23.2.15

"na cama"


na cama, me dizes não há
coragem onde não existe
sangue, penso no que dizes
na cama, no sangue, onde,
mas não sei juntar palavras,
sinto que já não as palavras
formam meus pensamentos,
tento observar por um tempo
ao lado, no sangue, na cama,
o feixe da luz consanguínea
que justifica tua frase, mas
o sangue, talvez, menos denso,
de pressão afrouxada, na cama,
me abandonou em devaneios
curtos, sem palavras e com todo
o medo que as palavras encobrem
trazendo ao saco do corpo a dança
de acordes mudos diante dos gritos,
enquanto gargarejam as gotículas
da coragem, em pequenos arrotos
de guerra, da luta travada, do sino
no estômago do esquecimento.

21.2.15

“hoje para ti os versos serão livres”

para rita isadora pessoa



és minha primeira
                              pessoa do plural
e quatro são
                    os teus elementos.

do fogo fizeste minha loucura,
da terra meus pés que tremem,
do ar nossos rasantes estelares.
da água escorremos as pedras.

és minha primeira
                              pessoa do plural
e tudo em ti
                     sou agora sem saber.
tudo que fui
                     e que serei
                                        e não sei.

percebes, pessoa, a miscelânea
de sensações e as abundantes
expectativas de que finalmente
                                                  irrompa
com a benesse dos deuses,
tu,
                    que és minha pessoa plural,
tu,
                  que cavas a mística da suave
melancolia de não fazer
                 doutro modo
                        a não ser
romper em salto,
olhos fechados
                      devido ao medo
de que diante
                      de tão fosca
cortina haja o pedaço
que não temos e seduz
nossos ossos ao que beira
                        a implosão
           do que carregamos
por
um
fio,
fio
do
qual
so
mos
ara
nhas
e portanto
por dentro
do nosso animal
que rosna
nas esferas
da catástrofe
e legitima a nossa raiva
          e d á v o z a.

mas não fique triste hoje, pessoa,
prometa, e lembre que teus olhos
guardam prelúdios ancestrais
                                                       que tremulas,
pessoa dos plurais, primeira tu és,
mistério
             que escorre
pelas paredes.
                 sei a
          temperatura
        da tua caverna
e falarei em teu nome
                                     ao menos hoje
e direi é nosso dia,
                              pessoinha,
                               guaxinim
                            aconchegado
                         diante do sonho,
                      caverna do mistério
                          em meus ossos.

és minha primeira
                              pessoa do plural,

hoje os versos serão livres para ti.

estamos ainda enxugando as botas,
clamaremos juntos, pessoa, ao sol,
facas perdem a lâmina diante de ti,
a poeira
            do quarto
                            varrido
dança
um prelúdio
                  interestelar
                                   a ti,
aos teus beijos de cometa,
à tua ternura ensandecida,
aos excessos de tão ferido,
lindo de tão ferido coração.
o tempo é nada quero de ti
o sangue
o cuspe
a foice
a força
a chave
em suma
a espaçonave
                       com que me abduziste,
quintessência                       do êxodo
                        dos pássaros.

   cairei em teus braços
            renascido em ti,
                        quadro renascentista.
primeira
              pessoa.

                          mitologia do plural.

19.2.15

"antes que seja"


você que tem folhas mortas dentro dos olhos,
você que eu não sei jamais, e que sou jamais.
você que ensinou o vazio e a cruz enaltecida.
você fala de coisas em um passado repentino.
você fala pouco, muito pouco, mas teus olhos
mostram folhas e as folhas mostram árvores.
sempre tive medo, velho, velho medo sempre.
aprendi talvez o medo na ternura do silêncio
pescado junto às sobras do que não pudemos
fazer por cada um de nós na hora precisada.
a hora conjunta em que se ergue a paz falsa.
levo tuas folhas em algum caixão de amor.
o amor de onde vim e para onde não voltei.
hoje procuro o amor e encontro o que racha.
o amor é uma coisa e a palavra amor é outra.
tenho perguntas e nenhuma letra que forme
a vulgaridade das perguntas que tenho sem
que impere fazê-las quando rondam ruínas
por nossos corpos que procuram a palavra
e duvidam tê-la achado e dizem sem parar.
o silêncio do ódio é nossa língua materna.
cantamos raivosos a língua tímida do veto.
amamos em silêncio o que não tentamos.
os barulhos dessa vida já não te assustam?
tenho medo dos remédios porque a cura
não tem espaço onde seria doce a perda.
nossa perda compartilhada não vocifera
os decibéis de erros em que nos víamos
tão parecidos quanto desfiles de samba
mas sem a consciência de toda a máfia
que cria as festas, cria crias, cria choro.
a bateria não recua em nosso carnaval.
quero rever a beleza de todo esse ódio.
quero nomear tua estirpe meu presídio.
quero sofrer devagar, como um velho.
ser o pássaro que nos teus olhos meus
bica as flores gordas de nosso musgo.
vê, pai, que vejo as coisas em blocos,
de torres roídas de onde corpos pulam,
mas não despejo frases em linha reta.
melhor, despejo, mas veja como ficam
fora da nossa babel de coisas a dizer.

16.2.15

"este que não"


este que não se apresenta
e move meus músculos,
revolve meus musgos
e produz falsos dramas,
está aqui mas não chamo
de nomes, sei que está aqui
porque não se apresenta,
um ditador sorridente
de econômicas palavras,
é através de sua presença
que posso ver o engano,
é através de sua presença
que é dito não estou aqui,
é através de sua presença
que os olhos não percorrem
a corrosão da presença
do que força em disfarces,
do que monta por ausência
a força de uma potência
existente no corpo aéreo,
um pai de olhos fechados
para o que se aflige
em rasa progenitura,
perfume reserva que não toca
esta pele, este que está aqui,
que se instalou aqui por falta
de criatividade, que disse
aqui parece um bom espaço
vazio e assim fundou meu
conteúdo, assim fechou
minha cela com os ritos
do que não tem nome ativo,
assim faz viver o que morre
do que não lhe diz respeito,
apesar de ser seu o que não
se apresenta em mecanismo
de mim que é doutro e que não
se apresenta, mas cujo nome
falso sobrevoa as palavras
tão acostumadas a disfarces
públicos e translitera chagas
formadoras do escorredouro
de algum acúmulo impróprio,
tão próprio ao que se espanta
e que dá corda sem saber
ao inaugural sujeito que nunca
mais descansou os olhos
e cria pequenos acenos através
do meu ventríloquo profissional.

"não é revólver"


quero o amor como um revolver de beijos,
te escrever todos os dias um poema cheiroso
ou mesmo com cheiro de fronha precisada,
é o único assassinato que podemos cometer:
amar o desconhecido ao lado de um outro
que nos acompanha enquanto preparamos
uma oportunidade para que nossa invenção
sobreviva no ar das pessoas por um tempo
para depois mudar-se em outra imprecisão
a que chamamos curso dos dias suspensos,
revolver engatilhado na ponta das ideias,
nostalgia da velha procissão dos esgotos,
rusgas como troféus de nossa força pálida,
ainda assim mãos que se unem no inferno,
ainda assim um amor maior que os tempos,
mínimo de não ser parte dos bons conformes,
cadavérico às vezes em flores de cheiro doce,
salvo por pedágios de partículas planetárias,
lustrado pela morte comum trazida no bolso,
bala que revolve a carne de um grito ousado
porque nossa chance é a partir dessa morte.
é preciso a cada dia preparar uma invenção,
palavras não são muito, perto do que resta
para as armas únicas capazes de tirar e dar.

15.2.15

"carnaval"


passará como tudo passa
pela pressa do ritual
que escorrega por dentro
da multidão ansiosa
que faz da cena programa
anual de sonho leve.
dormirás enquanto alguns
são felizes e não sabem
apenas observam
e são felizes sem saber
enquanto outros são felizes
e sabem perfeitamente
o que os torna um pouco
mais melancólicos
e pensarás mais uma vez
nos outros nos muitos outros
e nas vagas possibilidades
de muitos outros enquanto
gastas o lençol da tua paz
e tuas pastilhas estomacais
e tua rangente paciência
para rezas de reservatório.
lapidas os excessos
minerais do amor
e cuidas de estar vestido
com roupas de gala
ainda que furadas
e remendadas
porque é chegado o tempo
da alma sem costura
nos silêncios entrecortados
de barulho com que se faz
a música que toca
e une os líquidos
da nova nascente
e morre em poucos dias
e é luta que se trava
com o tempo que atropela
e interrompe as cartas
cheias de amizade e perdão.
tens agora nas mãos
o teu nanquim do socorro
os cílios postiços do milagre
e a pequena violência
de um despejo represado.

"canções"


preciso outra vez que entrem nuas
pelas dobras dos meus intestinos,
pelas paredes da verdade impura,
estejam nuas quando o assassino
mostrar a faca do discurso aberto
que inunda veias de sangue verde.
quero teu corpo muito mais perto
e, se preciso for, entre parêntesis.
vos quero nuas e até paupérrimas,
de nudez pobre, estéreis de rima
na ventania dos meus cem olhos
costurados como em holocausto.
tal qual sol de meio-dia em zênite,
lendas reclamam o trono deposto,
o novo rei é só parte de um ciclo.
voltem nuas e afundem-se sobre
meu peito – rompam meus olhos
com o arranha-céu do meu gasto.
contornar a tripagem do descarte,
ser sem culpa o segredo salgado
e arder nas gengivas do desgelo.

3.2.15

"baby bat"


morcegos não dormem à noite,
mas então o que eles fariam
numa noite como esta noite?

dormir já não será possível,
a noite é a nossa epidemia,
a febre alta, o clamor da azia,
a espera fria pela ideia alada.

mas de dia não batem as asas,
de noite há tão pouca comida.
os morcegos, minha querida,
são os olhos de pensamento,
fermento das horas rasgadas
nas asas chocadas ao muro.

o morcego é um bicho surdo
cujos fantasmas são varetas
que acarinham a sua queda,
que estimulam a sua besta.

mas morcegos não dormem,
são esquivos escravos da noite.

e também não são tão feios,
mas coragem é indispensável
para olhar morcegos nos olhos.

e que prazer não terá o valente
quando beleza tão pura revelar
o exaustivo trabalho do oblívio,
a faca sem fio da poesia latente.
nos olhos de um morcego vivo
feiuras falarão a voz do carinho.
dizem que há morcegos no mar.


2.2.15

"netuno"


sonho com ondas enormes
e uma multidão de habilidosos
nadadores tomados pelo medo
e então acordo e penso em ti
e choro um pouco porque sei:
tu és minha pessoa preferida,
revelas em pequenas páginas
que meu nome carrega o mar.

acordo e parece que choveu
depois de tantos dias infernais
mas eu não pude ver as gotas
por dentro da cápsula noturna,
vi só o mar as ondas enormes.

levanto-me para ser engolido
pelas coisas que ao meu redor
sem a outra metade das coisas
estão furiosas e me encaram
com sobrancelhas de atraso
e vejo a ereção dos objetos
como um motim pelo nada
que resta quando não damos
sorrindo o que poderá faltar.

não é uma boa manhã, amor,
mas choveu parece aqui tudo
está úmido e as coisas aqui
gemem pelo que completa
a coragem dos olhos fechados
mas houve alguma chuva
pequenina talvez como palavras
num minúsculo caderno
capazes de fazer chover
e me fazer chorar um pouco
diante dos legumes pálidos
que cozinharei no almoço.

a comida está pronta e eu
devo ainda escoar um pouco.
tu és minha pessoa preferida,
a que não vejo enquanto nado.

estou também no maremoto
com outros bravos nadadores
desamparados vivos de terror.

e do outro lado dessas ondas
me espera à distância o amor,
a frágil promessa de netuno
às nadadeiras do naufrágio.

"diante de tais situações"


deixar os pensamentos deformados fluírem sem ideia
à margem das crateras de um mar crosta vermelha
receber a verdade que sem força queima os ossos
e inscreve nas paredes da tentativa a nossa intenção
a frágil intenção de acalmar os olhos arregalados
e despertar fora da caverna tão mesquinha aceleração
rever os anfíbios que povoam a sala dos clamores
cumprimentar as vozes que vêm de outras dimensões
se misturar ao sangue de anestesias compartilhadas
gavetas abertas de sorrisos que tentam se encontrar
sustentar o cerco de mosquitos que vivem e morrem
completar com holofote a espessa travessia dos olhos
ver outra vez o silêncio enterrado no que se reafirma.

“cigana do meu deserto”


estou sempre à procura
de um poema à tua altura
um poema que travasse
os problemas, os embates
um poema que sozinho
nos abrisse os caminhos
e que fosse para a alma
colar de beleza e calma
vida passa, ele não chega
o poema da vida mesma
que mantivesse por perto
a cigana do meu deserto
se não achar não vou cair
daqui já não passo mais
a procurar tão só para ti
o poema que você me faz.


"hiroshima coração"




não há maior amor
exceto a guerra.

a vida nas cavernas
é úmida, você está
me matando, você
me faz bem.

 o salitre
todos nós chupamos
diariamente
durante a chuva ácida
no muro.

a loucura
é uma espécie de
inteligência,
algo que só
se pode imaginar
e que de repente
VEMOS
mas quando acaba
não sabemos
mais o que é.

é preciso evitar
pensar sobre as
dificuldades
que o mundo
nos apresenta
algumas vezes.

é preciso às vezes
cair como bomba,
espatifar o corpo
em lados inimigos,
sobrevoar a causa
de tamanho pânico.

somos os amantes
do inimigo da pátria
sem unhas, sem dedos,
três olhos, sem bocas,
cavidades cranianas
expostas ao tiroteio.

nossa história secreta
dirá que não morremos
completamente ainda.

jamais esqueceremos
as cavernas do amor.
jamais esqueceremos
o gosto do impossível.

sinos de sangue badalam
nas migalhas
da nossa deformação.

o amor é inimigo da pátria.
e desde então vivemos
em cavernas.