O amor havia se fantasiado de cigana. Nos encontramos em Santa Teresa, em meio a pensamentos de confete, e terminamos numa cama desfeita, arrepiados de saliva. Depois que o amor tirou a fantasia, ou melhor, depois que a fantasia foi arrancada com os dentes deste que vos confessa, não houve sono nem sexo, mas houve tudo, sem nexo, pois era o amor outra vez e o amor, quando é outra vez, não admite sono nem sexo, de modo que dormimos de olhos abertos para dentro, abraçados enquanto os ponteiros do relógio derretiam sobre as notas soltas de uma orquestra dissonante no fundo do corredor já sem prédio, dentro do bairro já sem cidade. Não podia amá-la, mesmo fantasiada, afinal não se ama o meio, o amor, mas o fim, aquilo que ele não diz. E no vazio do embalo coxo de uma dança com poucos movimentos calamos juras de carnaval com beijinhos de esquimó e asas de borboleta foram encontradas dentro dos nossos bolsos, dos meus e do amor travestido de cigana inamável. No dia seguinte, como era de se esperar, ele o amor, ela a cigana, já não estavam mais lá: a fantasia era minha. Olhei no espelho e nem eu: trapos sobre um corpo estranho atravessado por idéias de sorriso no choro incontido em gases violetas. Não era eu mesmo, mas foi tão bonito! Da pia do banheiro fiz a manjedoura. Das lâminas do êxtase a profecia. Do pulso as água de minhas palavras vermelhas. E ao lado da barriga aberta de sonhos inatos, nada além de uma carta escrita com letras gregas, trêmulas de vinho, dedicada àquela que se foi sem ter vindo. Escorreguei pelas escadarias sem saber que as escadarias eram serpentinas desenroladas conforme passos. Quando cheguei no não sei onde chegar, percebi com os dedos dos sonhos – ou seria ela? – que com sorrisos não se cabia mais nas ruas. As pessoas em volta, em minha homenagem, insistiam em ignorar minhas perguntas. Mas elas cabiam, pois carregavam pastas e frases postiças, além de carreiras de tosse. Uma ofendia a madrugada, agarrada a um poste. Outra acompanhava um funeral, cercada de mais alguns conhecidos. Entre eles um outro, muito parecido comigo, por sorte deitado, mãos cruzadas de céu, era levado pela ressaca de mãos e lágrimas, tal qual o mito de Noel. O sol fazia barulho de expectativa. As crianças estavam embriagadas, obscenas, envergonhadas dos adultos. E os adultos esfaqueavam sombras, desejo de serem reconhecidos pela própria emoção. Pus as mãos nos bolsos, pus atrás dos olhos: as asas haviam se desmanchado em cinzas da quarta estação. O sol tocava surdo a chuva reco-reco o ritmo de outro mundo onde as coisas arrastavam a pressa de um mundo pintado no interior dos anos que não passaram; ficaram deitados nos bancos de praça sussurrando nomes antigos cobertos pelas páginas sujas das notícias de ontem: olhos necrosados pelo sentimento do mesmo mundo faminto, tão perto, tão colo, tão longe, tão calo, apesar de nosso, que é hoje e sempre, meu amor. Não amo porque sou o amor, morto apesar de eterno, asco de asas pálidas perdidas como olhos pintados na cor esquálida dos bolsos secretos, apesar do que o cérebro degolado monta quando não quer se despedir do adeus.
20.10.06
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