16.12.15

"lucha libre"



vestimos roupas coloridas
às vezes muito incômodas
no calor dos estádios cheios,
nossas sungas florescentes
denotam a doce brutalidade
de nossas barrigas enormes,
dos nossos braços de ouro.
enfim tudo é um espetáculo,
o aplauso também é cuspe,
sabemos com calos próprios.
nos apelidaram calor latino.
nossas deliberações em nada
têm a ver com nossa carga.
aguentamos o peso do riso
enquanto dobramos ossos
e criamos rubras varizes
no entardecer do espetáculo.
na rua jamais nos confunda
por nossa passada cabisbaixa,
por nossos narizes quebrados.
porque lutamos a lucha libre
nossa luta é bem mais um filtro
e já não há de fato porque lutar.
a coragem de fato se evanesce
em golpes cenográficos, urros
e bocas sedentas de água doce.
tão frágeis em nossas sungas
florescentes nós florescemos,
apenas para amainar as cinzas.

15.9.15

“costela remix”


lentamente as mudanças
drásticas elas lentamente
fraturam nossas costelas.

sutil rusga no hemotórax
sempre muito lentamente
vai perfurando os órgãos
por dentro de espartilhos
como os que endoidaram
muitas damas da realeza.

cair da positiva tentativa
de ser nobre e ser santo.

as ruas são as pororocas
e tua nobreza vagarosa
lentamente se converge
na imagem alquebrada
de um adão ou sagitário
cujas flechas por dentro
evadem-se da turbulenta
carne cinza de mangue
de um estúpido coração.

mas que todos algum dia
fomos estúpidos e isso é
o que viabiliza ao santo
flutuar por sobre idosos
na fila das emergências.


  

25.8.15

“shoá”


a câmara de gás fica ao lado
do necrotério, que fica ao lado
do crematório.

ouvimos as histórias
que vêm da sala de estar,
em vozes de velhos soturnos.

são corpos duros amontoados
no quarto escuro da violação
de todos os pendores.

são vozes mortas
na imensidão vermelha
do apocalipse que faz a vida.

as vozes dos velhos soturnos
estão cansadas, mas não cessam
enquanto não dormimos.

mas não se esqueça
que há senhas bloqueadas
para impedir que as crianças
prevejam seu futuro.

a câmara de gás fica ao lado
do necrotério, que fica ao lado
do crematório.

15.8.15

"robôs em fuga"


mais uma vez aqui
e já há tanto tempo,
na agressividade seca do instante,
no acelerador de partículas da alma,
no refúgio dos corações enferrujados,
nas bolas de fogo dentro dos bolsos,
nos narizes vermelhos de amor e ódio,
nos catarros do receio,
na síndrome das pernas agitadas
e na boca imensa cheia de tiros.

mais uma vez aqui
e já há tanto tempo,
hóspede na terceira classe
de um trem descarrilado,
robô em fuga lenta
da chuva ácida de xangai,
mitologias esfareladas
com restos animais à mesa,
junto apenas na distância
que nos separa do horizonte
de toda esperança.  

na vergonha de não conseguir
e na vergonha de seguir tentando não
conseguir para permanecer vivo,
mas vivos estamos, pensamos todos,
é preciso não conseguir para estar vivo,
é preciso saber sempre pela metade
e da outra parte fazer o calvário
muitas vezes silencioso e sem músculos,
de doce passagem tumultuosa,
com imensas dificuldades, por saber
muito mais do que seria bonito saber.

12.8.15

“goya”





capturados entre exigências contraditórias,
levados a construir compromissos laboriosos,
sob regicídio e terror, alguns “esclarecidos”
sofrem represálias, surdos e melancólicos
adoradores de furúnculos, legislados na arte,
empalados por certa benevolência deicida,
abastados colecionadores de convicções liberais.

ainda assim a impressão de termos nascido
para outro mundo, sem sono nem repouso
enquanto não tivermos concluído o assunto,
sem chamar isso de viver, a vida que levamos,
pessoas cujas marcas nos quartos de pernoite
são marcas de cigarro nos lençóis brancos
muito limpos onde  perturbações dormitam.

enterrá-los e calar-se, assim são as semanas,
absurdos se repetem dos dois lados do front.
não sabíamos então reconhecer as profecias,
então as máscaras diziam a verdade recôndita
escondida na fachada mentirosa da face nua.
carvões quebrados pelos inimigos das Luzes,
consequência inelutável de banhar-se nelas. 

25.7.15

“angélica acorrentada”





um passeio pelo teu corpo
é do que talvez se exclusive
a perfeição de uma longa era
de longos e distantes estudos
das profundezas do mito diário
sobre o corpo de uma indefesa
harmonia de traços íntimos,
úmidos tendões e conchas,
não bem pinceladas de dor,
mimeses do perfeito engano,
culminas em pescoço gótico,
vazios teus olhos estão virados,
teu nome é conservação final,
tua situação diante do monstro
é que talvez não haja escudo mágico,
só essas costelas sobressalentes
e o torso gigantesco do pecado,
porque é preciso corrigir o erro
da natureza que nos criou assim.


23.7.15

“se eu fosse um locutor”


ah eu gostaria de ser
se me perguntassem
digamos meu sonho
queria ser um locutor
e dizer a competência
sadia do esporte da vida
e gritar com o coração
nas mãos e chorar alto
em caso de vitória heroica
e chorar aos sussurros
quando a sorte vacilar
mas ah como eu queria
poder ser pasmo coletivo
de tão digna presença
translúcida voz que fora
da imagem anuncia rindo
que um coração ainda pulsa
e bate e a vida seria sempre
a minha única profissão.


17.7.15

“um momento definitivo e infantil”


para ismar tirelli neto
estou agora escrevendo
no computador da minha
namorada atual, quer dizer,
não sei se seria o melhor
termo para definir a coisa,
mas o fato é que é arrepiante
estar agora escrevendo
no computador da minha
namorada atual, quer dizer,
ela prefere é claro ser a mulher
da minha vida e morte inclusive
fizemos um pouco esses pactos
que lemos nos nossos melhores
livros da infância que ao lado
dos livros que lemos já velhos
parecem os melhores livros,
mas eu dizia outra coisa,
a vida tem disso, júpiter
maçã enquanto escrevo
no computador da minha
garota, acho que ela preferia
ser chamada “minha garota”
apenas, a mais improvável,
a mais difícil, a mais louca,
aquela que, se fôssemos
loiros nascidos em marienbad
e falantes como ventríloquos,
ou se este computador onde
agora escrevo fosse em mil
oitocentos e pouquíssimos
seria como se eu escrevesse
no seu diário as minhas ideias,
mas a alguns compete medir
a labuta por curva de lufada,
estamos aqui, apesar do amigo
que viaja em busca do frio,
escute amigo, estamos todos
de cuecas samba-canção,
com júpiter maçã, sorrindo
pois de todo modo não se sabe,
não se sabe muito sobre nós,
pense bem, meu amor, escrevo
agora para você – o que você
sempre reclama que nunca faço
e agora eu aqui, você no espelho
e mais um que migra para o frio,
enquanto você, toda torta e súbita,
é o forno do meu queixo trêmulo
diante do êxodo da nossa bússola.

14.7.15

“antonin artaud tenta parar de fumar em seu primeiro dia de férias”

 


deixar-se perder
no que se perdeu
pelo caminho sem trajetória,
noção proletária
do esquecimento
prolongado do que se denomina
magia pelo enfeitiçado
ou do contrário jamais,
noção proletária
de enganos sucessivos
e uma estagnação
de posicionamentos em que algo
se rompe em definitivo,
mais uma vez e cada vez mais,
sobre uma concha de ruínas
tão íntimas que cabem
entre as unhas
que por isso arruínas
tuas unhas
com boca inquieta
de quem não teve
a grande ideia
da grande virada
e rasteja e não reza
ou caminha ou medita
apenas crê
que ama algo
que se mantém
secreto a si
e ao governo
que se detém
artificialmente em formas,
em tempos malditos
verdadeiramente infernais
onde nos engolimos
por dentro
enquanto sabemos ser
como supliciados
queimados em praças públicas
que fazem sinais sobre as fogueiras,
uma jornada de liberdade
por arbitrariedade imposta,
um grito de morte
para além da vida,
um giro do sangue
no olho da peste.

29.6.15

"my funny borderline"


escamas ou patins
no gelo ou na água
deslizas e pulverizas
pedras e consomes
gentes e miragens
giram nos teus olhos
mergulhos e rasgos
anunciam as feras
uma escolha entre
duas feras é sempre
o projeto das noites
em transe de parede
afiando pergaminhos
para degolar o vácuo
do tempo que se foi
e do tempo que não
chega mas tu chegas
deslizando afundando
com teu próprio peso
morto com teu passo
em falso que cultiva
escamas ou patins
no gelo ou na água
tua sina é explodir
para todos os lados
canibalizar a raiva
em urro oitentista
charme irrefutável
do que é quase lá
mas é sempre aqui
acumulando neve
arrastando pausas
rompendo as veias
o cardápio da vida
o sono das varandas
a morte aposentada
este chicote íntimo
riso enlouquecido
mostra da mistura
do que no princípio
foi a lava do porvir.

27.6.15

"matadouro"


agora tomo banho, me arrumo,
aparo os cabelos nas orelhas
e os bigodes de leão marinho,
pois hoje vou ao matadouro.

no matadouro pessoas tecem
opiniões relevantes sobre assuntos
concluídos, os matadores de mim
leem de tudo e sorriem frios.

são simpáticos, mas é possível
também imaginá-los delatando
alguém por uma bolsa ao mérito.

são charmosos e pagam bebidas,
amam com mel de abelha e foices,
enquanto afiam solidárias adagas
e notam a perfeita circunferência
dos pescoços de suas vítimas.

é acima de tudo no matadouro
onde a vida e o sangue flutuam
em curtos vapores de humor,
onde compartilhamos moscas
por dentro dos olhos virados.

falamos as letras, sempre elas,
que, mais que lâminas e balas,
dão polidura ao surto do sangue.

agora pronto, é chegada a hora,
rápidas memórias, como flashes,
alucinam o peito na expectativa
de que a dor seja como um raio,
um corte seco no que inaugura
com vísceras a temporária casa.




20.6.15

"mais uma vez"



mais uma vez aqui,
e já há tanto tempo,
na agressividade seca do instante,
no acelerador de partículas da alma,
no refúgio dos corações enferrujados,
nas bolas de fogo dentro dos bolsos,
nos narizes avermelhados de amor e ódio,
nos catarros do receio e da culpa esculpida,
na síndrome das pernas agitadas e da boca
imensa e cheia de tiros trêmulos.

mais uma vez aqui,
e já há tanto tempo,
hóspede na terceira classe
de um trem descarrilado,
robô que foge da chuva,
da chuva ácida de xangai,
mitologias esfareladas
com restos de animais à mesa,
junto apenas na distância
que separa o horizonte
de toda esperança.  

mais uma vez aqui,
e já há tanto tempo,
na vergonha de não conseguir,
na vergonha de seguir tentando
não conseguir para permanecer vivo,
vivos estamos, pensamos todos,
é preciso não conseguir para estar vivo,
é preciso saber sempre pela metade
e da outra fazer o calvário
muitas vezes silencioso e sem músculos,
da doce passagem tumultuosa,
com imensas dificuldades,
por saber muito mais
do que seria bonito saber.

9.6.15

"oitava de mahler"


leões mansos que nos rodeiam em silêncio
honram o sagrado território do amor.
tudo o que passa é apenas semelhança,
é preciso urgentemente uma cirurgia no coração.
é preciso preencher estas linhas também
como pontos e grampos na pele profanada.
é o silêncio assassino dos leões mansos
aquilo que nos conforta, a natureza dupla
de um rugido de mil leões mansos enjaulados,
e todos cantam apenas o canto do amor
e da vista sem impedimentos e da impossível
trégua ou descanso, mas ilimitada é tua coragem,
enquanto bates o queixo em roupas de cama
nos cômodos infestados por um velho fardo
que também é teu fardo enquanto tremes,
digno de reverência, te bates aos pedaços,
nas ruas destemidas do anonimato, no ódio
de um mundo doente e lindo de ser o único.
quando de repente todo o turbilhão se acalma,
esqueces a coragem e as ratazanas da alma,
e, ao maculado, reservada a beleza provisória
de se estar por um instante entre os deuses.



7.6.15

“eu sou os melhores dias”


não escrevo, não escrevo mais.
sou tão infantil que doem os dentes.
engulo chocolates novamente,
pretendo cáries e votos de compaixão.
todos têm o que dar, mas não dão.
porque somos finalmente adultos.
ser adulto é horrível, mas é melhor
do que pensar que serei adulto um dia.
agora sou, não tenho nada a não ser
camundongos nos cantos da sala
e uma vida que sempre parece
que vai melhorar, pois sou otimista.
meus amigos fazem coisas nítidas
como filhos, cursos, oficinas de poesia.
tento dormir sempre mais um pouco
porque estou deprimido outra vez
e nessas horas penso em gritar:
mais alguém é capaz de estar assim?
seria bonito ver de perto a tristeza
ou a tentativa de felicidade mórbida
de alguém que já não tenha morrido
e que possa olhar para mim e dizer:
sou triste, estou levando, não sei onde,
não sei se está perto, parece colado,
mas te vejo e me vejo como se tivesse
visto você em outros melhores dias.
eu sou os melhores dias de espera.

16.5.15

"enquanto agonizo"


o que é incontrolado e,
mais precioso que o mundo,
se aloca na doença.

o beijo da presença
que se liquidifica
na promessa longínqua
com o gosto amargo
da lembrança.

no fim morrerás
do que te faz vivo e,
quando nada mais o fizer,
então viverás para sempre.

"manifestação de direita"


alimentas catástrofes de pelúcia
enquanto atinges um ritmo de pedra.

antecipas tua vergonha numa
inundação interplanetária.
a mãe indígena tem culpa
por escolher o dia da cesárea.

os artistas são negociantes
com talento para fazer arte.
suas almas são amigos ricos
em seus saraus apaziguados.

ao longe tua sorte se abre
diante de um labirinto em chamas.

é preciso agora alimentar
tuas quatros patas.

a ofensa, dever do pobre
foi comprada também pelo rico.

nas ruas, as roupas cospem
as lindas cores da bandeira.

"revolução solar"


plutão diz: tu vais sobreviver.
é o planeta mais devastador e poderoso.
daqui não passarás, ele também diz.
mas há algo que não morre
no que morre da passagem.
portanto fica vivo no que deixa de ser.

netuno é forte, já é sabido,
mas água em abundância
pode dar em afogamento.

urano te faz um palácio, mas indica:
o sublime exige um sentido, que muda.

são três peixes que fazem
teu inventário emocional de conchas.

desvendar-se, invejar as viagens,
encolher-se, ler, escrever bem, mal,
escrever nada, então escrever sem ato:
há ainda muitos anos, não se engane.

outras partes da cidade
são importantes para a alma.
tua alma se gasta no asfalto
de curvas semelhantes.

contato com o estrangeiro
que existe em ti
e de quem cobras
dispendiosa hospedagem.

imagem de um homem
sobre uma flor de lótus.

um leão caminha sobre a lua,
acidentalmente dignificado
por divindades astrocômicas.

queres a graça do público,
queres te fazer observar,
mas não estás na multidão.

sem garras sob um fio d’água,
o instinto já não encontra
um chão comum à expressão
mais radiosa de teu jorro.

flashes não convencionais
povoarão os frutos
como relâmpagos na floresta.

amarás geralmente,
outros dias amarás sem vontade,
outros dias serás esquisito.
tua falha será represar ódio.
ainda assim pensarás: amo.

busca de equilíbrio entre
sobriedade e jovialidade:
é isso que ensina saturno:
uso doméstico da loucura.