
em silêncio escondido por mãos fratricidas.
tenho chorado ao jogar moedas de farpas
a um senhor que não movimenta mais as pernas
e vive dentro de uma caixa de papelão
– porque ele sorri mais do que você e eu.
tenho chorado por quartos escuros no meu coração
lotados de crianças enfartadas.
tenho chorado por jóqueis novatos de Belford Roxo
que ganharam os últimos dezessete páreos.
tenho chorado por pugilistas aposentados.
tenho chorado por bailarinas degadianas:
prostitutas em calos impressionistas.
tenho chorado por não conseguir evitar
a chuva tórrida de discussões hipócritas
que inunda de tédio a verdadeira mentira.
tenho chorado quando nuvens de dentes
sangram as gengivas da loucura paciente
de entregar um dossiê de rosas eufóricas
à faca azul celeste do Parque Farroupilha.
tenho chorado sentado sobre paradigmas
porque uma menina que lê à beira do lago
virou reflexo bêbado no espelho d’água.
tenho chorado porque falo e ouço falarem de amor
como se isso nos desse algum tempo a mais.
tenho chorado com falta dos meus pais
enquanto a barba cresce inadvertidamente.
tenho chorado ao ler Carlos Drummond de Andrade
quando ele diz que está preso à sua classe
e a algumas roupas vestidas de náusea.
tenho chorado por um pássaro de peito amarelo
que fez um buraco no chão de terra com o bico:
os olhos estalados por algo que não admito.
tenho chorado por tanta gente que nem conheço
que acabo vazio de tudo e, súbito, me esqueço
dessa falácia que é "conhecer a si mesmo".
tenho chorado tanto e por tanto tempo
confundindo vinho com ressentimento
e desconfiado de que talvez tudo isso
importe ainda menos aos ciscos livres:
cólicas dançarinas que norteiam o ventre
do sorriso estuprado pelos olhos do meu rifle.

8.10.06

“verdade cotidiana raramente comunicável”

é fácil ser hipócrita e
ao mesmo tempo ser
crível e agradável
enquanto se é hipócrita
mas ao mesmo tempo
assim é ainda mais fácil
e difícil ainda porém
muito útil e menos sexual
do que o armistício
da frase sozinha
que se tornaria sólida
como na cabeça de quem
nem se quer saberia
mais do que gosta
mas gosta da curva
do sorriso hipócrita
no tratamento de tártaro
por riso como se fosse
aorta agora facetada
errata para eternas caretas
Atenas pela repetição de cismas
simplesmente no largar o não
no ato de me pegar na mão e
no que rodar no ar já não
sempre tão tenra e sem
saber o que fazer da cera
senão seria o bastante no
invisível ciúme que ocupará
vergonhas disfarçadas de vontades
desatentas para resolver celeumas
nas quais nossos avós jamais
poriam fé ou os pés por mais
que o deslize sofra de asma
como nós ou como nossos
avós.

6.10.06

"remorso"

às vezes
um pingo
de vinho
esquecido
na mesa
domingo
significa
a tristeza
mais que
o suicídio
daquele ex
antigo amigo
proxeneta.

5.10.06

"Moça linda bem tratada" (Mário de Andrade)


Moça linda bem tratada,
Três séculos de famíla,
Burra como uma porta:
Um amor.

Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.

Mulher gordaça, filó,
de ouro por todos os poros,
Burra como uma porta:
Paciência...

Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.

4.10.06

"O último poema" (Manuel Bandeira)


Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

3.10.06

"essa gente verbal"

mundo gerúndio:
aliteração do caráter
de um grito morfológico
no silêncio onomatopaico.

muito cuidado, é claro
sempre é necessário.

arredores pelos ares
das dores de arredar
o pelo menos o mesmo
verbo que arrasta afoito
o nosso medo morto.

enquanto isso omitimos
dores, amores, Plutão
Platão, miragens, pestes
epidemias, enchentes, sonetos...

mais ainda, nós damos um jeito
de fazer com que certos olhos
nos forcem a pertencer a pastas.

mundo gerúndio:
sujeito abstrato na
cocaína sem rima
de feridas gengivas
infinitivas de noites
há pouco mal-dormidas
em espelhos canhotos
de sonhos impessoais.

mas existe essa gente verbal
cujos queixos nos apresentam
nada, além de uma geléia geral
sem Torquato nem quarto de lua
escravidão semântica que gruda
no desprezo das solas dos anos:

“viver é lutar”
“lutar é poder”
“poder é amar”
“amar é viver”.

mas meu emprego
não é particípio
e nem poderia.
não forma futuro
do subjuntivo
porque poesia.

verbos são berros
no fim dessa feira.
são certos e cegos:
silêncio de cera.

ecos anômalos
defectivos
unipessoais
nominais
irregulares
auxiliares
secos de crase.

como pó
como nós
como frases.

“laços de bronze”

pai...
quando vi os olhos de bronze
de Drummond e Mário Quintana
num banco da Praça da Alfândega
ouvi sinos – talvez de uma igreja
e me lembrei de um domingo
quando engolimos calados nossa ceia
porque afinal era domingo de natal
e depois, já na rua, lembrei também
que estávamos bêbados e sentimentais
e você falou comigo através de ombros
sobre um texto meu que tinha lido
sobre você e sobre seu próprio pai.

e me lembrei que você enxugava os olhos quando voltei do banheiro
e comemos arroz amarelo com tempero indiano e peixe ao sal grosso
e que o garçom te conhecia pelo nome, o que me deixou feliz.
lembrei de tudo atravessando a praça sob olhos de bronze,
inclusive daquelas frases silenciadas por soluços de fome
e, além destas, coisas tão importantes quanto pequenas,
quanto o silêncio que as cobriu de pó sobre nosso baú.
lembrei também de como estou longe agora
do abraço que nunca te dei conforme os braços tremiam
porque queria um abraço mais longo do que a verdade.
lembrei também de que quando saímos do restaurante
– bêbados e sentimentais, assobiando uma canção antiga italiana
para que palavras indefinidas não estragassem o momento mágico –
passamos por um sinal vermelho por volta da meia-noite de natal
e um menino de rua se aproximou com um pacote de balas e lágrimas negras
e você deu a ele uma nota de 50 reais e então fomos embora em silêncio
como se estivéssemos ambos envergonhados por não ter feito algo melhor.

então chorei no meio da praça
(eu a criança que cavou a esperança na calçada)
como se fosse eu mesmo aquele menino de rua
que olhava pela janela do carro
duas pessoas que se amavam
sem saber como lidar com isso
a não ser de forma natural,
o que significa deixar o saber de lado.
e sei que Drummond talvez julgasse isso mal
e que talvez Quintana preferisse falar de sapatos,
mas foi preciso escrever isso para adocicar meus passos,
pois meus olhos tentam burlar tua falta mas ardem como sal,
pai...

2.10.06

“três pontinhos”

revirar a volta escura
até que se torne pura
e faça com que a rota de fuga
arrote essa revolta muda
e a antiga reviravolta
em cuja morte vive a pulga
torne-se espécie eunuca:
sopro clandestino,
nuca em riste...

a inocência é mãe das virtudes
e
madrasta de todos os pecados.

e com o tempo perdido às escuras
sentindo falta do que falta ao tato
percebemos que o único antídoto
para o espinho venenoso da loucura
de fato – fatalmente – ou dos fatos
é a solidão sem charme ou cura.

mas eu nunca
poderia admitir isso
sem reticências...

Vladimir Maiakovski


"Amar não é aceitar tudo.
Aliás: onde tudo é aceito,
desconfio que há falta de amor".

1.10.06

“so you want to be a writer?” (Charles Bukowski)

if it doesn't come bursting out of you
in spite of everything,
don't do it.
unless it comes unasked out of your
heart and your mind and your mouth
and your gut,
don't do it.
if you have to sit for hours
staring at your computer screen
or hunched over your
typewriter
searching for words,
don't do it.
if you're doing it for money or
fame,don't do it.
if you're doing it because you want
women in your bed,
don't do it.
if you have to sit there and
rewrite it again and again,
don't do it.
if it's hard work just thinking about doing it,
don't do it.
if you're trying to write like somebody
else,
forget about it.

if you have to wait for it to roar out of
you,
then wait patiently.
if it never does roar out of you,
do something else.

if you first have to read it to your wife
or your girlfriend or your boyfriend
or your parents or to anybody at all,
you're not ready.

don't be like so many writers,
don't be like so many thousands of
people who call themselves writers,
don't be dull and boring and
pretentious, don't be consumed with self-
love.
the libraries of the world have
yawned themselves to
sleep
over your kind.
don't add to that.
don't do it.
unless it comes out of
your soul like a rocket,
unless being still would
drive you to madness or
suicide or murder,
don't do it.
unless the sun inside you is
burning your gut,
don't do it.

when it is truly time,
and if you have been chosen,
it will do it by
itself and it will keep on doing it
until you die or it dies in you.

there is no other way.

and there never was.

*** tradução livre minha mesmo ***

“então você quer ser um escritor?”

se não explodir de dentro de você
apesar de tudo,
não faça.
a menos que venha sem ser chamado
do seu coração e sua mente e sua boca
e suas tripas,
não faça.
se você precisa sentar por horas
encarando a tela do computador
ou encurvado sobre
sua máquina de escrever
procurando por palavras,
não faça.
se você está fazendo pelo dinheiro
ou fama,
não faça.
se você está fazendo porque quer
mulheres na sua cama,
não faça.
se você precisa se sentar ali
e reescrever de novo e de novo,
não faça.
se dá trabalho só pensar no assunto,
não faça.
se você está tentando escrever como outra
pessoa,
esqueça.

se você precisa esperar rugir de dentro
de você,
então tenha paciência.
se nunca rugir de dentro de você,
faça outra coisa.

se você antes precisar ler para sua mulher
ou sua namorada ou seu namorado
ou seus pais ou qualquer pessoa,
você não está pronto.

não seja como tantos escritores,
não seja como tantos milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não seja estúpido e chato e
pretensioso, não seja consumido com amor
próprio.
as livrarias do mundo têm
bocejado até
dormir
sobre o seu tipo.
não acrescente a isso.
não faça.
a menos que venha de dentro
da sua alma como um foguete,
a menos que seja ainda o que
levaria você à loucura ou ao
suicídio ou assassinato,
não faça.

a menos que o sol dentro de você esteja
queimando suas tripas,
não faça.

quando chegar a hora real,
e se você tiver sido escolhido,
a coisa se dará
por si só e manterá você fazendo isso
até morrer ou isso morrer em você.

não há outro caminho

e nunca houve antes.

“brazil”

esperar cinzas serem brancas
para renegar o amarelo de agora
mas se o verde incomoda a hora
por que promessas são azuis?