30.4.07

"Baixo-meretrício"

Lembro que era uma mulher em fase de amamentação. E ela me perguntou quando eu disse espantado: “mas é doce”? “Você gosta, meu filhinho?” Olhei para os seus dedos, pintados de rosa, de unhas duras como cascos. Eram dedos incríveis, dedos grossos, visíveis, eram dedos explícitos. Pensei que deveria ser modelo de mãos. E não eram dedos bonitos, como ela não era bonita. Todos os homens deveriam, já velhos, tomar um pouco do leite materno, direto da fonte. Isso a tornava, não exatamente especial, mas intocável. E é claro que a rodela em volta do bico do seu peito lembrava o sentido perdido que se transformou em elo, de quando ainda tínhamos tudo concentrado e sem lógica. Havia brotoejas nas suas nádegas e ela já não era mais nova. Havia uma borboleta na altura do cóccix, um pouco borrada, talvez nem tão borboleta mais, e havia uma cicatriz escura na altura do púbis, que revelava um dom para a vida. Mas também era um convite à aniquilação, um lugar onde se pula antes de se ver. E de repente tudo não era mais do mesmo jeito. Havia gosto de chumbo entre seus lábios, finos e grossos. Havia um peso estático em seus olhos, algo que não muda com o tempo, e se agrava. Havia ali uma passagem aberta para a tristeza, um grito profundo anulado por um sorriso que demonstrava sabedoria e cansaço. Era mãe, estou convicto.

"por trás da porta"

você vê essa porta aberta na sua frente?
não entre!

e essa janela de carne que venta aberta?
não é a certa.

olhe bem as estradas cheias de carros,
estão vazias.

ouça o tango nas casas de meninas,
surdo e ereto.

observe todos os gestos mesurados,
sangram desejo.

olhe nos meus olhos e verá um segredo,
inquebrantável.

ele reflete o vácuo do que não foi vivido,
por ter sido feito.

"Distantes da longa passagem"

A alma branca avança sobre o papel. O corpo e o papel estão seguros mas, em corpo delito, debatem-se. O corpo e o papel estão pálidos, estão constrangidos. O corpo rói as unhas e constrói monumentos, o papel ameaça voar. A alma, mais ampla que a mesura, invade o papel como uma drag queen. A alma está nua, enlameada, ostenta um sexo híbrido. Rajadas de vento e trovão torturam as árvores. A alma passa como um comício de silêncio, derrubando eras e reinados. A alma não é nem do corpo nem do papel, assim como o papel não é do corpo, e o corpo não é da alma. A alma vem vindo e passa, coração espacial, assim como fazem o corpo e o papel, mas o movimento da alma é a substância do corpo e do papel – e não o contrário. A alma vem e passa banhada em sangue: sua peculiaridade secular de espinhos. A alma está nua, mas não está envergonhada. O corpo e o papel estão protegidos, mas têm medo. A alma branca invade o papel como um lago de nanquim. A alma branca sem asas, as brasas da alma branca intocável e finita, e o papel cúmplice do corpo, ambos protegidos, censurados, semi-acordados, ambos trêmulos e distantes da longa passagem. O corpo desliga o telefone, sentido-se culpado. O corpo assina promissórias, enquanto a liberdade obscena da alma deixa o papel tão tímido e humilde, que voa pela janela.

25.4.07

"sabedoria herdada"

os adultos dizem às suas crianças:
“vocês vão amadurecer, crianças.
vão perder mais do que precisam
para ganhar o que não é necessário.
vão crescer e perder a esperança”.

então as crianças crescem estranhas,
a amputação parece mesmo inevitável.
crescem muitas vezes a duras penas,
e reparam que realmente estão vazias:
elas perderam a esperança de fato.


então se tornam adultas, e os velhos
dizem aos adultos: “ora, seja homem!
um homem precisa ter seus princípios”.
e as uma vez crianças (eco fanático)
sopram frágeis sinônimos de grandeza.

mas o novo adulto, já desesperançado,
não sabe se crê na criança ou no capeta.
e ao seguir os desejos dos mais velhos,
depois que passam suas nuvens de sonho,
vê que sua vida foi só o que disseram,
e para contar não havia sobrado ninguém.

22.4.07

"Sejamos Todos Medíocres"

As pessoas deveriam ser mais medíocres. Demos um nó na cauda da cobra naja. As pessoas, no desespero de serem tratadas como entidades, num deserto de concepções irrealizáveis, tornam-se cruéis e maliciosas, passam a vida em disputas comezinhas, jogando alto com cartas marcadas. Apenas qualificando a mediocridade como desejo pelo comum viável, poderemos abandonar nossos umbigos preocupados com a eternidade e olhar para o nada que acena da outra esquina, o nada gigantesco que o delírio da nossa auto-deificação, usando deus como bode expiatório, programou em nossas vidas com uma contagem mecânica e destoante dos pedaços de tempo. E o que antigamente seria considerado uma opção conservadora – sermos medíocres com todas as nossas forças – hoje é a nossa única opção revolucionária, pois os mortos se apossaram dos vivos e os olhos já não sabem o que codificam, e quando os deuses se tornaram semanais, apenas em horário nobre, na loucura da atenção retribuída nossa única saída para evitar o extermínio da alma é ser, acima de tudo, o mais medíocre possível ser humano da face da Terra. E até os cientistas disseram que os chimpanzés tiveram uma seleção genética mais positiva que nós. Estamos então atrás do melhor não arriscar. Nada mais perigoso que uma pessoa medíocre com ambições grandiosas. Vejam Hitler, vejam Nero, vejam Antonio Salieri, vejam George Bush, pai, filho, espírito santo, cale nossa boca antes que seja tarde – ou tanto faz – e vejam a luta pela paz. Depois me digam.

"zimmerman"

as visões de Joana
acabaram de ser trocadas
por um negro amor.

20.4.07

"cigana"

ela me perguntou: seu nome é Ben Hur?
eu disse não, mas por que Ben Hur?
todo mundo no Sul se chama Ben Hur,
ela disse, basta ver a lista telefônica.
eu não sabia disso, eu disse, então
ela começou a ler as linhas da minha mão.

depois de um tempo, testa franzida,
ela disse muito enigmática:
nuvens, esferas, farpas, gritos de ninguém...

o que é isso? eu disse, depois me arrependi.
ela me olhou como se eu tivesse atrapalhado:
você tem um buraco na linha da vida, ela disse.
isso quer dizer que eu vou morrer logo? eu disse.
você vai quase morrer, ela falou (e tinha herpes)
mas vai morrer muito velho, e só teve um amor
e terá filhos mas não poderá ser pai deles
porque quando você estiver perto de entender
vai lembrar daquilo que nunca te disseram,
e este será seu maior pecado e a sua morte,
ela disse, beijou minha testa, pegou a bolsa
e foi embora.

18.4.07

"fora daqui"

pais, urge que expulsem
suas crianças de casa.

é uma questão de amor e morte.

escorracem seus sonhos monossilábicos,
deixem-nas correr do próprio inverno,
permitam que a morte as veja de perto
dia e noite com carrosséis sem música.

só não as mate pelo amor de menos,
que não foi possível em tempo hábil.

elas são fortes, suportarão, intactas
em sua fonte firme de riqueza quebradiça,
banhadas da própria dor no doce parto.

a primeira maldade fez do amor ato impuro,
a segunda egoísmo e a terceira eternidade.

e todas as crianças sobrepujadas são santas,
e todas as pudicas são escravos paralíticos.

deixem-nas colher seus olhos híbridos
no beco escuro aonde lobos espreitam.

deixem-nas morrer por toda a vida –
não minha ou sua – mas por inteiro,
pois só há vida onde existe o medo.

17.4.07

"cesariana"

são perturbações de veludo,
antes de cair o balde d’água
com a força que pulsa e engole.

são antigos rituais de ternura,
boca com boca ou quem sabe apenas
carnes expostas na flor aberta.

são contrastes e contradições,
feridas de plástico, gritos anis,
a decisão de perder o infinito.

foram complicações de parto
quando meu pai tirava fotos

e corvos esperavam na janela
pelos restos do recém-parido.

"Adeus, poesia" (Jorge de Lima)

Senhor Jesus, o século está podre.
Onde é que vou buscar poesia?
Devo despir-me de todos os mantos,
os belos mantos que o mundo me deu.
Devo despir o manto mais puro.
Senhor Jesus, o século está doente.
O século está rico, o século está gordo.
Devo despir-me do que é belo,
devo despir-me da poesia,
devo despir-me do manto mais puro
que o tempo me deu, que a vida me dá.
Quero leveza no vosso caminho.
Até o que é belo me pesa nos ombros,
até a poesia acima do mundo,
acima do tempo, acima da vida,
me esmaga na terra, me prende nas coisas.
Eu quero uma voz mais forte que o poema,
mais forte que o inferno, mais dura do que a morte:
eu quero uma força mais perto de Vós.
Eu quero despir-me da voz e dos olhos,
dos outros sentidos, das outras prisões,
não posso Senhor: o tempo está doente.
Os gritos da terra, dos homens sofrendo,
me prendem, me puxam - me dai Vossa mão.

16.4.07

"nosso eterno deserto vermelho"


talvez os mesmos erros que repartimos
sejam uma forma totalmente instintiva
de, apesar de reconhecer o insucesso,
mantermos o corpo cansado, mas em busca
do que talvez tenha sido perdido longe,
do que raramente temos alguma garantia.

porque se deixarmos de procurar o espaço
herdado da natureza selvagem, abandonado,
cuspido no espaço oco entre seres aflitos,
se dinamitarem nosso planeta desconhecido,
terão apagado nossa estrada não percorrida
e estaremos enfim abraçados, sem esperança.

não posso te abandonar mais, eu que nem sei
o que agora nos trouxe até aqui, exaustos,
e não sei quem você é e onde está - ou se é,
e digo todo dia a mim mesmo: “hoje não achei”
para poder ainda assim mentir naturalmente
e imaginar dias serenos em que tudo estava,
por mais que não fôssemos nada para ninguém.

15.4.07

"homem moderno"

pegue uma farpa de remorso,
junte a um fiapo de hipocrisia
e temos um homem moderno.

sou, portanto, um homem moderno.
e para os homens modernos,
um dia alguém vai dizer:
você diz que ama mas no fundo,
está desesperado justamente
porque precisa de amor mais que tudo
mas não consegue amar ninguém.

você precisa desesperadamente
do que não reconhece mais
e por isso disse que me amava,
o que era a mais pura verdade.

13.4.07

"o merencório fim da inocência"

Cartola como um lavador de carros
orgulhoso da própria pobreza enquanto
um novo mundo construía sua tumba.

Van Gogh e sua relação imediata
com deus enquanto os piedosos
o tratavam como o idiota da aldeia.

então fica reto e percebe a gota que escorre
da manga da tua camisa mais nova.
percebe o gosto que vem do último gole
quando um segundo é muito
e nosso único tempo hábil – hábil? –
diria espantado aquele da cor do chumbo
que se instala nos becos do cérebro
ou nas rodas que sobram de solidão e paz,
condenadas a festejar segredos invisíveis.

você enfim envelheceu, inocência...

você foi jogada num canto, sob luz fria,
descascaram a sua pele como fruta seca,
vedaram seus olhos, asfixiaram seu luto,
apropriaram-se do seu corpo pela culpa
e as tuas bodas só completam nosso crime.

"assalto à mão armada"

não se mova!
fique quieto, prenda a respiração por uns instantes
não há perigo de vida, mesmo assim não se mova jamais
ouça bem, escute o sopro antigo nos teus ouvidos secos
veja que vem de longe, que viemos todos de muito longe
e não sabemos o quanto estamos longe ao nos abraçarmos
mas, já disse, fique quieto, não dê ouvidos, mudo agora!
estamos em paz agora, veja bem o erro que cometeu...
sim, sigo teus passos, mas não, nunca estivemos juntos
portanto não faça nenhum barulho, abaixe os braços!
agora deita no chão e escuta o grito dos mortos , desafinado
esqueça o que puder enxergar, agarre-se àquilo que adoece
mas não se mova jamais.

11.4.07

"Cortázar"

estou há dias procurando
um livro de Julio Cortázar.

sei que o perdi, sei bem onde,
(e, afinal, nem bem quero ler)
mas isso tornou-se uma obsessão:
a procura do que se sabe onde,
já que, perto, estamos ocupados.

um livro que tinha um conto
sobre a atriz americana Lana Turner,
de quem um amigo um dia me falou
e eu nem mesmo me impressionei
e nem mesmo prestei muita atenção
e, afinal, nunca vi Lana Turner,
mas de alguma forma estranha
sabia exatamente quem era ela.

e esta nova rotina, uns dias atrás,
de procurar coisas já encontradas
perdidas de estarem tão próximas,
essa de querer o livro com o conto
sobre a atriz americana Lana Turner,
sem saber quem é afinal Lana Turner,
sem nunca nem ao menos ter ouvido
falar nela, a não ser naquele dia
dentro do ônibus, quando meu amigo
falou e eu nem mesmo prestava atenção,
e acho até que nem era a Lana Turner
no conto que li, de fato era inglesa...

du
as semanas passadas e isso
acabou se tornando, é claro,
mais um conto de J. Cortázar.

8.4.07

"Coltrane"

sopra, áfrica
a trombeta do cataclismo!
nos mata, nós já mortos,
com teu hálito milenar.

nós já mortos que trocamos
vidas amargas por combustível.

sopra, áfrica
o morno do que ficou podre!
varre meu peito
com tua tragédia sincopada!

depois acalma, embala a terra
dos meus ouvidos suplicantes
com teu gingado de anjo aflito
que nos trouxe, nós já mortos,
a treva, nossa tumba violada.

"Antonioni"

essas árvores do Flamengo
sejam frágeis ou tão firmes
parecem tanto com prédios
ou com mãos que não tocam
cada ferida que se consome
cada véu sobre cada dúvida
cada cílio sobre cada desejo
cada mão amiga esfacelada:
escuridão nos portos do além.

a negação do rito ameaçado
em cada pedaço de tentativa
em cada falácia chá-das-cinco
quando ninguém mais se entende
e as pessoas sofrem e seguem
descoloridas, mas ainda falam
com o gosto da vida embotado
e calmantes debaixo da língua.

eu passo então por debaixo
dessas árvores do Flamengo
tão como prédios abandonados
tão comuns quanto pontas de dedo
e repentinamente paro, e penso:
o artista mais moderno é ainda
Michelangelo Antonioni,
com suas polaróides de nós.

5.4.07

"it happens that way"

i could say anything
and i can’t say much.

the thing i knew was
i knew very little of
that life everyone talked
about and to sum things up
- of course, in my regard -
i read Charles Bukowski
(when the rest hated him,
even trying to be like him)
after trying to lift Pound -
and even Mr. Shakespeare
with total foul perspective.

and i was this young believer
pretending to look very old
with not much to believe in
and so much to do, or else go,
doing so little, despite what
i kept telling myself in front
of this crazy broken mirror:
that we’re all what we forgot.


3.4.07

"parapeito"

eles vieram de longe, os sensíveis
para enfeitar coroas de espinhos.
vieram para dizer como o mundo
é complicado e que precisamos
nos envolver com o que há nele.

eles vieram tristes, os sensíveis
para dizer como amar a loucura.
vieram deliberadamente forçados
a espremer uma laranja sem suco
e oferecer ao coração dos pobres.

por que não até mim, os sensíveis?
quando estendi a eles meus braços
como num filme de beijos suecos...

que devemos abraçar, eles disseram.
que devemos tomar tudo como nosso,
eles disseram e pularam, os sensíveis.

2.4.07

"a fila de darwin"

quando você vê uma garça andando,
quando vê um gato se espreguiçar,
quando você vê os olhos puros do cão
e os micos sobre fios de alta tensão,
você pára de repente e reflete:
“o problema só está no ser humano”,
e então você passa mais de uma semana
sem se olhar no espelho, ainda pensando
no peixe que foi estraçalhado pela garça,
no filhote doente rejeitado pela mãe-gata
no cão que come as bolas do seu dono morto
e nos micos, capazes de imitar o homem...
mas isso – quando você imagina – feito
pela garça, gato, mico, ou um cachorro,
não parece tão cruel ou tão monstruoso
quanto o bom-dia que damos uns aos outros
quando entramos e saímos dos elevadores.

"A Pact" (Ezra Pound)


I make a pact with you, Walt Whitman -
I have detested you long enough.
I come to you as a grown child
Who has had a pig-headed father;
I am old enough now to make friends.
It was you that broke the new wood,
Now is a time for carving.
We have one sap and one root -
Let there be commerce between us.


*** tradução ***


"Um Pacto"

Eu faço um pacto com você, Walt Whitman -
Eu detestei você tempo o bastante.
Eu venho a você como um adulto
Que teve um pai com cabeça de porco;
Sou velho o bastante agora para ser amigo.
Foi você quem partiu a nova madeira,
Agora é tempo de esculpi-la.
Nós temos uma pá e uma raiz -
Deixe que haja comércio entre nós.

"Posto 9"

O resto deve ser reduzido pouco a pouco, leio no final do meu horóscopo do dia, e a mulher comigo diz que “são todos embaralhados e sorteados pelos piores estagiários, os horóscopos do dia”, e de fato olho para ela e penso como é estranha a expressão “a mulher comigo”, enquanto atrás de mim toca um telefone, tocam vários telefones, e ouço palavras numa língua que não conheço, parecem altas as palavras, mas são muitas e, desconexas, todas começam como terminam, mas aparentemente só a mim incomodam, pelo que me viro para trás e vejo um sujeito atlético, de uns 50 anos, mas que fala como se tivesse 15, discutindo em termos baixíssimos com outro sujeito de uns 50 anos, mas que aparenta 70, os dois discutem e fumam cigarros de maconha, que parecem surgir da areia como esfinges não-poéticas, tais quais as mulheres desesperadas, que sorriem e lêem Rosamunde Pilcher, ou como o negro pobre retirante nordestino, que há milhares de anos, talvez mais, nos oferece algo para beber - e os gritos se atrasam para mais uma revolução, enquanto leitores de Zuenir Ventura e Deleuze aplaudem o pôr-do-sol.