27.2.22

"pequena canção de grandes esforços"

 

com braçadas náufragas chegarei à ilha,

navio que afunda, eu chegarei ao porto,

no sono da culpa, eu chegarei à igreja,

na lesma da planta, eu chegarei à larva,

na troca da guarda eu chegarei à guerra,

no erro de deus, eu chegarei ao cristo,

insisto e imploro, eu chegarei sem hora,

com raiva e perdido, eu chegarei vivo,

na crista da onda, eu chegarei na areia,

sem eira nem beira, eu chegarei aberto,

gatilho de incesto, eu chegarei só osso.

 

com corvo na ideia eu chegarei tagarela,

na flor do pecado, eu chegarei sem água,

com fome, com sede, eu deitarei na rede,

à espera dos bárbaros, eu ficarei sentado,

na longa jornada, começarei de novo,

entre vida e aborto, eu morrerei de sono,

com os pulsos abertos, eu fundarei a paz,

com paz ou sem paz, uma coisa é certa,

a paz é produto do que explode na selva,

mas o selvagem virá, ele dobra a esquina,

traz mito, traz lança, ele me traz pequeno.

 

 

 

22.2.22

"adeus, copacabana"

 

vou-me embora de copa,

onde nunca fui filho de rei,

dormi em cama emprestada,

tentei passar de cabeça erguida

diante dos filhos de militares

que tocam fogo nos mendigos.

 

sempre estive exilado em copa,

sendo ali um pouco mendigo,

sendo um pouco filho de militar,

sendo um pouco fogueira feia,

mas amei copa platonicamente,

como uma senhora cara demais           

e também como aquela bisavó

que fuma escondida no lavabo,

detesta humanos e aos pombos

dá de comer: vou-me embora.

 

nunca tive um amor em copa,

trouxe o meu de santa teresa

e sempre tive a fria impressão

de que eu era pouco pra copa,

e copa era pouco pra ipanema,

e ipanema era nada pro leblon.

posto que eu era nada no nada

e essa vida era uma telenovela.

 

finda novela, digo adeus a copa,

onde não encontrei uma esfirra

boa como no largo do machado,

ou uma tapioca que fosse páreo

pra tapioca da feira da glória.

 

era preciso ter sido um velhaco

pra estar em copa com espírito,

mas sou um homem nem velho

nem novo e vou embora pleno

de que nada aqui foi para mim,

eu que, por não ter muita grana,

talvez diga adeus, copacabana,

com água da casa no botequim.

 

20.2.22

"as raízes do romantismo"

 

aqui os homens desesperados,

humilhados pelo iluminismo,

castrados em suas próprias camas,

ordenados por uma natureza hostil,

filhos bastardos de homens nobres,

filhos de açougueiros, padres e trastes,

piratas e ferreiros, idólatras e loucos,

sombras de uma piedade rancorosa,

aflitos de deus e da solene autonomia

do gesto, a quem nenhuma mulher

veio ensinar a paciência do gesto,

a gestação do gesto, a coragem da vida,

então eles se bateram em duelos,

fracos e tísicos e magros e rudes,

com perucas florescentes e olheiras,

com bandanas corsárias na cabeça,

todo o risco de não ser alguém bom

e ainda assim viver pala além

da sobrevivência e do martírio,

mas ah se houvesse ao menos

uma prima, uma irmã, uma mãe,

além dos mil discípulos de jogatina,

que pudesse enxugar as lágrimas

de toda uma geração de crianças

heroicas e assustadas e brutalizadas

por uma coragem forjada na guerra,

por uma ideia que se esvai na doença,

trêmulas carcaças em testes de honra,

isso nunca foi suficiente e malogra

todas as expectativas de um século

que cai no colo da nossa juventude

como o fogo ainda incandescente

de todos os erros e falhas e desvios

que se possa acolher no colo original

da mulher que homem nenhum sabe,

e que traga alguma paz ao suor doentio

na expectativa de alguém que diga:

não se preocupe, meu pequeno, viva

e não se preocupe com nada agora.

13.2.22

"vida montanha no avesso da morte"


eu quero mãos calosas e corações macios,

descobrir o fracasso como a flor precoce.

na raiz do naufrágio vive o coração do rio,

as implosões são o pus da nossa boa sorte.

 

quero alguém que me ame tanto a ponto

de eu pensar que escrevo a mim mesmo.

a moral se apagou nos lençóis do aborto,

ancoram anos elefantes em desfiladeiro.

 

é preciso um trovão uma coisa que rosne

dentro de algo macio que traga conforto.

é preciso arrastar talvez um corpo morto,

somar suor e surra no silêncio da degola.

 

sopra de algum sonho a chance concreta

de agarrar sem arrebentar o fio de prata.

eu quero a vida que espreita pela fresta

da porta que range e nunca se escancara.

 

roubar de olhos abertos o que se proponha

a fazer faísca na fogueira que fria se apaga.

no investimento do que ri e não tem nome,

eu serei a gentileza de uma disputa de faca.


10.2.22

"uma sopa de legumes decente"


apesar do mundo ser horrível,

é bom ficar doente com você.

todos estão doentes, morreram

milhões de pessoas da doença

que nós agora compartilhamos.

 

respiramos com dificuldades,

catarro solto em nossos tubos,

relaxantes musculares tornam

escuros os sonhos, o suor ácido

desafia nosso amor pela manhã.

 

eu melhoro, você não, preparo

uma sopa de legumes e você

não confia totalmente que eu

possa fazer uma sopa decente.

 

mas eu nunca tive tanta certeza

de que uma sopa ficaria ótima,

quanto agora enquanto eu faço

uma sopa de legumes pra você.

 

e você não confia que eu possa

fazer uma boa sopa de legumes

porque o amor é a dúvida capaz

de tomar o corpo de outro corpo

sem distinguir, das engrenagens,

a que mata e a que torna eterna

a capacidade de se amar alguém.

 

e você vai provar a minha sopa

e vai dizer: esta sopa é decente.

veremos um filme sobre Belfast

que, apesar das mortes, é bonito,

e nossos pés, também dopados,

encontrarão um ao outro cegos,

enfrentarão a noite escura viral

como os guerreiros mitológicos

que apontam o dia da vida nova.

5.2.22

"quarenta anos quem diria"


tenho finalmente

quarenta anos

e me sinto cansado

como um garoto

de vinte, um velho

garoto de vinte anos.

 

que absurdo uma amiga disse

já pensou, velhinho, na ideia

de que você pode ainda nem

estar na metade da sua vida?

 

então eu disse, calma lá,

não ergui brasília nem nada,

não escrevi os antipoemas,

veja, este aqui é mais um

desses que depois vão ficar

por aí sempre à espera

de mais um tempo juntos,

poder contar os anos como

um condenado que conta

o tic-tac da bomba enquanto

está amarrado frente à bomba.

 

uma pena não poder mais dizer

morreu de droga aos vinte e sete,

morreu de jesuíta aos trinta e três,

morreu de louco aos trinta e nove.

 

pelo menos eu existo no mundo

em que a ledusha gosta de mim.

não sou o velho marlon brando,

não consegui ser um deus velho.

 

todos ficamos um pouco loucos

nesses últimos tempos de crime,

não há a quem pedir desculpas.

 

menos as crianças, pobrezinhas,

que hoje são gnomos adultos e,

como sabemos, assim perderam

o reino dos céus – mais um tapa

na cara das nossas ingenuidades,

papai-noel alcoolizado na sarjeta:

fadinha do dente no reality show.

 

3.2.22

"sim estamos revoltados"

 

eu seria feliz uma planta,

mas não gostaria de ficar

sem dar a minha opinião.

 

dizem que agora se volta

a respirar e que os astros

abrem alas para aquário.

 

vamos saindo do casulo,

como bichos feios ruins

no sonho frágil das asas.

 

nada de novo no fronte –

são cinco para nos matar,

só mata quem tem medo.

 

serei a planta centenária,

uma que fala, que canta

e que talvez diga amém.

 

felicidade que apodrece

em pontos de audiência,

ódio do que pede calma.

 

que amor seja a palavra

pronunciada no apagão

do que seria importante.

 

o que podemos prometer

são cálculos espontâneos

e beijos de olhos abertos.