1.7.20

“infinitas vinte e quatro horas”


eu preciso salvar apenas um dia,
inventar um deus e não ter vergonha
por estar perdido e por não senti-lo.
criar a matéria da sensação não sentida
e chamar deus mesmo que ele não possa
fazer nada além de ser um tal mistério
que com mão não se toca, com língua
não se fala, com palavra não se pronuncia.
não chorarei agora com a coragem de deus,
este é outro problema: deus não se empresta.

necessito de uma coragem toda e só minha
para poder chorar e viver por este único dia
com a pequena sensação que me foi dada
e sentir o gosto salgado da minha fúria
os sais minerais da minha água própria,
os elementos de pedregulho da minha paz,
que vem do nada e para o nada volta e fico
sem dar nome à a nada com estas palavras.

estas palavras nunca darão conta
da dor que me fazem escrevê-las.
com mãos que nada mais agarram,
eu preciso agora escrevê-las levado
pela dor, mas não escrever contra ela,
pois tudo que agarrei me abandonou,
escorreu pelos meus dedos inchados,
pois eu perdi enquanto comemorava
e ganhei enquanto perdi solenemente.

eu preciso ser bem menos inteligente
para poder ver e me entregar e estar nu
diante do abismo que toda inteligência
abriu diante dos meus pés sem direção.

que existe um deus, ainda que me seja
vergonhoso admiti-lo dentro da fraqueza,
dona do magro dia que preciso salvar.

preciso falar menos sobre o que preciso
falar e sobre o que preciso aqui desejar,
enquanto escrevo menos como um poeta
e mais como alguém que nunca viu nada.
porque a falta de visão me leva ao desejo
e desejo sem visão é como um crocodilo
com a boca fechada e olhos arregalados
de fome silenciosa e paciência de muro
enquanto corro em círculos e tenho pressa.

uma vida inteira sem ficar de pé
agora é uma vida pequena de pé.
de pé como se estivesse deitado,
de pé como se estivesse perdido,
de pé como se impossível agora
sentar para descansar ou sentar
para desistir, ainda que os amigos
existam: eu não sou meus amigos.

chorar com toda força, se ela vier,
pela fraqueza com que pude sorrir.
presentemente, salvar apenas o dia.
sem estética para agradar o que nunca
salvou um dia enquanto eu ganhava
maiúsculos enganos no chapéu das horas.

ser impotente a toda salvação que não
a salvação de um dia e não do outro.
o teto recolhe a ferida aberta do olho
e o segundo em que decidi não pular.
não pulei, não pularei, eu quero sentir
a dor da ferida para gostar da ferida,
agora que a dor é palpável e ela fica
na antessala de lembranças rainhas
sem aquela ânsia de entrar ou de sair,
sem combustível para longas viagens,
agora andar descalço e fazer do choro
a marca na estrada que o vento seca
por isso é bonito chorar de poder sentir
o que não podia sentir para ser igual.

quero sentir o que não quero sentir,
abrir os braços para o carinho sutil
do deus que criei quando me cansei
de ser o deus implacável da minha
contida presença nesta vida surda
e não ser igual e não fechar nunca
os olhos e olhar a parede para dizer:
eu te amo, parede do meu abismo.

transtorno de salvar apenas um dia:
e só por um dia poder estar vivo.
com tudo de pequeno que me cala
e tudo de imenso que me escorre,
pelas calças de um medo sem sono.



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