26.3.06

“réquiem para minha caneta”

meu mundo são esses passos firmes no assoalho
sobrados em fila mudam as cores dos telhados
porque palavras esquecidas na dúvida das asmas
tropeçam fúnebres e fundam estrume de passado morto
mas de cor viva e desejos nítidos malditos e explicados
mortos doces com os quais você se lambuzou de mim.

e se é uma busca injusta
desculpas não servem
justifique as trevas:
que seja desvairada!

é triste o modo como morre uma caneta
é bem mais triste que a morte humana
é triste quem não repara no fim da tinta
mas complicado
antes que eu me esqueça
é se apegar às cores
do desejo assassinado pelas linhas.

porque sou uma caneta seca e cínica
que cospe fôlego quente na pele das mesas
sou vida alheia tingida de tudo que falha a tinta
do sonho xucro de uma civilização anônima
doentia estimativa de furor de gênio.

mas a noite escorre e vaza cômica
no cartucho sujo do meu lamento
para o fim da carga que carrega pus
palavra filha abortada de olhos lentos
arrancada do leite materno vaga idéia
da tinta cinza no meu sonho azul anil.

e enquanto morre minha caneta
velha caneta que eu uso agora
e que escreve ainda absurdos
e pigarra e sofre como eu

um homem grita lá fora:

“pamonha! cural! tem pamonha!
tem pinha! tem gostosa!
tapioca com recheio de coco!
gostosa! gostosa é a pamonha!”

e então me esqueço da caneta
esquecimento explicação para a dor
eu pobre ingrato que não teve sorte
presentear tua boca com essas palavras frias.

caneta boca linguajar vergonha.

me dou nos pêlos e você está aqui
entre meus dedos e meus sonhos
cuspindo e rindo vertiginosamente
tuberculose entranhada no cérebro.

te mato portanto
sem adeus ou pranto
te mato no mar sem ar caneta
mas te deixo bendita no fio do risco
porque sou tão ou mais barato que você.

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