27.12.05

"O dia em que matei a lua"

Num dia cinza, fim de tarde, vi uma mulher na rua: pele de cabra empalhada, juba arrasada de medusa, quanto às vestes, semi-nua, olhos de mil coelhos sentados na face obscura da lua. Marcas vermelhas na pele marcada por ausências inoportunas, triste esquecido presente passado, futuro perdido na falta de tato para uma entrega compreensiva, porque a compreensão exige sangue, exige vida, exige mortes pequenas mal-vividas. Mas o vento do tempo desdentou o que um dia foi chance.

Com quanta mágoa se compõe um trago? Mais duas cachaças pernambucanas, ela pede, Engenho do Meio, vômito branco, glândulas na base do pescoço, hipertireoidismo latente, as costas ardem, feridas no céu da boca. Me pega pelo braço, piscando assopra: “sou viciada, preciso de uns tranqüilizantes, você me arruma o dinheiro?”. Dou a ela um real, tudo que tenho para loucura alheia, porque minha vergonha custa caro demais para um mendigo mais gordo do que eu. Ela aceita e me fala do mar da praia do diabo e de quanto andar sem rastro se lhe significa quando ela sempre teve a chance de fazer aquilo que pouco podia transmitir sem virar os olhos por causa da abstinência daquilo que moleques pálidos da minha idade são incapazes de compreender sem um sorriso abobalhado cheio de bico num novo e velho úmido enterrado trago de qualquer coisa que seja aquilo que não é o que você, rapaz razoavelmente educado, é capaz de pensar sem levar a mão à boca numa atitude exageradamente sincera, porque mentirosa, já que toda sinceridade inquestionável esconde uma velha dúvida eterna em meio a pedras e girassóis fosforescentes.

Sei que era gorda e feia, como eu sempre imaginei a mim mesmo, e no fim acabava imaginando os mais bonitos da mesma forma, porque meu mundo era cinza, bonito como as cinzas de uma civilização passageira ao sabor da corrosão da história – meu pai cinza, grisalha figura feita de areia rala e branca, coisa que mais gosto porque gruda na pele –, a areia muda sempre para melhor, em vários formatos de redemoinhos e dunas alexandrinas, com buracos feitos de maré, erosão das trevas, meu pai, sempre ele, minha única incompreensão de mim mesmo. E queria tanto poder orgulhá-lo (só por causa do hífen) que acabei sendo motivo raro de orgulho e escárnio para o diabo, aquele velho vagabundo que sem querer fez carreira no meio da religião católica de olhos fechados para possibilidades caóticas, e não pensem vocês que essas palavras vêm de mim agora, quem fala é a tal gorda da pele de cabra, focinho de mula manca, pedindo perdão antes de errar pela última vez, pelo que eu jamais conseguirei enxergar o tanto do pouco que existe naquilo que não se arranja em dignidade suficientemente para mentir sobre a própria vida que não se tem mais por causa da...

”Barbitúricos, meu bem, sabe o que são barbitúricos?”. Queria dizer que sim, que sei, que sou, que sempre fui, que viajei para Tânger, que chamei de preguiçosos os pobres argelinos do Casbah, só porque carregavam seus cordeiros imaginários, como Burroughs, como Clash. Além disso sou apenas um agente secreto de outro planeta, e o problema é que não sei porque me enviaram, me esqueci da maldita mensagem, disse Old Bull Lee para Sal Paradise, tudo na pele flácida da gorda de gânglios lunáticos, todos aqueles olhos obtusos, uns quantos cinco, girando na forma de uma chance morta num cargueiro onde conheci um velho polonês chamado Gniezno Kossubudzki, açougueiro e mercenário capataz, capaz de ficar completamente bêbado antes de molhar os lábios, só porque nasceu sem ter morrido primeiro, o que é raro e claro que eu já tinha tomado umas, assim como se faz logo antes de se pensar.

Disse à gorda que era contra barbitúricos, mas pagaria a ela um sanduíche de pão com provolone, se fosse longe a fome do nome chamado homem. Ela riu. Uma gorda viciada rindo... Lembrei da minha mãe e chorei sem conseguir rir junto com ela.

Foi tudo muito raro, a começar por mim mesmo, ao escrever essa história, nem tão rica nem tão pobre, nem tão triste nem tão viva, por que afinal negociei um sanduíche de queijo com a morte, e isso não é todo dia.

Fui para casa dormir. Chorei de novo num novo sonho. Jogava damas com minha avó materna, com quem nunca troquei nenhuma idéia. Ela vestia camisola florida e as peças do tabuleiro eram todas de madrepérola. Sangrava velha como uma úlcera. Pus a culpa nos suecos, porque nunca pude compreendê-los, e assim era mais fácil e menos triste, aparentemente. Dois dias de cama. Balanço: semana estranha. Acordei seco e calmo no dia em que tudo deu certo, porque resolvi me errar.

Mês depois, a mesma gorda, dessa vez com trança, camisa de botão fechada no pescoço, saco plástico onde se lia “salve-se que deus te espera do outro lado do fosso”.

Eu estava sóbrio, péssima opção. Ela chegou até mim, eu que tinha acabado de ver um filme sobre a vida e a morte de Vinicius de Moraes, pelo qual quis nascer de novo dentro de uma concha na praia de Itapuã, devasso pela primeira vez. Estava para poucos amigos, quando a gorda chegou outra vez – dada a situação – valendo por três:

- Que deus te abençoe (sinal da cruz, amém)! Vendo umas medalhas da Nossa Senhora da Conceição... Quer colaborar com uma?

- Não sou católico.

- Mas as medalhas são de ouro.

- Sim, mas não sou católico.

- Posso te mostrar as medalhas? Tenho também Santa Rita, Santa Filomena, Santa Francisca Cabrini...

- Dependendo da medalha, eu compro.

Mostrou a medalha. “Tem essa e essa e essa”, disse. Tirou outra do bolso. Todas iguais. Caíram umas tantas no chão. A mulher tremia, prestes a ter uma convulsão.

- Perdão... Mas não me interessam.

- Natal... Compra pra sua mãe.

- Minha mãe morreu.

Me senti mal imediatamente. Não pela mãe morta, pela frase. A gorda perdeu a lua dos olhos do primeiro dia e sem luz eu passei a enxergar enviesado. Me amou sem paixão, pobre gorda viciada em perdão, há muito ninguém lhe olhava nos olhos, talvez porque não os tivesse mais, agora que a lua se apagou com tiro, meu tiro, as medalhas escorrendo pelas mãos, aquele ódio muito bem criado.

Matei a lua porque ela se apaixonou por mim e, como eu, nunca mais ela voltou a nascer. Pelo que me culpo mesmo quando finjo que ponho o ponto final aqui.

21.12.05

"A felicidade anda bêbada de ônibus"

Entrei no ônibus sorrindo e cambaleando, como qualquer sujeito do lado de quem se pode dormir, e fui para o fundo, chacoalhando com os buracos do asfalto. Havia algumas caras mortas e três meninas no fundo.

Assim que sentei me virei para trás: vi o reflexo de uma das meninas, a mais tímida e de cabelo crespo preso, muito nariz, pela janela do ônibus. Um reflexo cansado, ela entendeu o jogo, gostou da brincadeira secreta, olhou de volta pelo vidro da janela. Estava do lado de uma menina que usava uma luva preta com espetos de alumínio e tinha um tridente enfiado na cabeça, então pensei: “que diabos!”, porque afinal sou um sujeitinho distraidamente colonizado que gosta de pensar nos diabos, faltando para mim apenas o chapéu de feltro cor de oliva, um cigarro enrolado manualmente na ponta do bico e uma garrafa de xerez desarrolhada pela metade.

Esfreguei os olhos uma, duas vezes. As três meninas riram. Duas sentadas juntas de um lado. A terceira sozinha do outro, muito séria, cabelo enrolado, franja cai nos olhos e me pega de jeito, corpo duro, vida dura, muito mimo, muito álcool, pouca troca justa. O melhor tipo para uma pessoa séria desempenhar mal. Ela chamava mais a minha atenção do que as outras duas juntas, a do reflexo no vidro e a dos espetos na luva preta. Ela era minha alma flutuando por entre os dentes do seu sorriso falso. Olhava para ela sozinho, do meu banco, cotovelos sobre joelhos, e ela era um motivo para viver. Um motivo para rir. Era pouco e era tudo. Um motivo para...

Ria de mim. Começou a me apontar. E eu pensei: “Quer jogar? Pois muito bem, vamos jogar”. Olhei de volta e ri o riso mais singelo e desapercebido. Ela olhou de volta e fechou a boca. A franja deu meia volta e foi cair na ponta do nariz. Um sopro para cima e a franja alçou vôo. Com ela levou minha ilusão. Eu ri eu ri eu ri. Aquilo. Como era bom. Olhar pra ela e rir. Como era simples. Como era mentira. Um riso tão raro, tão procurado por becos escuros e ruas sem saída e fundos de garrafa e vidas sem saída e mortes sem entrada e náuseas escorridas de noites mal dormidas nos pátios da boa e velha vontade de ser esquecido pelo tempo. Era um riso com tantos pequenos detalhes imensos, que me senti na obrigação de olhar de volta, boca espremida no desejo de ir adiante, dar o passo na beira do cadafalso, pisar firme o chão movediço e levantar os braços, olhar para cima, para o Grande Palhaço, e dizer que dessa vez passa, tudo passa, eu passo.

Ela sorrindo de uma maneira tão pura e indefesa e revoltada com a tristeza que grita tão mais alto do que as cordas e notas das boas rodas de mesa e chá. Mas eu rir de volta para ela era inadmissível como uma descoberta: de modo que se enfureceu. Levantou, o ônibus como uma centrífuga, e começou a gritar: "Pára essa merda! Pára essa merda! Quero descer! Puta merda!".

As amigas intervieram me olhando com a raiva acumulada em anos de falta de compreensão. Eu só conseguia rir e rir, gargalhava, fazia tempo que não. Ela então veio até meu banco, meteu sua cara bem na frente da minha cara, soprou mais uma vez a franja mal cuidada para longe da ponta do nariz e disse: "Amigo, posso saber qual é a graça?". Eu disse: "Você é". As amigas já tinham se levantado. "Deixa ele, é um bêbado!", gritaram. Olhei para minha menina, querendo me convencer de que era minha, já que era sozinha e eu também só tinha minha solidão, passatempo da raiva compadecida, então disse a ela: "Viu, moça... Ouça suas amigas... Sou apenas um bêbado".

Me levantei, porque tinha chegado minha hora, como chega a hora toda hora para todo mundo que tem que ir embora agora sempre. Fui andando, cambaleando, escorregando pelo tédio da noite molhada. Parei na frente da felicidade. Ela estava tão perto, tão acomodada, que me deu vontade de ser feliz junto dela. Ela tinha cheiro e gosto e forma. Era melhor ver do que pensar nela. Ela me estendeu a mão num sorriso que borrava a noite de branco. Dei a mão a ela e disse: "Muito prazer, me chamo Leonardo". As amigas da felicidade, o espelho e o espeto, acharam graça e riram da minha cara. Acho ótimo que ela ainda seja engraçada. A felicidade abriu a boca e ficou assim, sem me engolir. Disse por fim: "Muito prazer, Leonardo, me chamo Graça". "Eu sei... Eu sei...", disse a ela e desci do ônibus.
Olhei pela janela. Ela estava ali, com a cabeça de fora. Tudo rápido demais porque mágico. O mundo ainda tinha vida na sua melhor metade. "Fique com deus", li nos lábios da Graça, da Felicidade. "Você...", eu disse de volta, meu rosto era só uma parte que sumia na escuridão das vontades. Até mais ver, Felicidade.

18.12.05

"Homens e Mulheres"


o homem sabe o que quer
a mulher sabe o que o homem quer
o homem não sabe que ela sabe disso
a mulher se comporta como se não soubesse
o homem quer ter a mulher
a mulher quer ter o poder das marés
e o primeiro engano resulta em compromisso

ela sobe as escadas pé ante pé
o destino na pantufa dos sonhos postiços
ele finge que não sabe o que quer
desespero em dominar o imprevisto

a mulher pára e olha, analisa a um quilômetro
julga friamente em prol de um calor real e seguro
o homem concorda com um sorriso: erro crônico
e não consegue mais pensar quando tudo fica escuro

homens não sabem o que fazer com relação às mulheres
exatamente por isso demonstram muita segurança:
marcam passos
engolem a seco
acenam dos andaimes
assobiam dos carros
acordam bêbados em becos
em suma, dão vexame

porque um homem ainda não sabe o que ao certo dizer a uma mulher
e enquanto ele não souber
a matemática reinará inevitável
os eixos dos nervos continuarão eletro-petrificados
pela mesma febre de passos
que arrasa com os sonhos
que constrói pseudônimos
erro de cálculo = início da equação
vida patife, de altos e baixos, tanta frase e tão pouca compreensão
manter a paz é tão cativante quando ter a beleza sentada no colo
homens continuarão sem entender como andar e amar ao mesmo tempo
mulheres continuarão sabendo disso e não darão mais a você do que os olhos
e a flâmula do amor outra vez vai cuspir teu rosto com seus desejos ao vento

homens continuarão agindo como se elas não soubessem
tateando no vazio das paredes noturnas com flores, álcool, preces
prestes
a cair outra vez no mesmo erro matemático que inicia a equação

uma mulher vai se aproximar de você e vai dizer:
“Tchecov de marido, Maiakovski de amante, Nabokov de cafetão”
e isso você também não vai entender – e por isso vai rir
e ela vai te olhar e não ver nada e vai seguir em diante na busca do eterno perdão:
soberba, malvada, baronesa, lacaia, princesa, ordinária
todas juntas um dia vão tomar tua beleza
você que nunca achou muita
e vão deixar tua cabeça:
uma cabeça num corpo de múmia

e você não vai fazer nada a não ser rir rir rir
depois vai dar chave de casa, as costas, chorar de raiva, dizer te amo
suas costas vão estar de novo congeladas, sua nuca exposta em riste
suas pernas gangrenadas, seu copo vazio, seu nariz que cheira alpiste
ela ajeitando os cabelos de costas: silhueta-artífice do engano
deixando a calça no cabide
perna dobrada sobre a cama
calça meia-calça calcinha - um brinde!
coleção de posteridades a cada bafo com travesseiro, a cada voz sem som que ama
e, na maioria das vezes
apenas uma felicidade triste que
um pobre diabo não sabe se chama queimadura ou chama

15.12.05

"da impossibilidade de escrever sobre a lágrima"

se para mim fosse possível escrever sobre a lágrima
teria que falar de lembranças perdidas na confusão de passos tortos
lembranças pelas quais choro sem molhar o lenço da minha culpa
por aquilo que deveria ter deixado de lado em benefício de novas alturas
pelos charcos de delicadeza enterrados em tumbas lapidadas de esquecimento
pelo sofrimento de cruzar caminhos invisíveis sem entender a razão das coisas
pelo sol por detrás das árvores, quando as folhas balançam, se soltam e caem
e pelas folhas secas verde-amareladas que só choram quando a gente chora
seres tão cúmplices quanto imaginários, tão passionais mas...
...quando morrem e caem sobre o orvalho
deus absurdo, nada tão cruel quanto sacrificar a natureza pelo tempo escoado.

mas a lágrima continua ali, intacta, dentro de uma pequena taça
lágrima a quem digo bom-dia, boa-sorte, durma-bem, mas não passa
lágrima que não sei do que é feita, para onde vai, de onde vem ou como
queria falar sobre ela, escrever uma elegia com sua tinta transparente
mas para isso seria preciso métrica, e quando mede uma lágrima?

na impossibilidade de escrever sobre a lágrima, me inclino à pausa reflexiva:
quanto vale o choro dos desvalidos?
quanto vale o choro dos decapitados?
quanto vale a dor de um coração aflito?
quanto vale a busca pelo indeterminado?

minha lágrima tímida, lona de balão em chamas
custa desaguar por quem sem ti é raso e coxo
quero de volta tua foz, quero propor as pazes
preciso de ti como as flores amarelas do vento

hoje acordei e fui te visitar dentro da taça
porque era oco o peito, seca a garganta
e a última coisa de que tenho lembrança
é o vazio mórbido da tua ausência em mim.

13.12.05

"Por dentro das penas no chão molhado do mundo"

Trabalhe duro e reze, que você conseguirá uma corcunda.
(velho ditado polonês, não tão popular)

Isso não é perigoso?

Viver é. Além disso, não há mais nada que possamos fazer.

Mas precisamos saber como chegar... Ou precisamos pelo menos saber onde... Que tal ficarmos com como? O que te parece? Como talvez seja melhor que onde, você não acha?

Você bebeu?

Muito. Você?

Quase.

Desce devagar que o mundo está molhado.

Assim a gente pelo menos chega mais rápido.

Com cuidado! Não se esqueça de que nos esperam sentados com croquetes de carne e cerveja escura e lombinhos com queijo e tortas de maçã e mil folhas com creme, pão preto.

Aqueles do gueto alemão?

Esses. Parece que morreram e nos esperam lá para que possamos fazer a gentileza de...

Parece que é o trânsito...

O que você bebe?

Vinho tokay, e você?

Cerveja de raiz de vidoeiro.

Você é um grandíssimo sanguessuga de uma figa. Proponho um brinde a isso!

Os dois brindam, se abraçam e começam a cantar:
“no país do não-me-lembro / dou três passos e me perco”.
Algum tempo passa em absoluto silêncio.
Então uma forte batida: buzinas, vozes, sombras, sangue, água corrente, medo, delírio, esperança. Será mais fácil morrer pela causa do que viver por ela? Os insetos se calam.

O que estamos fazendo aqui?

Você não se lembra?

Não. O que estamos fazendo aqui?

Esperando... O trânsito... Mas por que quer saber? Temos tempo.

Você ainda tem as pinturas do Modesto Mussorgsky?

Toca-fita ligado: Quadros de uma Exposição.

Parece que agora o mundo escorrega mais rápido ainda.

O que afinal você quer de mim?

Eu mesmo.

Você mesmo, de mim... Podemos negociar. Além disso, não há mais nada que possamos fazer.

Muita neblina. Acho melhor pararmos... Uma placa! Perigo! São eles ali?

Aqueles sentados juntos numa mesa sob a neblina?

Sim, aqueles congelados... Está vendo, ali, naquelas teias de aranha... São eles ali?

Não. Aqueles somos nós. Outra vez, temos bons corações.

Acabou seu vinho tokay?

Sim, mas ainda temos vodca. E sua cerveja de raiz de vidoeiro, acabou?

Sim, me passa a vodca.

Não há necessidade. Abre a janela. Está vendo, vindo do céu?

Espera um pouco: esse aqui sou ou é você?

Nenhum dos dois, eu sinto.

Você vende penas?

Sim, eu vendo penas.

Logo depois o carro some na névoa. E ninguém até agora sabe quem morreu e quem sobreviveu por dentro das penas no chão molhado do mundo.

12.12.05

"Estátua Portenha"

o amor não tem substância


As mulheres ali pelas bandas da Avenida de los italianos, a qual eu percorria por uma razão sentimental, andavam de mãos dadas e eu me sentia tão bem, tão sortudo por poder ver tamanha demonstração de carinho e delicadeza em público, algo que nenhum homem é capaz de fazer, porque as mulheres de Buenos Aires simplesmente se dão as mãos ou os braços e seguem em frente olhando para o chão, como se houvesse algo de irremediável em viver sobre o chão da Terra que as impedisse de sorrir.

Então cortei pela Córdoba, quebrei na San Martin, parei para tomar um trago e um ar na praça onde o general libertador aponta para onde meu desejo nunca pôde alcançar, então percebi que tinha bolhas nos pés por ter pensado demais debaixo do sol quente, porque o diabo de Buenos Aires é que o céu é tão azul quanto o azul da bandeira Argentina, mas o sol não é tão bonito quando racha o pixe debaixo da sola furada do teu tênis velho.

Ou talvez fosse apenas o malbec tinto vagabundo de dois pesos e meio mais uma menina muito alta, não muito bonita, mas muito compenetrada no seu bloco de desenho – o que para mim é muito bonito numa mulher – sentada por ironia no Parque Mujeres Argentinas, muito concentrada nos traços de um dique que rabiscava alternadamente com os dedos finos enlaçados nos cabelos de cachos claros na ponta da orelha e a língua marcada de vinho para fora, metade mordida, saliva na ponta do dedo, pontas dos dedos esfumaçando os traços num comportamento artístico, sério e desleixado, estilo em suma, uma garrafa pela metade de um syrah tão vagabundo quanto o meu malbec ao seu lado no chão, o que nos tornava automaticamente cúmplices dentro do que tinha imaginado para mim mesmo como uma viagem agradável, imaginativa e adimensional, sem necessariamente ser todo tempo real. E quando ela franze a testa e usa a borracha, eu penso que isso significa que por mais que você queira, jamais vai conhecê-la além do que ela quiser te apresentar.
Seu lápis caiu quando ela se agachou para repousar a garrafa do seu quarto de vinho no chão. Não sei porque ela olhou para mim e não sei porque eu não pude olhar para ela, já que queria tanto ser um traço do seu rabisco, mas mesmo assim apontei para o lápis, embalado pelo vento atrás do banco, quando vi que a moça era uma estátua de mármore, o lápis era meu próprio lápis e eu estava apaixonado por uma estátua, tão quieta e pálida quanto uma portenha.

6.12.05

"In the footsteps of the walking air (Kenneth Patchen)"


In the footsteps of the walking air
Sky's prophetic chickens weave their cloth of awe
And hillsides lift green wings in somber journeying.

Night in his soft haste bumps on the shoulders of the abyss
And a single drop of dark blood covers the earth.

Now is the China of the spirit at walking
In my reaches.
A sable organ sounds in my gathered will
And love's inscrutable skeleton sings.

My seeing moves under a vegetable shroud
And dead forests stand where once Mary stood.

Sullen stone dogs wait in the groves of water ...
Though the wanderer drown, his welfare is as a fire
That burns at the bottom of the sea, warmin
gUnknown roads for sleep to walk upon.

********** tradução **********

"Nos passos do vento andante (tradução de Leonardo Marona)"

Nos passos do vento andante
Proféticas galinhas celestiais tecem panos de puro desejo
E encostas suspendem asas verdes em macabra viagem.

Noite na sua haste macia se choca com os ombros do abismo
E um único pingo de sangue escuro cobre a Terra.

Agora é a China do espírito andante
Ao meu alcance.
Um órgão de madeira escura ressoa na minha vontade acumulada
E o inescrutável esqueleto do amor canta.

Minha visão se move por baixo de um túmulo coberto de plantas
E florestas mortas padecem onde um dia Maria padeceu.

Cães ariscos de pedra esperam no pomar das águas...
Ainda que o andarilho se afogue, sua saúde é como um fogo
Que queima no fundo do mar, desgelando
Estradas desconhecidas para o sono sobre andar.

4.12.05

"Balada do Mangue" (Vinicius de Moraes)


Pobres flores gonocócicas
Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!
Pobre de vós, pensas, murchas
Orquídeas do despudor
Não sois Lœlia tenebrosa
Nem sois Vanda tricolor:
Sois frágeis, desmilingüidas
Dálias cortadas ao pé
Corolas descoloridas
Enclausuradas sem fé,
Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?
No entanto crispais sorrisos
Em vossas jaulas acesas
Mostrando o rubro das presas
Falando coisas do amor
E às vezes cantais uivando
Como cadelas à lua
Que em vossa rua sem nome
Rola perdida no céu...
Mas que brilho mau de estrela
Em vossos olhos lilases
Percebo quando, falazes,
Fazeis rapazes entrar!
Sinto então nos vossos sexos
Formarem-se imediatos
Os venenos putrefatos
Com que os envenenar
Ó misericordiosas!
Glabras, glúteas cafetinas
Embebidas em jasmim
Jogando cantos felizes
Em perspectivas sem fim
Cantais, maternais hienas
Canções de cafetinizar
Gordas polacas serenas
Sempre prestes a chorar.
Como sofreis, que silêncio
Não deve gritar em vós
Esse imenso, atroz silêncio
Dos santos e dos heróis!
E o contraponto de vozes
Com que ampliais o mistério
Como é semelhante às luzes
Votivas de um cemitério
Esculpido de memórias!
Pobres, trágicas mulheres
Multidimensionais
Ponto morto de choferes
Passadiço de navais!
Louras mulatas francesas
Vestidas de carnaval:
Viveis a festa das flores
Pelo convés dessas ruas
Ancoradas no canal?
Para onde irão vossos cantos
Para onde irá vossa nau?
Por que vos deixais imóveis
Alérgicas sensitivas
Nos jardins desse hospital
Etílico e heliotrópico?
Por que não vos trucidais
Ó inimigas? ou bem
Não ateais fogo às vestes
E vos lançais como tochas
Contra esses homens de nada
Nessa terra de ninguém!

1.12.05

"Analista"

hoje, saindo do analista,
cometi o que a cruzadinha,
no glossário de palavras difíceis,
denomina devorismo:
"uma despesa injustificada e excessiva".

ao ter a surpresa de que economizaria
25 reais no analista
e ainda conseguiria
um texto do Freud chamado "Sobre a Transitoriedade",
resultado de uma conversa do velho charuto
com um jovem e melancólico Rainer Maria,
fiquei feliz repentinamente, como uma tia,
ali eu sabia a verdade,
ali eu me enganavae ainda ria.

então entrei numa livraria moderna de muita vitrine
- doeu ver livros expostos como aparelhos de ar condicionado -
deslizei por dentro das gôndolas de um Burroughs todo cagado
com as mãos ensangüentadas e as ampolas vazias
presas nos seus anjos decaídos sem veias ou pupilas.

passei por Iessiênin estendido num divã do Hotel Inglaterra,
Leningrado,
sem bebida,
pagando o pato,
o rosto desfigurado,
a roupa em farrapos,
suspensórios frouxos, calças puídas,
uma das mãos para baixo e outra cobrindo as feridas,
nos olhos mais nada, isso em 1925,
com a carta do seu corpo sagrado ao lado como justificativa
e toda a dor de um sonho sobre suas sobrancelhas retorcidas.

passei no meio por entre a Bleecker e a Terceira,
onde vi Simon e Dylan,
sentindo o frio do mundo na barriga e olhando para as estrelas,
onde se podia ouvir ronronar os estômagos vazios na luz do dia,
as moedas dos vagabundos nas suas canecas,
algumas pequenas mas afiadas surpresas,
quem sabe Dave Von Ronk dedilhando valsa com jazz numa Gibson,
numa época em que ou você caçava ou você era a presa.

economizei 25, gastei 70
em apenas duas pistas,
melhor, gastei 69 e 90.

talvez tenha sido isca,
talvez a recompensa.

próximos assuntos para o analista:
o devorismo suprime as pistas?
o mundo ainda faz diferença?
o passeio justifica a isca?
se não, que doença?