1.
Porto-me frente ao profissional, ao,
digamos, senhor de cabeça branca, pés descalços como se fosse um ator
elisabetano aposentado que aderiu ao ópio – aliás, seu consultório no topo da
escadaria pública é como uma casa de ópio de uma little tóquio de qualquer destino imaginário – ele me recebe com uma daquelas camisas brancas gastas meio
transparentes de tão gastas e com dois botões abertos e frouxa, como quem diz
logo de cara sou um homem favorável aos prazeres, frente a ele eu me porto, se
não descontraidamente, fartamente afirmativo, concordo com a cabeça com tudo o
que ele diz meio como quem está sorrindo por dentro quando diz algo, afinal não
é justo discordar das pessoas que sorriem por dentro sem precisar demonstrar
tão descaradamente por fora como nós os normais, ou diria vocês, não mais eu,
ou talvez sim, por que não eu também, mas não, ele não precisa mostrar os
dentes e me pergunta o que eu sei sobre Wilhelm Reich e eu digo acanhadamente
sei que era muito cultuado nos anos cinquenta, mas não exatamente pelas pessoas
que representavam os padrões de comportamento daquela época, sei também que
inventou uma espécie de caixa de orgasmo ou algo assim, e nesse momento eu
pensei aqui também deve haver algum padrão, eu também não sou um padrão apenas,
quando acordo e penso em não mais existir e sigo a vida numa composição
desastrosa e contraditória, não o padrão que eu não posso ser e sou, mas os
outros padrões que seriam hipóteses impossíveis, mas elas existem na caixa de
abelhas reichianas – e nisso parecemos concordar, o doutor e eu – na
impossibilidade de serem o que podemos delas observar, e eu finalmente deixei
de concordar com a cabeça quando a questão tornou-se, digamos, econômica, eu me
levantei e sentei novamente de modo um pouco brusco e perguntei onde, por acaso,
havia deixado meu chapéu, ele apontou para um porta-chapéus no limiar da sala,
acertamos um valor inaceitável como cavaleiros e eu vesti minhas botas de uso
técnico usada pelos profissionais que trabalham nas ruas esburacadas e sempre
em obras, num mundo em obras e com lindas placas indicando como as obras
ficarão depois de prontas, e não podia fazer mais nada a não sei descer as
escadas e arrumar uma pequena mochila, porque eu não iria a lugar nenhum, mas
era preciso arrumar uma pequena mochila naquele momento, três camisas e algumas
meias, duas bermudas com flores nos bolsos e talco para prática de esportes,
isso tudo era inevitável e um trabalho mudo, então penso, a mochila nas costas,
no maquinal das ruas, se, em todos esses anos, algum dia, numa rua, chegamos
perto um do outro, eu, que descendo as escadas percebi que aquele não era meu
chapéu, que eu nunca tive um chapéu na vida, mas muitas vezes, em situações
específicas, havia usado chapéus de outras pessoas, nem todas próximas,
inclusive com uma delas eu me envolvi numa troca de socos, apanhei nas costas,
fiquei com o chapéu, venci a luta, mas nesse caso era já um sinal de que,
possivelmente, mais cedo ou mais tarde, poderíamos, este que usa um chapéu que
não é seu e desce as escadarias e aquele que nunca teve um chapéu e nunca
usaria um chapéu porque este não mais se move, ele apenas leva o outro aos
lugares e cada vez menos, e neste entroncamento eles diriam um ao outro
desculpe se desapareço, tenho tido questões horizontais, apertaríamos as mãos
um do outro e desse aperto tiraríamos conclusões precipitadas e as únicas
honestas, eu oferecia a ele meu chapéu dizendo já foi de outra pessoa, hoje é
meu, agora é seu, um chapéu estranho antigo e sem abas e, muitas vezes, enquanto
topávamos nas ruas mas cada vez menos com outras pessoas e dizíamos eu não
quero ouvir sempre o que você fala, se neste exato instante não estaríamos
ainda na ilusão possível de que aquele encontro estaria tão próximo, à
distância de um aceno no cemitério verde de uma pequena cidade como a dos
livros germânicos que lemos ou do leste europeu sem entender que é impossível
ler sobre qualquer outra coisa mais próxima dessa tensão de que a qualquer
minuto pode acontecer, no meio da rua, pensando que nosso encontro seria
finalmente a coisa mais pura que uniria o que corre parado ao que espera em
movimento e rouba chapéus e os passa adiante, mas eram outras pessoas e isso
nunca aconteceu, apenas as outras pessoas dizendo coisas que outras pessoas
diriam para nós e hoje dizemos a nós mesmos como as outras pessoas que nos
tornamos como é possível viver assim ou assado e existe uma forma de dar a
volta no sistema e manteríamos, talvez próximos a uma fração de segundo, as
bocas abertas e concordaríamos com a cabeça como quem só pode louvar tudo o que
não é capaz de entender e tudo é prova de que não era o encontro afinal, eram
outras pessoas, mas se fôssemos nós, um de chapéu que não é dele e outro que
nunca usaria chapéu a não ser depois de uma briga, se fôssemos improvavelmente
nós mesmo assim, em algum espaço urbano ou mesmo na floresta ou perto do mar e
do sal, não saberíamos mesmo assim pronunciar o quão improvável seria este
encontro e o quanto ele nos absorveria regurgitando os resultado de nossa
trituração a outras especialidades inúteis, mas este dia não veio, ele não
virá, ou quando vier não caberá a nós mais uma vez captar ou mesmo entender, ou
entenderemos cada vez mais, demais, assim como se mata um passarinho
estrangulado, ou nada disso e apenas o cansaço da sensação das etapas a serem
cumpridas para de fato não consumar o ato.
2.
Entro e saio de consultórios, agora vou
até mais um. A vida é bonita no caminho dos consultórios, vou com os bolsos
cheios de dinheiro para Herr Doktor, sempre esperando pelo dia do encontro de
uma separação escavada em mistérios, ungida pelo esgotamento de não ser
alcançável mesmo sendo perseguida para dentro da proximidade constante deste
encontro, que espero automaticamente quando pego o chapéu de alguém e visto e
penso que não é meu chapéu, que não uso chapéus, apenas em algumas...
preparaste, esperaste, dormiste o encontro com tua mão de misérias pródigas,
como passaste a esperar e temer as manhãs, saindo e entrando de pequenas e
agradáveis salas de consulta, em silêncio auscultando a vida de outras
complicações e consultando-se de que nada poderia ser compreendido, com
agradáveis e caríssimos homens do seu tempo, onde as coisas têm nome e os
remédios impõem respeito, tabu, repetição, a síndrome do primeiro homem, espero
algum movimento do nada que sempre se repete do contrário não seria nada para
dentro, a explosão de uma bomba – agora sabes, não és o cento do teu próprio
universo, agora esperas, esperas o além do outro sentido, a explosão do corpo
que se move sem perdão pelas ruas, esperas além pelas ruas, esperas alguém
neste encontro, esperas a ti, és imbecil, com o chapéu na mão. Enquanto não
ages o centro se desloca novamente e já são necessárias novas armas e já não as
tinhas as primeiras e as antecessoras destas. Adiante.
3.
Agora é preciso parar completamente por
um instante ou dois e voltar. Eu havia sonhado. Livros na lixeira, urina, eu
correndo nu para secar o livro, o único que se havia molhado, com o vento, a
lixeira ao lado da privada, a privada aberta. Eu estava diante de uma escadaria
com corrimões dourados, não havia o que fazer então apareceu este senhor que
parecia um daqueles mágicos de festas infantis, descalço, com a camisa como a
de um pintor impressionista levemente embriagado, e tive a impressão de que ele
estava mesmo alto, então me sentei e disse a ele meu sonho em que eu acordava
apertado e corria até o banheiro, onde urinava uma pilha de livros dentro de
uma lixeira branca. Apenas um livro se molhava. Eu salvava este livro correndo
nu com suas páginas espalhadas tentando alcançar o vento da noite pela janela.
Eu acordo antes de salva-lo. Mas não é possível ainda começar. É preciso ainda
de uma frase verdadeira, que venha de um lugar inaugural. Isso já não teremos,
compreende? O professor move a cabeça para cima e para baixo com um vagar
misterioso, denotando que está dando ao caso uma atenção cuidadosa. Enquanto
estou na sua frente e observo o ambiente como uma casa de ópio em little toquio
qualquer coisa, tenho subitamente uma estranha impressão. Ali estou eu,
tentando com formas suaves e assertivas de espremer os olhos e concordar com os
olhos espremidos, com a nítida vontade de conquistar o terapeuta para poder,
logo em seguida, estar na condição de abrir mão dele, enquanto ele se comporta
como se eu fosse alguém muito famoso que apreciasse o fato de ele me tratar
como a qualquer um. Com a diferença de que eu era qualquer um portando-me como
alguém muito famoso que aprecia quando lhe tratam de forma modesta e
desinibida, discreta e amistosa. Não me ofereceu um chá, o que admiti como leve
falha, mas me resignei quando, no meio de uma conversa que já se tornava
desinteressante, mencionei onde mesmo deixei meu chapéu? Ergo-me da poltrona, e
ele aponta um porta-chapéus bem ao lado da porta. Foi nesse momento que comecei
a me aterrorizar com a ideia do encontro. Já não era mais eu saindo da sala de
operações psíquicas, dirigindo-me ao limiar da porta. Era eu com um chapéu sem
abas, um chapéu-coco sem abas e velho, que ajeitei na cabeça diante do espelho quando deixei o consultório do Doutor Krauss, era esse o nome dele, e desci as
escadarias com corrimões dourados em busca do encontro anunciado por aquele
repentino abandono de si. Mas não é nada disso. Ainda é preciso a frase sólida
da verdade que não vem nunca mas está sempre por perto. O tabu. A repetição à
distância. Desço correndo a escadaria. Há muito que fazer e nenhuma prova de que será possível. Seguir adiante, apenas isso. Mas é preciso também se iludir de
que não é isso, por exemplo, fazendo alguma coisa bem ou fazendo alguém nascer
para passar por problema semelhante. É o fim da escadaria, a manhã livre está
de sobreaviso, finalmente a escravidão consentida. Ainda não seria capaz de
trabalhar. Preciso encontra-lo novamente e dizer fique aqui com meu chapéu, até
aqui era meu, era de outra pessoa, mas agora é seu.