24.12.20

“para bichita pelo seu aniversário”


devagar minha cabeça encontra

o carnaval do meu corpo.

vou freando as palavras limpas

e sujo rimas a contrapelo.

 

os versos são coisas que andam

na mordaça dos desejos.

os livros são patas de elefante

na estante das angústias.

 

despejo disciplina de cemitério

na marmita dos enganos.

esta proibição de se estar feliz

gangrena em nós espécie

de perigosa desenvoltura cristã.

 

é preciso cada um de nós

ser aquele que tira cada um de si

sem que seja preciso fugir.

 

existe sempre algo a ser erguido

dentro deste espaço vazio

que existe num só fio de cabelo.

por dentro deste pátio sujo

há uma linda torre – babélica –

entre nós, uma nova força,

uma que espreme expectativas

contra a boca de um sonho,

então forjamos não ter medo,

invadimos nus o fim de tudo

que nem bem começou mas

sempre pareceu que acabaria.

 

corremos a crua demência

das ruas com olhos arregalados.

internamos falsas ofensas

na goela de tão belos segredos.

e contigo quero aprender

a esperar por tudo e não fugir.

pois explodem as pregas

da nossa um dia jovem sorte,

no calabouço da paixão.

 

nunca sozinhos nós gritamos

num silêncio de andaime:

ó paz fria dos nossos mortos!

traíra do meu desprezo,

sorriso de mamão, um auxílio

de emergência que vem

de um demônio sem cintura

e que talvez não caiba

no futuro da nossa espécie.


no estômago secreto

dessa marcha prenhe de riscos

nasce uma pequenina

coragem fantasmagórica de ir,

que só contigo inventei.

mas então eu era outro e a vida,

nosso único desastre.

 

eles nos cercaram com a ponta

de uma agulha de ouro

e nada do que podemos fazer

facilita a dor de alguém.

é bom também poder perder

ao teu lado, sugar força

e derreter o iceberg de fogo

no precipício que somos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


26.11.20

"barrilete cósmico"


para diego armando mar(ad)ona

 

fecha a tua mão mais uma vez,

eu fecho meus olhos selvagens

e abro naquele mesmo planeta

de onde vieste baixo e irritado,

como um tio, toca meus lábios,

com empáfia, ira e aguardente,

como um irmão, soca meu rosto,

ainda por outra vez não morras

pois não morre um alienígena,

ou não da forma que pensamos

conhecermos o que é o morrer,

na boca dos rufiões dos portos

de todas as bocas brabas latino-

americanas em que os anjos são

apenas nomes de rua e tremores

nas bocas desdentadas de velhas

que são também minha avó, eu

que por pouco não pude possuir

teu nome quando era também eu

da legião dos envocados baixos,

eu vejo você um pouco meu pai,

no que és um italiano camponês,

de família operária, então fecha

teus olhos e pensa sou garibaldi,

heroi xamânico em transe magro,

de madre indígena como herdeiro

dos povos originários de américa,

dos povos de esquerda de américa.

 

e o anticristo gauche em ti se eleva,

e te toca somente do lado esquerdo,

até implodir as coisas em sacrifício

então passas feito o boneco de luz

raspando o bigode reto do fascista

e do usurpador da energia alheia,

porque foste tu meu sanguessuga

na carne turva da minha infância,

a comparação nominal do trauma

que me definiu paz descontrolada,

carnaval do corpo em puro enlace

de uma decadência tão doce que é

o tapa na cara do nosso equilíbrio

mórbido de paredes e repugnância.

 

és completo e te defines compacto

sempre no pico da onda da morte,

até que passaste bem lentamente

para o tamanho do estrago poético,

tua causa, teu mármore raspado,

como o membro vivo da família,

veia aberta de um tango com faca,

impureza que entorta a hipocrisia

enquanto fecho meus olhos nativos

e xingaremos hirro de puta a todo

europeu que vaiar nosso hino pleno

de todo migrante, vagabundo heroi

de quem em cada viela há um ícone,

o canal com deus para todo um país,

mas vieste de outro mundo e o teu é

um outro deus, que gostaria também

me levasse ao mesmo céu que o teu,

eu que sempre fui baixo e compacto,

sempre irritado com o que não sabia

dizer do jeito claro então eu rosnava

e lançava-me nu em aventura épica,

tu, cristo que falava palavrão e pinta

com tintas eternas o traço do trovão,

arco completo da existência em fúria,

e feito louco soubeste ganhar e perder,

explodir feito o barril antidiplomático

que permite definir o sermos pobres

latino-americano indígenas operários.


22.11.20

"o júbilo da marcha"

para adelaide ivánova

 

com coração em jejum

animo os ponteiros

de uma bomba-relógio.

 

com paz de cimento

afio um raquítico

faqueiro de promessas.

 

com um assombro nu

o mofo aduba a vida

guardada numa outra

imensidão – crescida

para dentro como as

pálpebras da saudade.

 

com uma fé de chumbo

os cavalos da memória

agora boiam na lagoa

dos meus olhos – aqui

a esperança é um padre

na cama da compulsão.

 

não esqueci, contudo,

que no escuro há som.

não deixarei, entanto,

que no raso falte água.

e que na água, os seres,

e que, nos seres, amor.

 

amor eu não sei dizer,

mas faço, perdido faço.

e marcho sem as botas,

e marcho, porque vejo:

ali tremem mãos e pés,

na direção do comum.

29.9.20

"devagar também é pressa"


passei tanto tempo sem ter nascido

e agora trago essa creche na cabeça.

sem conseguir que o choro silencie,

sem poder dar às crianças uma teta.

 

fecho os olhos e penso: sou adulto,

uma pena: eu sou um adulto pleno.

muito sofrimento, quando sou triste,

é sinal de felicidade no meio do céu.

minha cabeça é a feira sem verduras

onde passaram a vassoura do poema.

 

congestionado o intestino da criação,

sacrifico com veludo úmido uma fé

pequena de sussurrar janelas-sereias

ao mistério de tudo tão quieto agora.

 

não sei nada e o engano do que vejo

é maldade no deserto da minha testa.

 

os poemas me saem como quadrado

ou como retângulo ou como o túnel

que liga a loucura até a primeira paz

e os berços em chamas à sede escura.

 

conforto os joelhos no prego só meu,

cuja ponta fez delírio, fez apocalipse

na crista de sal desta onda de náusea,

bonita porque vai e vem sempre outra.

 

a calma recobro com sacos de plástico

que enxugo como pulmões de pombo

e lembram dias felizes de asma e cura,

gordura órfã morta por outra hesitação.

 

nem que seja por um minuto no poema,

saber que estou do lado certo da história,

para que um poderoso, ainda que inédito,

deus surja no sentimento digno de classe.

 

não há que se forçar uma abstração lúcida

no lugar onde se esbalda a carne desperta.

 

escorrer como a síndrome do mecanismo

que é puro joguete ao lado do superfrágil

rolar de ações que dá sentido ao novo dia.


12.7.20

“baby buda”



quero aqui no meio desta
confusão poder aprender
a estar desatento de mim
sem, com isso, me perder.

observo os tipos vaidosos:
o que conta seus ganhos,
o que conta suas perdas,
o que diz como não conta,
o que conta como não diz.

quero ser o que não conta
mas sabe o que não conta
e, sem contar, se esquece
e se esquecendo aprende.

fazer do pequeno, grande
e, do grande, o que passa
sem deixar grande rastro.

olhar para o varal vazio,
tão perfeito de ausência.
não pensar na roupa suja
mas no corpo que cobriu
a roupa suja com sujeira.

derrubar todas as portas,
receber o que sem nome
vive atrás do meu futuro
e morre além do passado
na mata funda da clareira.

participar da grande feira:
os bolsos cheios de nada,
com a fome dos planetas.

arrancar por fim os olhos
e tomar banho no escuro:
escorrer no ralo do nome.

dar migalhas aos filhotes,
deixar sem fazer barulho
o leão dormir com fome.

9.7.20

“estamos sempre enganados aqui”



a coragem é o cuidado dos desesperados,
o amor deve chegar ou então morreremos,
morreremos mesmo que ele não chegue,
mas é preciso saber como nós queremos
que ele chegue a nós: se morto ou vivo,
nós vivos ou mortos, porque mesmo tal
notório genocida, além dos mal-paridos
também são frutos, ainda que amargos,
de um instante de amor, o mesmo amor
produziu todas as guerras e atrocidades,
porque mesmo o mais torpe fomentador
da violência sentou por um instante e viu
sua própria existência, mesmo enganado,
e pensou: eu faço o que faço pelo amor,
ou o que perdeu o amor, perdeu e nunca
mais esquece de pensar nele, como a luz
artificial num quintal de meio-dia, todos
nós sentimos, na pura escuridão da vida,
que nos falta amor, e mesmo os que nunca
mais sentem amor de tanto terem recebido
e por isso desistem, porque não enxergam
o que arrastou seus esqueletos animados
até o ponto em que desistirão de procurar
o caminho de onde se veio e aonde se vai,
mesmo os desistentes inundam seu amor
pela calçada suicida do santo desperdício
e o amor deve chegar, como um gato gris,
como baleia dentro da barriga ou pólvora
que se respira quando estamos por um triz
na trincheira em que dois lados escondem
duas vontades de amor: um amor que seja
contrário de outro amor, sem saber como
dois amores podem estar enganados aqui,
mas estamos sempre enganados aqui, nós
somos o que se enganou em nós do amor,
aquele pássaro inaugural contra a vidraça,
que vinha pulsando de força e vida plenas,
até que o vidro, a luz artificial num quintal
de meio-dia, o sol invernal que interrompe,
parece querer dizer: devagar também seja
a pressa de cada destino que vara o desejo,
a fome também seja o ventre cheio de paz
do medo fecundo em nossas barrigas de luz,
e mesmo assim o amor chegará, como cruz
na fé inanimada por pensamentos de saída,
na vinda de um deus ou da cura provisória,
porque tudo deve ser provisório, mas não
o amor, que virá, como o gelo no focinho
do mamífero ancestral que rumina tempo,
na curva violeta de um colapso epifânico,
ele chegará e vai nos permitir termos feito
tudo que fizemos, ainda sendo os mesmos
ridículos, iluminados, engolidos de medo,
sentados ou de pé, nas filas ou nos retiros,
matando ou morrendo, da raiva dessa lira
que embala todas as dúvidas em uníssono
na fé pelo veneno do adolescente magro,
ou no vulto precioso de uma canção ruim.

1.7.20

“infinitas vinte e quatro horas”


eu preciso salvar apenas um dia,
inventar um deus e não ter vergonha
por estar perdido e por não senti-lo.
criar a matéria da sensação não sentida
e chamar deus mesmo que ele não possa
fazer nada além de ser um tal mistério
que com mão não se toca, com língua
não se fala, com palavra não se pronuncia.
não chorarei agora com a coragem de deus,
este é outro problema: deus não se empresta.

necessito de uma coragem toda e só minha
para poder chorar e viver por este único dia
com a pequena sensação que me foi dada
e sentir o gosto salgado da minha fúria
os sais minerais da minha água própria,
os elementos de pedregulho da minha paz,
que vem do nada e para o nada volta e fico
sem dar nome à a nada com estas palavras.

estas palavras nunca darão conta
da dor que me fazem escrevê-las.
com mãos que nada mais agarram,
eu preciso agora escrevê-las levado
pela dor, mas não escrever contra ela,
pois tudo que agarrei me abandonou,
escorreu pelos meus dedos inchados,
pois eu perdi enquanto comemorava
e ganhei enquanto perdi solenemente.

eu preciso ser bem menos inteligente
para poder ver e me entregar e estar nu
diante do abismo que toda inteligência
abriu diante dos meus pés sem direção.

que existe um deus, ainda que me seja
vergonhoso admiti-lo dentro da fraqueza,
dona do magro dia que preciso salvar.

preciso falar menos sobre o que preciso
falar e sobre o que preciso aqui desejar,
enquanto escrevo menos como um poeta
e mais como alguém que nunca viu nada.
porque a falta de visão me leva ao desejo
e desejo sem visão é como um crocodilo
com a boca fechada e olhos arregalados
de fome silenciosa e paciência de muro
enquanto corro em círculos e tenho pressa.

uma vida inteira sem ficar de pé
agora é uma vida pequena de pé.
de pé como se estivesse deitado,
de pé como se estivesse perdido,
de pé como se impossível agora
sentar para descansar ou sentar
para desistir, ainda que os amigos
existam: eu não sou meus amigos.

chorar com toda força, se ela vier,
pela fraqueza com que pude sorrir.
presentemente, salvar apenas o dia.
sem estética para agradar o que nunca
salvou um dia enquanto eu ganhava
maiúsculos enganos no chapéu das horas.

ser impotente a toda salvação que não
a salvação de um dia e não do outro.
o teto recolhe a ferida aberta do olho
e o segundo em que decidi não pular.
não pulei, não pularei, eu quero sentir
a dor da ferida para gostar da ferida,
agora que a dor é palpável e ela fica
na antessala de lembranças rainhas
sem aquela ânsia de entrar ou de sair,
sem combustível para longas viagens,
agora andar descalço e fazer do choro
a marca na estrada que o vento seca
por isso é bonito chorar de poder sentir
o que não podia sentir para ser igual.

quero sentir o que não quero sentir,
abrir os braços para o carinho sutil
do deus que criei quando me cansei
de ser o deus implacável da minha
contida presença nesta vida surda
e não ser igual e não fechar nunca
os olhos e olhar a parede para dizer:
eu te amo, parede do meu abismo.

transtorno de salvar apenas um dia:
e só por um dia poder estar vivo.
com tudo de pequeno que me cala
e tudo de imenso que me escorre,
pelas calças de um medo sem sono.



30.6.20

“dhamma”



sinto que, pelos poros da saudade,
passa, desalmada, a minha estação.
vou me tornando mais um covarde:
de olho fechado, sentado no chão.

pela mente rasa me vem a luxúria,
ela vem limpa feito uma bailarina.
do teto do verso da floresta escura
desabam palavras, como suicidas.

mas fico sentado e forjo desejos
e digo a mim mesmo: não é certo.
da casa maldita eu peço despejo,
da mata fechada eu faço deserto.

que pode, no deserto, um suicida:
engolir areia até a morte acordar.
conversar com as cobras da bíblia
até que, do tédio, desague o mar.

de volta ao corpo, após uma hora,
bem-vindo fosso do meu desterro.
agora de medo me doem as costas,
cansada, a degola revive no medo.

a pelanca das horas gera este novo
canto de aboio com hora marcada.
sentado medito, atrás do encontro
que pede abandono e, sujo, se lava.

grávido de luz e só, inimigo do sol,
entrego à manhã meu ex-natimorto.
na casa malsã dessa anorexia social
rasgo com silêncio a fúria do corpo.

visão empalada por uivos, a dança
sacode as vísceras do meu destino.
desminto a caça, quebro a balança
da morte, mas agora o rei foi visto.

depois me levanto, engulo fumaça,
esqueço do fruto da nova penhora.
sinto o escorbuto na boca da casa
e sigo sujo, sem medo, sem glória.

desligo o fio do mundo e assassino
a conexão de mentira dos espantos.
no colo eu trago este velho menino
e, na voz asfixiada, um novo canto.