9.7.20

“estamos sempre enganados aqui”



a coragem é o cuidado dos desesperados,
o amor deve chegar ou então morreremos,
morreremos mesmo que ele não chegue,
mas é preciso saber como nós queremos
que ele chegue a nós: se morto ou vivo,
nós vivos ou mortos, porque mesmo tal
notório genocida, além dos mal-paridos
também são frutos, ainda que amargos,
de um instante de amor, o mesmo amor
produziu todas as guerras e atrocidades,
porque mesmo o mais torpe fomentador
da violência sentou por um instante e viu
sua própria existência, mesmo enganado,
e pensou: eu faço o que faço pelo amor,
ou o que perdeu o amor, perdeu e nunca
mais esquece de pensar nele, como a luz
artificial num quintal de meio-dia, todos
nós sentimos, na pura escuridão da vida,
que nos falta amor, e mesmo os que nunca
mais sentem amor de tanto terem recebido
e por isso desistem, porque não enxergam
o que arrastou seus esqueletos animados
até o ponto em que desistirão de procurar
o caminho de onde se veio e aonde se vai,
mesmo os desistentes inundam seu amor
pela calçada suicida do santo desperdício
e o amor deve chegar, como um gato gris,
como baleia dentro da barriga ou pólvora
que se respira quando estamos por um triz
na trincheira em que dois lados escondem
duas vontades de amor: um amor que seja
contrário de outro amor, sem saber como
dois amores podem estar enganados aqui,
mas estamos sempre enganados aqui, nós
somos o que se enganou em nós do amor,
aquele pássaro inaugural contra a vidraça,
que vinha pulsando de força e vida plenas,
até que o vidro, a luz artificial num quintal
de meio-dia, o sol invernal que interrompe,
parece querer dizer: devagar também seja
a pressa de cada destino que vara o desejo,
a fome também seja o ventre cheio de paz
do medo fecundo em nossas barrigas de luz,
e mesmo assim o amor chegará, como cruz
na fé inanimada por pensamentos de saída,
na vinda de um deus ou da cura provisória,
porque tudo deve ser provisório, mas não
o amor, que virá, como o gelo no focinho
do mamífero ancestral que rumina tempo,
na curva violeta de um colapso epifânico,
ele chegará e vai nos permitir termos feito
tudo que fizemos, ainda sendo os mesmos
ridículos, iluminados, engolidos de medo,
sentados ou de pé, nas filas ou nos retiros,
matando ou morrendo, da raiva dessa lira
que embala todas as dúvidas em uníssono
na fé pelo veneno do adolescente magro,
ou no vulto precioso de uma canção ruim.

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