20.3.15

Doutor Krauss ou o Caso do Chapéu





1.

Porto-me frente ao profissional, ao, digamos, senhor de cabeça branca, pés descalços como se fosse um ator elisabetano aposentado que aderiu ao ópio – aliás, seu consultório no topo da escadaria pública é como uma casa de ópio de uma little tóquio de qualquer destino imaginário – ele me recebe com uma daquelas camisas brancas gastas meio transparentes de tão gastas e com dois botões abertos e frouxa, como quem diz logo de cara sou um homem favorável aos prazeres, frente a ele eu me porto, se não descontraidamente, fartamente afirmativo, concordo com a cabeça com tudo o que ele diz meio como quem está sorrindo por dentro quando diz algo, afinal não é justo discordar das pessoas que sorriem por dentro sem precisar demonstrar tão descaradamente por fora como nós os normais, ou diria vocês, não mais eu, ou talvez sim, por que não eu também, mas não, ele não precisa mostrar os dentes e me pergunta o que eu sei sobre Wilhelm Reich e eu digo acanhadamente sei que era muito cultuado nos anos cinquenta, mas não exatamente pelas pessoas que representavam os padrões de comportamento daquela época, sei também que inventou uma espécie de caixa de orgasmo ou algo assim, e nesse momento eu pensei aqui também deve haver algum padrão, eu também não sou um padrão apenas, quando acordo e penso em não mais existir e sigo a vida numa composição desastrosa e contraditória, não o padrão que eu não posso ser e sou, mas os outros padrões que seriam hipóteses impossíveis, mas elas existem na caixa de abelhas reichianas – e nisso parecemos concordar, o doutor e eu – na impossibilidade de serem o que podemos delas observar, e eu finalmente deixei de concordar com a cabeça quando a questão tornou-se, digamos, econômica, eu me levantei e sentei novamente de modo um pouco brusco e perguntei onde, por acaso, havia deixado meu chapéu, ele apontou para um porta-chapéus no limiar da sala, acertamos um valor inaceitável como cavaleiros e eu vesti minhas botas de uso técnico usada pelos profissionais que trabalham nas ruas esburacadas e sempre em obras, num mundo em obras e com lindas placas indicando como as obras ficarão depois de prontas, e não podia fazer mais nada a não sei descer as escadas e arrumar uma pequena mochila, porque eu não iria a lugar nenhum, mas era preciso arrumar uma pequena mochila naquele momento, três camisas e algumas meias, duas bermudas com flores nos bolsos e talco para prática de esportes, isso tudo era inevitável e um trabalho mudo, então penso, a mochila nas costas, no maquinal das ruas, se, em todos esses anos, algum dia, numa rua, chegamos perto um do outro, eu, que descendo as escadas percebi que aquele não era meu chapéu, que eu nunca tive um chapéu na vida, mas muitas vezes, em situações específicas, havia usado chapéus de outras pessoas, nem todas próximas, inclusive com uma delas eu me envolvi numa troca de socos, apanhei nas costas, fiquei com o chapéu, venci a luta, mas nesse caso era já um sinal de que, possivelmente, mais cedo ou mais tarde, poderíamos, este que usa um chapéu que não é seu e desce as escadarias e aquele que nunca teve um chapéu e nunca usaria um chapéu porque este não mais se move, ele apenas leva o outro aos lugares e cada vez menos, e neste entroncamento eles diriam um ao outro desculpe se desapareço, tenho tido questões horizontais, apertaríamos as mãos um do outro e desse aperto tiraríamos conclusões precipitadas e as únicas honestas, eu oferecia a ele meu chapéu dizendo já foi de outra pessoa, hoje é meu, agora é seu, um chapéu estranho antigo e sem abas e, muitas vezes, enquanto topávamos nas ruas mas cada vez menos com outras pessoas e dizíamos eu não quero ouvir sempre o que você fala, se neste exato instante não estaríamos ainda na ilusão possível de que aquele encontro estaria tão próximo, à distância de um aceno no cemitério verde de uma pequena cidade como a dos livros germânicos que lemos ou do leste europeu sem entender que é impossível ler sobre qualquer outra coisa mais próxima dessa tensão de que a qualquer minuto pode acontecer, no meio da rua, pensando que nosso encontro seria finalmente a coisa mais pura que uniria o que corre parado ao que espera em movimento e rouba chapéus e os passa adiante, mas eram outras pessoas e isso nunca aconteceu, apenas as outras pessoas dizendo coisas que outras pessoas diriam para nós e hoje dizemos a nós mesmos como as outras pessoas que nos tornamos como é possível viver assim ou assado e existe uma forma de dar a volta no sistema e manteríamos, talvez próximos a uma fração de segundo, as bocas abertas e concordaríamos com a cabeça como quem só pode louvar tudo o que não é capaz de entender e tudo é prova de que não era o encontro afinal, eram outras pessoas, mas se fôssemos nós, um de chapéu que não é dele e outro que nunca usaria chapéu a não ser depois de uma briga, se fôssemos improvavelmente nós mesmo assim, em algum espaço urbano ou mesmo na floresta ou perto do mar e do sal, não saberíamos mesmo assim pronunciar o quão improvável seria este encontro e o quanto ele nos absorveria regurgitando os resultado de nossa trituração a outras especialidades inúteis, mas este dia não veio, ele não virá, ou quando vier não caberá a nós mais uma vez captar ou mesmo entender, ou entenderemos cada vez mais, demais, assim como se mata um passarinho estrangulado, ou nada disso e apenas o cansaço da sensação das etapas a serem cumpridas para de fato não consumar o ato.


2.

Entro e saio de consultórios, agora vou até mais um. A vida é bonita no caminho dos consultórios, vou com os bolsos cheios de dinheiro para Herr Doktor, sempre esperando pelo dia do encontro de uma separação escavada em mistérios, ungida pelo esgotamento de não ser alcançável mesmo sendo perseguida para dentro da proximidade constante deste encontro, que espero automaticamente quando pego o chapéu de alguém e visto e penso que não é meu chapéu, que não uso chapéus, apenas em algumas... preparaste, esperaste, dormiste o encontro com tua mão de misérias pródigas, como passaste a esperar e temer as manhãs, saindo e entrando de pequenas e agradáveis salas de consulta, em silêncio auscultando a vida de outras complicações e consultando-se de que nada poderia ser compreendido, com agradáveis e caríssimos homens do seu tempo, onde as coisas têm nome e os remédios impõem respeito, tabu, repetição, a síndrome do primeiro homem, espero algum movimento do nada que sempre se repete do contrário não seria nada para dentro, a explosão de uma bomba – agora sabes, não és o cento do teu próprio universo, agora esperas, esperas o além do outro sentido, a explosão do corpo que se move sem perdão pelas ruas, esperas além pelas ruas, esperas alguém neste encontro, esperas a ti, és imbecil, com o chapéu na mão. Enquanto não ages o centro se desloca novamente e já são necessárias novas armas e já não as tinhas as primeiras e as antecessoras destas. Adiante.


3.

Agora é preciso parar completamente por um instante ou dois e voltar. Eu havia sonhado. Livros na lixeira, urina, eu correndo nu para secar o livro, o único que se havia molhado, com o vento, a lixeira ao lado da privada, a privada aberta. Eu estava diante de uma escadaria com corrimões dourados, não havia o que fazer então apareceu este senhor que parecia um daqueles mágicos de festas infantis, descalço, com a camisa como a de um pintor impressionista levemente embriagado, e tive a impressão de que ele estava mesmo alto, então me sentei e disse a ele meu sonho em que eu acordava apertado e corria até o banheiro, onde urinava uma pilha de livros dentro de uma lixeira branca. Apenas um livro se molhava. Eu salvava este livro correndo nu com suas páginas espalhadas tentando alcançar o vento da noite pela janela. Eu acordo antes de salva-lo. Mas não é possível ainda começar. É preciso ainda de uma frase verdadeira, que venha de um lugar inaugural. Isso já não teremos, compreende? O professor move a cabeça para cima e para baixo com um vagar misterioso, denotando que está dando ao caso uma atenção cuidadosa. Enquanto estou na sua frente e observo o ambiente como uma casa de ópio em little toquio qualquer coisa, tenho subitamente uma estranha impressão. Ali estou eu, tentando com formas suaves e assertivas de espremer os olhos e concordar com os olhos espremidos, com a nítida vontade de conquistar o terapeuta para poder, logo em seguida, estar na condição de abrir mão dele, enquanto ele se comporta como se eu fosse alguém muito famoso que apreciasse o fato de ele me tratar como a qualquer um. Com a diferença de que eu era qualquer um portando-me como alguém muito famoso que aprecia quando lhe tratam de forma modesta e desinibida, discreta e amistosa. Não me ofereceu um chá, o que admiti como leve falha, mas me resignei quando, no meio de uma conversa que já se tornava desinteressante, mencionei onde mesmo deixei meu chapéu? Ergo-me da poltrona, e ele aponta um porta-chapéus bem ao lado da porta. Foi nesse momento que comecei a me aterrorizar com a ideia do encontro. Já não era mais eu saindo da sala de operações psíquicas, dirigindo-me ao limiar da porta. Era eu com um chapéu sem abas, um chapéu-coco sem abas e velho, que ajeitei na cabeça diante do espelho quando deixei o consultório do Doutor Krauss, era esse o nome dele, e desci as escadarias com corrimões dourados em busca do encontro anunciado por aquele repentino abandono de si. Mas não é nada disso. Ainda é preciso a frase sólida da verdade que não vem nunca mas está sempre por perto. O tabu. A repetição à distância. Desço correndo a escadaria. Há muito que fazer e nenhuma prova de que será possível. Seguir adiante, apenas isso. Mas é preciso também se iludir de que não é isso, por exemplo, fazendo alguma coisa bem ou fazendo alguém nascer para passar por problema semelhante. É o fim da escadaria, a manhã livre está de sobreaviso, finalmente a escravidão consentida. Ainda não seria capaz de trabalhar. Preciso encontra-lo novamente e dizer fique aqui com meu chapéu, até aqui era meu, era de outra pessoa, mas agora é seu.



Um comentário:

Isadora P. disse...

Reli o conto e gostei ainda mais, se possível.

As imagens de caixas de abelhas reichianas, livros mijados que o acordam antes que possa salvá-los. Todas as alegorias do encontro desgovernado com os médicos, terapeutas me encantaram esteticamente pelo o que já havia te dito, a consciência tragicômica de um impossível. Mas eu confesso que o que mais me perturbou foi esse encontro vertigino com o outro de si que não se reconhece e ao mesmo tempo se reconhece - um duplo? Um homem que usa um chapéu que não lhe pertence, um homem que não usa chapéu de maneira alguma, nem mesmo quando tendo-o ganho como prêmio de uma briga de não-camaradas.