você é para mim uma nova revista
de um novo papel timbrado
com uma lombada cintilante
que se abre em suas mil páginas
e eu olho para essas páginas
como a criança que fui
e você me lembra da criança
que eu não posso deixar de ser
e eu sempre sinto seu abraço
suas mãos um pouco mais frias
do que as minhas, mas nas minhas
e sempre antes de dormir
eu beijo teus olhos e esfrego um pouco
minha barba, que agora cresce,
no teu ombro que é também meu ombro
porque com a sabedoria da tua presença
em mim posso suportar melhor o peso
das coisas que não mais estão
presentes e você é um presente
de reconciliação com a vida
que agora não mais me escapa
mas se enche como matéria viva
dentro do meu corpo e nos meus pêlos
porque o que temos aqui, neste instante
é algo que fica feio ao se explicar,
então recebo teu abraço extra
como a mulher de imenso busto
recebe o guerrilheiro ferido
mas sorridente com a fim da guerra.
25.4.12
“diário 2: admirável”
Antes de tudo, o sonho de logo cedo, acho que o último de uma série de sonhos simbólicos, de difícil análise, ao menos em nossa língua pronunciável. Vamos ao sonho.
Sim, eu precisava entregar um presente a um querido amigo, havia uma sensação de antiguidade e longa pausa entre duas vidas, e este amigo calhava de ser Freddie Mercury. O presente, uma espécie de calendário ilustrado em tons de amarelo. Eu estava chateado no sonho, me lembro, mas de modo algum aquilo se tornaria um pesadelo, eu sabia, talvez porque fosse boa a sensação de profunda amizade, que nenhuma distância é capaz de abalar, ou mesmo o fato de que eu admirava muito esse meu amigo e, por estar ali não sei onde, com um presente na mão para entregá-lo, eu tinha nesse calendário ilustrado em tons de amarelo uma prova concreta do meu amor. Mesmo assim eu estava chateado, e isso talvez foi o detalhe que me fez recordar o sonho. Estava chateado porque sabia que, como contraponto à minha prova irrefutável de amor, havia outra certeza absoluta, a de que eu não conseguiria entregar a Freddie o presente, o calendário ilustrado em tons de amarelo. E o calendário estava plastificado. Não havia dedicatória.
Leitura complementar:
Com efeito, a admiração é uma espécie de identificação que parece comportar uma hybris, pois se o que geralmente se admira deve, de alguma forma, estar acima do sujeito que admira, como um modelo ou uma imagem a ser alcançada, por outro lado, deve estar ao lado para que possa ser admirado. Admirar alguém ou algo é, ao mesmo tempo, olhar para si e para o outro, olhar sua própria imagem sempre em relação a uma outra imagem ou modelo a ser copiado. Sob esse aspecto, trata-se de uma perspectiva mimética cujo modelo admirado é, por excelência, uma imagem paterna. Mas, por outro lado, admiramos sempre aquilo que já nos é, de algum modo, semelhante ou potencialmente semelhante. Dir-se-ia que entre Melville e Hawthorne, como entre Ahab e Moby Dick,
“uma zona de indistição, de indiscernibilidade, de ambiguidade se estabelece entre dois termos, como se eles tivessem atingido o ponto que precede imediatamente sua diferenciação respectiva: não uma similitude, mas um deslizamento, uma vizinhança extrema, uma contiguidade absoluta: não uma filiação natural, mas uma aliança contra natura”. (Gilles Deleuze. “Bartleby, ou la formule”, in Critique et Clinique, p. 100)
22.4.12
"de onde vem"
porque
tudo isso é muito
mais um asco moderado,
um fermento leporino
para inchar de antagonismos
o dormir e o permanecer.
de lá para a privada,
ainda que seja
uma privada divina.
enquanto injetarem-se
os olhos ainda vacilantes
andarás, não sentirás, mas
verás como te observam
meneando as cabeças nas ruas
e saberás: ainda sou veloz.
terás de fazer algo, pois que
permanecer é fazer algo,
e miseravelmente estarás pequeno
diante de um imenso portão;
e cairás de joelhos.
se tiveres fossa de escoamento
despejar, não sem elegância,
mesclar um novo sofrimento;
entenderás enfim que não precisas
mesclar nada: está tudo aí.
nos abusos do teu coração,
na força em aproximar,
no lençol de realejos;
está sobretudo nos restos
do êxodo que não partilhaste.
mas és de qualquer forma um vivo-
morto, pois nutres no estômago
mortes insuperáveis e deságuas
farpas como fossem marfim.
mais um asco moderado,
um fermento leporino
para inchar de antagonismos
o dormir e o permanecer.
não
passa do estômago,
manter
por lá o quanto puder.de lá para a privada,
ainda que seja
uma privada divina.
enquanto injetarem-se
os olhos ainda vacilantes
andarás, não sentirás, mas
verás como te observam
meneando as cabeças nas ruas
e saberás: ainda sou veloz.
e
quando souberes: permaneces,
haverá
de acontecer algo,terás de fazer algo, pois que
permanecer é fazer algo,
e miseravelmente estarás pequeno
diante de um imenso portão;
e cairás de joelhos.
se tiveres fossa de escoamento
despejar, não sem elegância,
mesclar um novo sofrimento;
entenderás enfim que não precisas
mesclar nada: está tudo aí.
nas
dobras dos teus erros,
na
casa compartilhada,nos abusos do teu coração,
na força em aproximar,
no lençol de realejos;
está sobretudo nos restos
do êxodo que não partilhaste.
as
contas dificultam o trajeto.
sem
contar, morrerás logo.mas és de qualquer forma um vivo-
morto, pois nutres no estômago
mortes insuperáveis e deságuas
farpas como fossem marfim.
18.4.12
“diário 1: alvorada”
se não tivesse isso, não teria nada.
as primeiras horas do dia revelam aqueles instantes de pura expectativa e receio quando um se diz do que está a frente não sei nada, do que está atrás sei, mas morreu com o sono, um pouco mais e sempre.
um dia atravessado é um santo; é possível amá-lo, o que chamar-se-á nostalgia se for intenso, mas não se pode temê-lo – é uma foto, uma flor no chão, um namoro de oito meses.
já as formas do dia, quando ainda se recuperam de imensa morte diária, porque um dia que nasce é sempre uma ressurreição, tomam o susto pavoroso do cálculo: posso fazer?
do escuro vem a criança, a boa-nova do medo; que dizer então do mistério que envolve as horas do ouro do primeiro dia? é o negativo imperial formando o positivo salutar ou, pior ainda, o esperar a ser temendo.
porque todo o dia é sempre o primeiro dia já que vemos a mudança do tempo mudados já no instante em que se muda.
o tempo explode pela primeira vez neste exato instante, e o erro quanto a isso incha clínicas de ciclos mortos, quando abandonamos a noite de nosso longínquo parentesco, e iniciamos o debate profético de um filho sem pai, luz primeira.
quase escondido da literatura vigente, teme surgir um campo inundado da língua em que conhecer-se através dela faz parte dos amores íntimos.
as esferas das frases são cada palavra na ponta do destino.
conhecer de perto o material da farsa: esta consiste a única missão do homem na terra; e o único caminho possível para o amor.
o que me leva a ser mais generoso com desconhecidos? aceitá-los em sua completude ausente de mim torna-se subitamente a única forma de acordar meu silêncio. silêncio este aflito, dividido normativamente com os íntimos que, sendo portadores também, junto a mim, de meus pedaços de silêncio perdidos, precisam ou devolvê-los, se quiserem cobrar meu carinho, ou aceitá-los como algo muito estranho que habita seus corpos, podendo só assim reconhecer a magia do erro, da mistura implícita.
quando nasce o dia em nós, porque é irrelevante quando nasce o dia no mundo, arrumamos logo afazeres, que justifiquem sua morte em batalha: arrumamos a estante, fumamos cigarros pela janela, com algo que parece coçar no corpo, algo como uma presença maior que começa a invadir espaço que nem sabíamos existir. daí vêm os textos prematuros, pouco importa sejam ideias descartáveis; o descartável, com o pavor do dia nascente que deverá, de um modo ou de outro, ser utilizado até sua morte, sugado como um escravo cego, torna-se perecível, justo e firme como uma realidade intransigente. daí nos vem a ideia de colher pequenas flores que caiam ao chão. daí a ideia de que, sendo noite de ninguém, ó rosa, fechaste tantas pálpebras. os planos, a vertigem e o medo de como é cansada a palavra vertigem, sendo horrorosos meios e a única maneira plausível de falar deus, mas não se sabe ainda o que é isso, porque somos o sangue infectado do novíssimo problema: frustração de gerações mais respeitáveis.
vantagem e desvantagem da noite: dentro dela não passamos de restos do que não foi o dia.
as primeiras horas do dia revelam aqueles instantes de pura expectativa e receio quando um se diz do que está a frente não sei nada, do que está atrás sei, mas morreu com o sono, um pouco mais e sempre.
um dia atravessado é um santo; é possível amá-lo, o que chamar-se-á nostalgia se for intenso, mas não se pode temê-lo – é uma foto, uma flor no chão, um namoro de oito meses.
já as formas do dia, quando ainda se recuperam de imensa morte diária, porque um dia que nasce é sempre uma ressurreição, tomam o susto pavoroso do cálculo: posso fazer?
do escuro vem a criança, a boa-nova do medo; que dizer então do mistério que envolve as horas do ouro do primeiro dia? é o negativo imperial formando o positivo salutar ou, pior ainda, o esperar a ser temendo.
porque todo o dia é sempre o primeiro dia já que vemos a mudança do tempo mudados já no instante em que se muda.
o tempo explode pela primeira vez neste exato instante, e o erro quanto a isso incha clínicas de ciclos mortos, quando abandonamos a noite de nosso longínquo parentesco, e iniciamos o debate profético de um filho sem pai, luz primeira.
quase escondido da literatura vigente, teme surgir um campo inundado da língua em que conhecer-se através dela faz parte dos amores íntimos.
as esferas das frases são cada palavra na ponta do destino.
conhecer de perto o material da farsa: esta consiste a única missão do homem na terra; e o único caminho possível para o amor.
o que me leva a ser mais generoso com desconhecidos? aceitá-los em sua completude ausente de mim torna-se subitamente a única forma de acordar meu silêncio. silêncio este aflito, dividido normativamente com os íntimos que, sendo portadores também, junto a mim, de meus pedaços de silêncio perdidos, precisam ou devolvê-los, se quiserem cobrar meu carinho, ou aceitá-los como algo muito estranho que habita seus corpos, podendo só assim reconhecer a magia do erro, da mistura implícita.
quando nasce o dia em nós, porque é irrelevante quando nasce o dia no mundo, arrumamos logo afazeres, que justifiquem sua morte em batalha: arrumamos a estante, fumamos cigarros pela janela, com algo que parece coçar no corpo, algo como uma presença maior que começa a invadir espaço que nem sabíamos existir. daí vêm os textos prematuros, pouco importa sejam ideias descartáveis; o descartável, com o pavor do dia nascente que deverá, de um modo ou de outro, ser utilizado até sua morte, sugado como um escravo cego, torna-se perecível, justo e firme como uma realidade intransigente. daí nos vem a ideia de colher pequenas flores que caiam ao chão. daí a ideia de que, sendo noite de ninguém, ó rosa, fechaste tantas pálpebras. os planos, a vertigem e o medo de como é cansada a palavra vertigem, sendo horrorosos meios e a única maneira plausível de falar deus, mas não se sabe ainda o que é isso, porque somos o sangue infectado do novíssimo problema: frustração de gerações mais respeitáveis.
vantagem e desvantagem da noite: dentro dela não passamos de restos do que não foi o dia.
16.4.12
12.4.12
“os problemas da minha garota”
minha garota tem problemas
que eu não posso resolver.
como dizer, deus, à minha garota
que eu não sei mais nem quais são
os problemas que tenho eu mesmo
que resolver para comigo e logo?
falaríamos então sobre pontes
de amor desde um até o outro
como faria Le Corbusier ou Wright
mas jamais minha garota e eu diríamos
que as pontes do amor são pontes
que passaram por longas guerras
que derrubaram homens, famílias
que ergueram bandeiras rasgadas
não falaríamos jamais que pontes
são coisas que sempre vêm abaixo
porque é natural da ponte apresentar
o que poderia ser elevado por estética
mas cai por terra porque é tentativa
precisão de ganhar tempo mas tempo
é bem mais a coisa do amor, a ponte
entre o que vai se já não tivesse sido
a marca da nossa tentativa, a grandeza
de nossos mais estúpidos atalhos
a notícia aterrorizante de que um senhor
francês ou americano pode medir espaço
entre duas coisas que afinal, se estão
apresentadas como a medida da ponte
é que a ponte tem mesmo é que cair
vir abaixo para provar tão somente
que a medida do amor não cabe, nunca
caberá no espaço entre dois sentidos
mas disso jamais falaríamos nós dois
nunca das fugas apaixonadas, mortais
caprichos do que se faz afinal vivo
justamente porque entre escombros
esfrega-se os olhos e lá está a ponte!
mas minha garota tem problemas
que não posso resolver, não cabem
nas resoluções fórmicas da literatura.
com os problemas da minha garota
ganhei problemas que fogem ao ato
da criação seja de qualquer espécie
(artifícios de alcova – serão celestes?)
mas minha garota, ela não esquece
que na verdade nem é minha garota
e este é um problema que eu nunca
poderei levar até ela numa ponte.
que eu não posso resolver.
como dizer, deus, à minha garota
que eu não sei mais nem quais são
os problemas que tenho eu mesmo
que resolver para comigo e logo?
falaríamos então sobre pontes
de amor desde um até o outro
como faria Le Corbusier ou Wright
mas jamais minha garota e eu diríamos
que as pontes do amor são pontes
que passaram por longas guerras
que derrubaram homens, famílias
que ergueram bandeiras rasgadas
não falaríamos jamais que pontes
são coisas que sempre vêm abaixo
porque é natural da ponte apresentar
o que poderia ser elevado por estética
mas cai por terra porque é tentativa
precisão de ganhar tempo mas tempo
é bem mais a coisa do amor, a ponte
entre o que vai se já não tivesse sido
a marca da nossa tentativa, a grandeza
de nossos mais estúpidos atalhos
a notícia aterrorizante de que um senhor
francês ou americano pode medir espaço
entre duas coisas que afinal, se estão
apresentadas como a medida da ponte
é que a ponte tem mesmo é que cair
vir abaixo para provar tão somente
que a medida do amor não cabe, nunca
caberá no espaço entre dois sentidos
mas disso jamais falaríamos nós dois
nunca das fugas apaixonadas, mortais
caprichos do que se faz afinal vivo
justamente porque entre escombros
esfrega-se os olhos e lá está a ponte!
mas minha garota tem problemas
que não posso resolver, não cabem
nas resoluções fórmicas da literatura.
com os problemas da minha garota
ganhei problemas que fogem ao ato
da criação seja de qualquer espécie
(artifícios de alcova – serão celestes?)
mas minha garota, ela não esquece
que na verdade nem é minha garota
e este é um problema que eu nunca
poderei levar até ela numa ponte.
11.4.12
"RASTROS DO ÊXODO"
FRISSON – SP – (1)
no fundo escrever é o nosso principal sexo, a perfeita comunhão com o corpo.
mas, sem estragá-la com os excessos da pele,
teremos parâmetro suficiente para reconhecermos
a sua perfeição?
FRISSON – SP – (2)
Nossa primeira discussão mais séria foi acerca de um pedaço de pão e restos de um queijo ruim e caro. Você come bastante, acabou com tudo, ainda bem que sobraram esses farelos. Emburrou-se e fechou a cara durante toda a manhã. Nada se quebrou, embora exista agora um copo bem na beirada da mesa. Nunca mais tentar ser engraçado. Quando sentir vontade de sê-lo, ser sério. Aí está a origem do riso. Ela tem mil tipos de riso, e não precisa pensar em nada engraçado para emitir nenhum deles. Projeto ambicioso: tentar catalogar as variações de riso. Ser sério e tentar desvendá-los. Sem pressa. Nunca mais escrever nada que não leve ao desespero qualquer homem apressado. Isto é uma frase de outra pessoa, agora é minha. No fim me angustiou pensar que eu não era capaz de reconhecer minha própria graça. Desejo de voltar a dormir imediatamente. Mas ela dorme, ronca baixinho, é incrível que uma pessoa tão pequenina ronque, mesmo que baixinho. Acordar depois dela seria, portanto, uma compensação ilustrativa. Pensar é o preço de não saber. Lembrar disso no fim do dia. Não dançaremos hoje à noite.
FRISSON – SP – (3)
São Paulo é uma cidade onde os bancos se parecem com lanchonetes e as lanchonetes se parecem com bancos. E onde uma loja Marisa se parece com um banco que acabou de se tornar uma lanchonete. Devemos estar mesmo nos entendendo bem: paramos horas ao sol para observar uma senhora de uns 90 anos toda de branco e com um lenço azul claro que estava em pé com uma bolsa preta esperando algo na esquina justo em frente às Oficinas MC. Duas pessoas observando uma senhora, o que ela fará, o que estará a senhora esperando do movimento do mundo naquele exato momento, aquilo era a realidade suspendendo-se diante de nossos olhos recém chorados. A velha encostou-se ao automóvel esporte vermelho e eu jurava que estava prestes a entrar numa girada sinuosa de corpo, soltar o lenço na cabeça branca e sair com o lenço esvoaçante arrancando com o automóvel esporte vermelho. Sua filha chegou – mas quem disse que era a filha afinal? – minutos depois, abriu o carro, a senhorinha entrou. Mas tínhamos sido crianças por quase dez minutos.
FRISSON – SP – (4)
Em nosso último – ou terá sido o primeiro? – dia havia finalmente começado a chover; São Paulo resplandecia. Acordamos silenciosos, nos olhamos por um longo tempo, mas em variações de tempo invertidas. De modo que nos olhamos sem nos olharmos, como nos filmes sobre a burguesia italiana do pós-guerra. É preciso fé para abrir os olhos, ela disse enquanto estalava as costelas e eu comia um resto de ovo de páscoa. Na rua chovia, era um belo dia de sol. Andamos por uma avenida gigantesca, mas eu até esqueci o nome dela. Um banho por ora, depois morrer um pouco. Por ora um abraço, me avisa mais tarde. Andamos apartados e nos olhamos depois de metros, no mesmo instante. Um dia bom para filmes. Fui ao museu. Ela comeu bacalhau. Chegou a noite e me deprimi. Era importante suportar alguma violência em toda aquela notícia súbita de que estávamos na história das coincidências fotográficas. Pensamos que aquilo era apenas um bom presságio. Cruzei os dedos enquanto me afastava. Atravessou a cidade a pé.
FRISSON – SP – (5)
Deu-me o diário de Maria Gabriela Llansol. O rastro do êxodo. Boa ideia para um título. Frase para poema: perdi meu chafariz na tua fonte sem sombra.
FRISSON – SP – (6)
Acordamos exaustos e famintos, talvez com algum receio de termos gastado precocemente o nosso contato. Comemos numa padaria cheia e cara, mas muito bonita, apesar de parecer irreal. Ela pediu dois cafés expressos e dois pães de queijo. Normalmente não gosto de ver as pessoas comendo. Observei o ambiente. Ela terminou de comer e foi ao banheiro. Uma família italiana se aproximou. Um garoto com as têmporas suadas apoiou-se no balcão e gritou para que uma velha italiana típica sentasse ao meu lado. Creio que usou inclusive a expressão mamma ou nonna, o que, confesso, emocionou-me. Ela voltou e pareceu espantada por eu não ter cuidado do seu lugar. Impossível, eu disse. É uma mamma ou nonna italiana legítima. A mulher do caixa riu muito conosco, de nós. Não me lembro se ela me deu a mão ou o braço e saímos rápido, mas acho que sim. No caminho, entramos sem querer no meio de uma procissão judaica. Havia um velho com uma perna da calça maior do que a outra e um terno que lhe cobria os braços. Um personagem do expressionismo alemão, e resolvemos segui-lo, enquanto ele desceu uma galeria que vendia roupas em geral muito feias e, em sua maioria, femininas. Ficamos desapontados quando descobrimos que ele queria apenas ir ao banheiro. Lembrei da senhora na esquina das Oficinas MC e ri por dentro.
FRISSON – SP – (7)
Apontei algumas fachadas horrorosas de edifícios no intuito explícito de deixar claro: venho para viver. Mas velada havia uma vontade quase súplice de que ela virasse de repente, dada a feiura desoladora daquelas fachadas, e dissesse: podemos achar um lugar mais bonito para nós. Não devemos velar tanto, concluí, ou devemos ao menos velar tudo. Uma fachada em especial, no centro pobre, me chamou atenção. De massa cinzenta, como um velho fumante, toda pichada, lembrava ternamente meu próprio coração, arrasado mas, pelo menos, de longo uso. Com relação a este edifício, você chegou a erguer a cabeça no que pensei “Grécia, Florença?”, mas limitou-se a sorrir. Tive a impressão de que um sorriso seria um bom espaço para se viver dentro dele. Pensei em seguida: com um lenço amarelo, de seda algodão viscose, preso a um prego naquela varanda, seria possível quem sabe ser feliz, ou pelo menos alegre.
FRISSON – SP – (8)
Ao deitarmos na mesma cama fiquei inquieto com dois sentimentos complementares, inimigos: sofrimento e esperança. Tocar ali era matar a esperança, e a esperança, ao contrário, era pela morte do sofrimento. De todo modo, fui inábil, falei demais, bebi. A esperança queria ganhar de qualquer jeito e por isso fez acordo com o sofrimento. Pegamos no sono de mãos dadas, acho que ela chegou a se deitar no meu peito. Posso ter sonhado. Seria um milagre. Mesmo assim não morremos, éramos já outros. Acordamos curiosos e assustados em saber quem éramos agora. Com o correr do dia, aceitamos nossos novos outros como se aceita um tio inconveniente que chega para se hospedar em nossa casa. Apesar de tudo, é um parente. Havia já a casa, mas lá estava também o tio.
FRISSON – SP – (9)
Ganho dela três livros:
um Pavese
um Andreiev
uma Llansol
Sinto como se eu fosse Andreiev, ela Llansol (porque no livro havia ainda por cima suas anotações, inclusive cortes de alguns trechos do original, com retoques, insights, teoremas) e Pavese fosse o filho da nossa fricção matizada por uma cor ainda inexistente. Um bebê fraquinho, sem leite, mas cheio de talento e reprovação. Ponho na cabeça que preciso começar por Llansol. É tudo muito agradável, mas terminal. Ela cita João da Cruz, Hadewijch da Antuérpia, Müntzer e o Mestre da Culpa. Imagino feições estranhas e fantasmagóricas para suas imagens. Concluo que Llansol não me faz bem. Uma forma também de ter essa mulher de cujo ventre saiu meu Pavese, nostro piccolo cesare. é gostando deste livro. Repito cem vezes para meu coração: eu gosto deste livro. Com a repetição, aceito: eu tenho essa mulher.
FRISSON – SP – (10)
Talvez eu não saiba mesmo explicar, leoa, porque me incomoda tanto o suicídio de Cesare Pavese. Sua carta contra os fofoqueiros, sua serena superioridade, sua privilegiada ausência de tudo. Talvez eu não saiba mesmo explicar e por isso talvez eu saiba que deveria de alguma forma estar aqui para poder tentar te explicar porque me incomoda tanto o suicídio (com soníferos!) de Cesare Pavese e mesmo assim olhando para o chão enquanto você que é sua imagem livre de mim finalmente apresenta os olhos imensos vitrais de igreja gótica e sua boca roxa de uma noite de vinho e os cabelos que você disse meu irmão não admite que eu pinte de outra cor que não seja loiro mas loiro resseca o cabelo e dá muito trabalho é preciso ir ao cabeleireiro e eu detesto cabeleireiros você viu só aquele casal a menina sentou e pediu que o menino esperasse enquanto ela pintava as unhas da mão você já viu alguma coisa parecida? Eu disse não mas eu diria qualquer coisa porque o acontecimento de uma imagem fere a face de deus e glorifica o homem então eu tentei fazer uma omelete dos ovos sobre os quais pisávamos tentando segurar nas pontas dos dedos as nossas frágeis expectativas e fiquei feliz porque ela era menor do que eu imaginava e me senti mais confiante porque ela comentou é bom ver a pessoa ao vivo porque existem detalhes que aumentam a gama de possibilidades de mistério de uma pessoa já que nos detalhes às vezes quase imperceptíveis do rosto estão as fugas e encontros com fantasmas que nos fazem chorar sem mesmo fechar os olhos e apertamos tenho certeza o coração ao sabermos a tragédia da vida e como bebemos e como andamos estupefatos acachapados com as chances de destruição e anulação de que somos todos capazes e não existe talvez vida em equipe amor sem etapas é preciso muito sentimento para rompermos a couraça, leoa, e muito mais cafuné para não pensarmos serão necessários quantos soníferos ou cartas pirateadas de ilhas longínquas para interrompermos essa gagueira ensandecida que nos une e em nosso sofrimento talvez possamos compreender o nosso nobre laço eu não posso aceitar infelizmente ou falar sobre os motivos pelos quais me incomoda tanto o suicídio de Cesare Pavese sua desistência histórica seu charme kamikaze e talvez eu nunca consiga e faça algumas vezes o papel de vitima do inominável mas oh cigana podemos falar o que quisermos e andarmos quilômetros quase em silêncio ou de braços dados porque não me importo em te oferecer o braço como se fosse a mulher protegida do casal. Importante controlar os ânimos.
FRISSON - SP - (11)
Cheguei e fizemos fora do combinado. Disse para meu coração: amém. Uma coceira pelo corpo me fez não querer esperar mais nada. Saí, impressionado com como havia batido forte a porta. Talvez Julia tenha acordado. Seria bom se acordasse a tempo. Não aconteceu. Saí. Você me mandou uma mensagem dizendo onde devo encontrá-lo? Respondi apenas só conheço onde fica o MASP, estarei ali no laguinho. Peguei no sono forçadamente, como quem espera um dilúvio sem teto. Gostei de estar desamparado. Adormeci imediatamente, como quem ouve o câncer. Em minutos, no entanto, em sobrevida, despertei num salto. Havia ao meu lado uma reunião de mendigos muito elegantes em torno de uma lata que fazia fogo. Conversavam animadamente, mas com semblantes sérios, o que me pareceu algo raro e incrível. Fiquei feliz que minha presença não os tenha incomodado, senti como se me oferecessem com os olhos uma ponta de cigarro. Aceitei mentalmente, e me afastei para o outro laguinho. Pensei o que você acharia quando me visse junto aos mendigos elegantes que riem falando sério. Pensei em Nietzsche, senti-me aliviado. Pobre Nietzsche, não teve a mesma sorte. Finalmente, na horizontal, vi você atravessando a rua. Fingi estar dormindo, mas, sem os mendigos em volta, a cena não fazia mais sentido. Senti-me excluído do convívio dos risos sérios. Você parecia apressada, sorria como um dos mendigos elegantes, seriamente. Senti-me excluído ao quadrado. Por isso voltei a dormir. Assim que me levantei, pretendi estar desnorteado. Uma infantilidade e uma limitação voluntárias. Queria pretender (ou seja, fazer ser o que não é) aquilo que já era. Assim que você chegou minhas palavras me pareceram ser eu estava fingindo que estava dormindo. Por que fiz isso, nunca saberei. Demoramos uma tarde para darmos finalmente as mãos. Na hora do sono, tive pesadelos. Você me deu a mão outra vez. Sua mão era mais quente que a minha e suava enquanto você dormia. Imaginei que tínhamos vários corações dentro do corpo, um deles na mão. Depois dormi melhor. Você dormiu de bruços e de lado, e disse que sonhou com pessoas cujos rostos iam ficando gradativamente pretos, até desaparecerem. Eu disse que deveria ter algo a ver com os sonhos do Kafka, que você estava lendo. Parecia a voz de uma outra pessoa que disse isso por mim. Discutimos por causa do pão e do queijo. Tive um prenúncio de forte amizade, com chuvas.
FRISSON – SP – (12)
No bar, choramos em muito pouco tempo. O que se dá nisso é que o corpo junta-se finalmente com a emoção e não se aguenta. E quando o corpo não se aguenta, é a primeira vez que vemos o corpo. Espantados com nossas graves diferenças (eu ando em linha reta até a beleza arruinando-a ou ao menos devendo-a em sangue - você contorna a beleza de modo a mantê-la intacta em seu mistério / eu dionísio - você apolo / você olhos grandes - eu pequeninos / narizes idem) planejamos intimamente uma guilhotina onde pudéssemos descansar por minutos as nossas cabeças.
FRISSON – SP – (13)
Sentamos numa praça, observando as pessoas em volta. Uma família espanhola, aparentemente mãe/avó/filhinho, estava à nossa frente, brincando com bonecos de super-heróis. Ficamos calados, como se nossos barulhos, inclusive os estomacais, pudessem afetar negativamente o desempenho dos atores. O filhinho distribuiu três bonecos. A avó seria o Batman, a mãe o Super-Homem, ele próprio o Homem-Aranha. Voavam com os bonecos como se fosse a nós perfeitamente plausível manter asas. Num dado momento, lutaram. A mãe disse ao filhinho hay que luchar, ao que ele respondeu em automatismo de coisa bruta luchar para que? Todos ficaram mudos e creio que nos olhamos, o menino inclusive virou-se para você. Tinha um rosto de mil anos. Não estamos, nós adultos, preparados para responder perguntas de crianças. As perguntas que fomos quando crianças tornaram-se nossa pele vaga, porque já não se fazem mais as perguntas às quais não é possível responder. A mãe começou a voar com seu boneco, o que deixou o filhinho pasmo, excitadíssimo. Na hora acrescentei que, se fôssemos namorados, estaríamos nos beijando, ou fazendo pequenos carinhos, e perderíamos a cena. Você concordou apenas depois, quando entendeu o que eu quis dizer. Por enquanto estamos soltos mas ainda não livres. Isto foi incluído posteriormente. Viver quase a sós atrai, pouco a pouco, os absolutamente sós. Isto também. Mantivemos um pouco mais de silêncio, como quem tira a roupa das horas. Pensei se estávamos realmente ali. Acho que sim, você disse sem mexer a boca.
no fundo escrever é o nosso principal sexo, a perfeita comunhão com o corpo.
mas, sem estragá-la com os excessos da pele,
teremos parâmetro suficiente para reconhecermos
a sua perfeição?
FRISSON – SP – (2)
Nossa primeira discussão mais séria foi acerca de um pedaço de pão e restos de um queijo ruim e caro. Você come bastante, acabou com tudo, ainda bem que sobraram esses farelos. Emburrou-se e fechou a cara durante toda a manhã. Nada se quebrou, embora exista agora um copo bem na beirada da mesa. Nunca mais tentar ser engraçado. Quando sentir vontade de sê-lo, ser sério. Aí está a origem do riso. Ela tem mil tipos de riso, e não precisa pensar em nada engraçado para emitir nenhum deles. Projeto ambicioso: tentar catalogar as variações de riso. Ser sério e tentar desvendá-los. Sem pressa. Nunca mais escrever nada que não leve ao desespero qualquer homem apressado. Isto é uma frase de outra pessoa, agora é minha. No fim me angustiou pensar que eu não era capaz de reconhecer minha própria graça. Desejo de voltar a dormir imediatamente. Mas ela dorme, ronca baixinho, é incrível que uma pessoa tão pequenina ronque, mesmo que baixinho. Acordar depois dela seria, portanto, uma compensação ilustrativa. Pensar é o preço de não saber. Lembrar disso no fim do dia. Não dançaremos hoje à noite.
FRISSON – SP – (3)
São Paulo é uma cidade onde os bancos se parecem com lanchonetes e as lanchonetes se parecem com bancos. E onde uma loja Marisa se parece com um banco que acabou de se tornar uma lanchonete. Devemos estar mesmo nos entendendo bem: paramos horas ao sol para observar uma senhora de uns 90 anos toda de branco e com um lenço azul claro que estava em pé com uma bolsa preta esperando algo na esquina justo em frente às Oficinas MC. Duas pessoas observando uma senhora, o que ela fará, o que estará a senhora esperando do movimento do mundo naquele exato momento, aquilo era a realidade suspendendo-se diante de nossos olhos recém chorados. A velha encostou-se ao automóvel esporte vermelho e eu jurava que estava prestes a entrar numa girada sinuosa de corpo, soltar o lenço na cabeça branca e sair com o lenço esvoaçante arrancando com o automóvel esporte vermelho. Sua filha chegou – mas quem disse que era a filha afinal? – minutos depois, abriu o carro, a senhorinha entrou. Mas tínhamos sido crianças por quase dez minutos.
FRISSON – SP – (4)
Em nosso último – ou terá sido o primeiro? – dia havia finalmente começado a chover; São Paulo resplandecia. Acordamos silenciosos, nos olhamos por um longo tempo, mas em variações de tempo invertidas. De modo que nos olhamos sem nos olharmos, como nos filmes sobre a burguesia italiana do pós-guerra. É preciso fé para abrir os olhos, ela disse enquanto estalava as costelas e eu comia um resto de ovo de páscoa. Na rua chovia, era um belo dia de sol. Andamos por uma avenida gigantesca, mas eu até esqueci o nome dela. Um banho por ora, depois morrer um pouco. Por ora um abraço, me avisa mais tarde. Andamos apartados e nos olhamos depois de metros, no mesmo instante. Um dia bom para filmes. Fui ao museu. Ela comeu bacalhau. Chegou a noite e me deprimi. Era importante suportar alguma violência em toda aquela notícia súbita de que estávamos na história das coincidências fotográficas. Pensamos que aquilo era apenas um bom presságio. Cruzei os dedos enquanto me afastava. Atravessou a cidade a pé.
FRISSON – SP – (5)
Deu-me o diário de Maria Gabriela Llansol. O rastro do êxodo. Boa ideia para um título. Frase para poema: perdi meu chafariz na tua fonte sem sombra.
FRISSON – SP – (6)
Acordamos exaustos e famintos, talvez com algum receio de termos gastado precocemente o nosso contato. Comemos numa padaria cheia e cara, mas muito bonita, apesar de parecer irreal. Ela pediu dois cafés expressos e dois pães de queijo. Normalmente não gosto de ver as pessoas comendo. Observei o ambiente. Ela terminou de comer e foi ao banheiro. Uma família italiana se aproximou. Um garoto com as têmporas suadas apoiou-se no balcão e gritou para que uma velha italiana típica sentasse ao meu lado. Creio que usou inclusive a expressão mamma ou nonna, o que, confesso, emocionou-me. Ela voltou e pareceu espantada por eu não ter cuidado do seu lugar. Impossível, eu disse. É uma mamma ou nonna italiana legítima. A mulher do caixa riu muito conosco, de nós. Não me lembro se ela me deu a mão ou o braço e saímos rápido, mas acho que sim. No caminho, entramos sem querer no meio de uma procissão judaica. Havia um velho com uma perna da calça maior do que a outra e um terno que lhe cobria os braços. Um personagem do expressionismo alemão, e resolvemos segui-lo, enquanto ele desceu uma galeria que vendia roupas em geral muito feias e, em sua maioria, femininas. Ficamos desapontados quando descobrimos que ele queria apenas ir ao banheiro. Lembrei da senhora na esquina das Oficinas MC e ri por dentro.
FRISSON – SP – (7)
Apontei algumas fachadas horrorosas de edifícios no intuito explícito de deixar claro: venho para viver. Mas velada havia uma vontade quase súplice de que ela virasse de repente, dada a feiura desoladora daquelas fachadas, e dissesse: podemos achar um lugar mais bonito para nós. Não devemos velar tanto, concluí, ou devemos ao menos velar tudo. Uma fachada em especial, no centro pobre, me chamou atenção. De massa cinzenta, como um velho fumante, toda pichada, lembrava ternamente meu próprio coração, arrasado mas, pelo menos, de longo uso. Com relação a este edifício, você chegou a erguer a cabeça no que pensei “Grécia, Florença?”, mas limitou-se a sorrir. Tive a impressão de que um sorriso seria um bom espaço para se viver dentro dele. Pensei em seguida: com um lenço amarelo, de seda algodão viscose, preso a um prego naquela varanda, seria possível quem sabe ser feliz, ou pelo menos alegre.
FRISSON – SP – (8)
Ao deitarmos na mesma cama fiquei inquieto com dois sentimentos complementares, inimigos: sofrimento e esperança. Tocar ali era matar a esperança, e a esperança, ao contrário, era pela morte do sofrimento. De todo modo, fui inábil, falei demais, bebi. A esperança queria ganhar de qualquer jeito e por isso fez acordo com o sofrimento. Pegamos no sono de mãos dadas, acho que ela chegou a se deitar no meu peito. Posso ter sonhado. Seria um milagre. Mesmo assim não morremos, éramos já outros. Acordamos curiosos e assustados em saber quem éramos agora. Com o correr do dia, aceitamos nossos novos outros como se aceita um tio inconveniente que chega para se hospedar em nossa casa. Apesar de tudo, é um parente. Havia já a casa, mas lá estava também o tio.
FRISSON – SP – (9)
Ganho dela três livros:
um Pavese
um Andreiev
uma Llansol
Sinto como se eu fosse Andreiev, ela Llansol (porque no livro havia ainda por cima suas anotações, inclusive cortes de alguns trechos do original, com retoques, insights, teoremas) e Pavese fosse o filho da nossa fricção matizada por uma cor ainda inexistente. Um bebê fraquinho, sem leite, mas cheio de talento e reprovação. Ponho na cabeça que preciso começar por Llansol. É tudo muito agradável, mas terminal. Ela cita João da Cruz, Hadewijch da Antuérpia, Müntzer e o Mestre da Culpa. Imagino feições estranhas e fantasmagóricas para suas imagens. Concluo que Llansol não me faz bem. Uma forma também de ter essa mulher de cujo ventre saiu meu Pavese, nostro piccolo cesare. é gostando deste livro. Repito cem vezes para meu coração: eu gosto deste livro. Com a repetição, aceito: eu tenho essa mulher.
FRISSON – SP – (10)
Talvez eu não saiba mesmo explicar, leoa, porque me incomoda tanto o suicídio de Cesare Pavese. Sua carta contra os fofoqueiros, sua serena superioridade, sua privilegiada ausência de tudo. Talvez eu não saiba mesmo explicar e por isso talvez eu saiba que deveria de alguma forma estar aqui para poder tentar te explicar porque me incomoda tanto o suicídio (com soníferos!) de Cesare Pavese e mesmo assim olhando para o chão enquanto você que é sua imagem livre de mim finalmente apresenta os olhos imensos vitrais de igreja gótica e sua boca roxa de uma noite de vinho e os cabelos que você disse meu irmão não admite que eu pinte de outra cor que não seja loiro mas loiro resseca o cabelo e dá muito trabalho é preciso ir ao cabeleireiro e eu detesto cabeleireiros você viu só aquele casal a menina sentou e pediu que o menino esperasse enquanto ela pintava as unhas da mão você já viu alguma coisa parecida? Eu disse não mas eu diria qualquer coisa porque o acontecimento de uma imagem fere a face de deus e glorifica o homem então eu tentei fazer uma omelete dos ovos sobre os quais pisávamos tentando segurar nas pontas dos dedos as nossas frágeis expectativas e fiquei feliz porque ela era menor do que eu imaginava e me senti mais confiante porque ela comentou é bom ver a pessoa ao vivo porque existem detalhes que aumentam a gama de possibilidades de mistério de uma pessoa já que nos detalhes às vezes quase imperceptíveis do rosto estão as fugas e encontros com fantasmas que nos fazem chorar sem mesmo fechar os olhos e apertamos tenho certeza o coração ao sabermos a tragédia da vida e como bebemos e como andamos estupefatos acachapados com as chances de destruição e anulação de que somos todos capazes e não existe talvez vida em equipe amor sem etapas é preciso muito sentimento para rompermos a couraça, leoa, e muito mais cafuné para não pensarmos serão necessários quantos soníferos ou cartas pirateadas de ilhas longínquas para interrompermos essa gagueira ensandecida que nos une e em nosso sofrimento talvez possamos compreender o nosso nobre laço eu não posso aceitar infelizmente ou falar sobre os motivos pelos quais me incomoda tanto o suicídio de Cesare Pavese sua desistência histórica seu charme kamikaze e talvez eu nunca consiga e faça algumas vezes o papel de vitima do inominável mas oh cigana podemos falar o que quisermos e andarmos quilômetros quase em silêncio ou de braços dados porque não me importo em te oferecer o braço como se fosse a mulher protegida do casal. Importante controlar os ânimos.
FRISSON - SP - (11)
Cheguei e fizemos fora do combinado. Disse para meu coração: amém. Uma coceira pelo corpo me fez não querer esperar mais nada. Saí, impressionado com como havia batido forte a porta. Talvez Julia tenha acordado. Seria bom se acordasse a tempo. Não aconteceu. Saí. Você me mandou uma mensagem dizendo onde devo encontrá-lo? Respondi apenas só conheço onde fica o MASP, estarei ali no laguinho. Peguei no sono forçadamente, como quem espera um dilúvio sem teto. Gostei de estar desamparado. Adormeci imediatamente, como quem ouve o câncer. Em minutos, no entanto, em sobrevida, despertei num salto. Havia ao meu lado uma reunião de mendigos muito elegantes em torno de uma lata que fazia fogo. Conversavam animadamente, mas com semblantes sérios, o que me pareceu algo raro e incrível. Fiquei feliz que minha presença não os tenha incomodado, senti como se me oferecessem com os olhos uma ponta de cigarro. Aceitei mentalmente, e me afastei para o outro laguinho. Pensei o que você acharia quando me visse junto aos mendigos elegantes que riem falando sério. Pensei em Nietzsche, senti-me aliviado. Pobre Nietzsche, não teve a mesma sorte. Finalmente, na horizontal, vi você atravessando a rua. Fingi estar dormindo, mas, sem os mendigos em volta, a cena não fazia mais sentido. Senti-me excluído do convívio dos risos sérios. Você parecia apressada, sorria como um dos mendigos elegantes, seriamente. Senti-me excluído ao quadrado. Por isso voltei a dormir. Assim que me levantei, pretendi estar desnorteado. Uma infantilidade e uma limitação voluntárias. Queria pretender (ou seja, fazer ser o que não é) aquilo que já era. Assim que você chegou minhas palavras me pareceram ser eu estava fingindo que estava dormindo. Por que fiz isso, nunca saberei. Demoramos uma tarde para darmos finalmente as mãos. Na hora do sono, tive pesadelos. Você me deu a mão outra vez. Sua mão era mais quente que a minha e suava enquanto você dormia. Imaginei que tínhamos vários corações dentro do corpo, um deles na mão. Depois dormi melhor. Você dormiu de bruços e de lado, e disse que sonhou com pessoas cujos rostos iam ficando gradativamente pretos, até desaparecerem. Eu disse que deveria ter algo a ver com os sonhos do Kafka, que você estava lendo. Parecia a voz de uma outra pessoa que disse isso por mim. Discutimos por causa do pão e do queijo. Tive um prenúncio de forte amizade, com chuvas.
FRISSON – SP – (12)
No bar, choramos em muito pouco tempo. O que se dá nisso é que o corpo junta-se finalmente com a emoção e não se aguenta. E quando o corpo não se aguenta, é a primeira vez que vemos o corpo. Espantados com nossas graves diferenças (eu ando em linha reta até a beleza arruinando-a ou ao menos devendo-a em sangue - você contorna a beleza de modo a mantê-la intacta em seu mistério / eu dionísio - você apolo / você olhos grandes - eu pequeninos / narizes idem) planejamos intimamente uma guilhotina onde pudéssemos descansar por minutos as nossas cabeças.
FRISSON – SP – (13)
Sentamos numa praça, observando as pessoas em volta. Uma família espanhola, aparentemente mãe/avó/filhinho, estava à nossa frente, brincando com bonecos de super-heróis. Ficamos calados, como se nossos barulhos, inclusive os estomacais, pudessem afetar negativamente o desempenho dos atores. O filhinho distribuiu três bonecos. A avó seria o Batman, a mãe o Super-Homem, ele próprio o Homem-Aranha. Voavam com os bonecos como se fosse a nós perfeitamente plausível manter asas. Num dado momento, lutaram. A mãe disse ao filhinho hay que luchar, ao que ele respondeu em automatismo de coisa bruta luchar para que? Todos ficaram mudos e creio que nos olhamos, o menino inclusive virou-se para você. Tinha um rosto de mil anos. Não estamos, nós adultos, preparados para responder perguntas de crianças. As perguntas que fomos quando crianças tornaram-se nossa pele vaga, porque já não se fazem mais as perguntas às quais não é possível responder. A mãe começou a voar com seu boneco, o que deixou o filhinho pasmo, excitadíssimo. Na hora acrescentei que, se fôssemos namorados, estaríamos nos beijando, ou fazendo pequenos carinhos, e perderíamos a cena. Você concordou apenas depois, quando entendeu o que eu quis dizer. Por enquanto estamos soltos mas ainda não livres. Isto foi incluído posteriormente. Viver quase a sós atrai, pouco a pouco, os absolutamente sós. Isto também. Mantivemos um pouco mais de silêncio, como quem tira a roupa das horas. Pensei se estávamos realmente ali. Acho que sim, você disse sem mexer a boca.
10.4.12
"Bukowski em Copacabana"
Numa esquina qualquer dessa avenida que desaparece
para trás e para frente, em pleno desfile da falta de forma,
entre meninos sem pernas, pombos sem asas, macacões amarelo-cor-de-
cobra-venenosa anunciando - compro ouro, diamantes, a última sensação
batida podre ou amassada - em plena prolixa frase metropolitana,
entre padres e bandidos, os ombros encontrados de um travesti
e um menino retardado, quando é impossível deixar de
tornar-se aquele que vai ao seu lado, eu o vejo -
não não é um engano,
nem uma simples e mortal necessidade:
ele passa, justamente ele passa,
com sua camisa igualmente justa
sua barba aberta num leque
as covas da pele comida
os passos pesados de velho primata -
a humanidade perdida
seu fio de prumo
sacola magra jogada aos ombros,
um cigarro pendendo daquele sorriso sacana
de quem escuta o tempo inteiro
aos rugidos dos jaguares -
e quem sabe,
viverá para sempre.
Saído de uma taberna bombardeada no outro lado do mundo
ele passa com sua calma fervente -
regressará ao país da infância,
àquela de quem nunca disse palavra alguma,
ao mesmo quarto diminuto, para certificar-se de que já não existe -
pouco importa.
Ele passa
e nada o detém
e ele não cai -
alas! pela avenida em que escorre o mundo inteiro
pela beleza que já não precisa de agulhas
ele passa
luxuoso
ele passa
devagar desaparece
rastro de solidão no sonho da selva.
um texto de camila moura
para trás e para frente, em pleno desfile da falta de forma,
entre meninos sem pernas, pombos sem asas, macacões amarelo-cor-de-
cobra-venenosa anunciando - compro ouro, diamantes, a última sensação
batida podre ou amassada - em plena prolixa frase metropolitana,
entre padres e bandidos, os ombros encontrados de um travesti
e um menino retardado, quando é impossível deixar de
tornar-se aquele que vai ao seu lado, eu o vejo -
não não é um engano,
nem uma simples e mortal necessidade:
ele passa, justamente ele passa,
com sua camisa igualmente justa
sua barba aberta num leque
as covas da pele comida
os passos pesados de velho primata -
a humanidade perdida
seu fio de prumo
sacola magra jogada aos ombros,
um cigarro pendendo daquele sorriso sacana
de quem escuta o tempo inteiro
aos rugidos dos jaguares -
e quem sabe,
viverá para sempre.
Saído de uma taberna bombardeada no outro lado do mundo
ele passa com sua calma fervente -
regressará ao país da infância,
àquela de quem nunca disse palavra alguma,
ao mesmo quarto diminuto, para certificar-se de que já não existe -
pouco importa.
Ele passa
e nada o detém
e ele não cai -
alas! pela avenida em que escorre o mundo inteiro
pela beleza que já não precisa de agulhas
ele passa
luxuoso
ele passa
devagar desaparece
rastro de solidão no sonho da selva.
um texto de camila moura
5.4.12
“insônia do amor louco”
o precipício tem a matéria do teu gosto
suposto em fragmentos e más companhias
choro pela noite em gotas de petróleo
bom será colher com ternura as olheiras
por forçosa rebeldia contar as 48 horas
somos montanhas exploradas por mendigos
amigos dos cadáveres dos trapezistas
diga-me por que choras e farei cessar
mesmo que seja inadmissível farei cessar
nossos planetas miniaturas em chamas
eu darei água às tuas graminhas nascentes
e direi às tuas mil faces a singela boa-nova
evoluiremos os corpos de leão à criança
que enlouquecer é também regar o medo.
suposto em fragmentos e más companhias
choro pela noite em gotas de petróleo
bom será colher com ternura as olheiras
por forçosa rebeldia contar as 48 horas
somos montanhas exploradas por mendigos
amigos dos cadáveres dos trapezistas
diga-me por que choras e farei cessar
mesmo que seja inadmissível farei cessar
nossos planetas miniaturas em chamas
eu darei água às tuas graminhas nascentes
e direi às tuas mil faces a singela boa-nova
evoluiremos os corpos de leão à criança
que enlouquecer é também regar o medo.
3.4.12
"oh cigana"
você tem os órgãos faciais grandes
eu sou pequeno em minha grandeza
estamos na chuva mas repare como
ela já não pode mais molhar os nossos
pés porque estamos nos órgãos faciais
e oh e oh somos ciganos sem moradia
somos adeptos à curva do amor nobre
e finalmente o cigano encontra morada
neste poema sobre ti oh minha amada
as risadas de cinco níveis são padarias
a rua dos italianos em mim são restos
no zero que é por ora o nosso número
mas não se preocupe teremos narizes
pequenos e voláteis e chegarei no frio
cheirando a carambola e no encontro
apenas oferecerei minha mão macia
pretenderei puxar seu cabelo faremos
você ficar sem ar sufocada debaixo de
um travesseiro porque nossas plumas
serão a nossa única oh cigana guerra.
eu sou pequeno em minha grandeza
estamos na chuva mas repare como
ela já não pode mais molhar os nossos
pés porque estamos nos órgãos faciais
e oh e oh somos ciganos sem moradia
somos adeptos à curva do amor nobre
e finalmente o cigano encontra morada
neste poema sobre ti oh minha amada
as risadas de cinco níveis são padarias
a rua dos italianos em mim são restos
no zero que é por ora o nosso número
mas não se preocupe teremos narizes
pequenos e voláteis e chegarei no frio
cheirando a carambola e no encontro
apenas oferecerei minha mão macia
pretenderei puxar seu cabelo faremos
você ficar sem ar sufocada debaixo de
um travesseiro porque nossas plumas
serão a nossa única oh cigana guerra.
2.4.12
“não posso dizer a palavra”
você tem sempre mais vinho e mais cigarros
do que eu e eu fico pensando que isso talvez
seja um parâmetro do nosso não posso dizer a palavra
combinamos de não dizer a palavra
mas você ter sempre mais enquanto eu fico
aqui sugando guimbas usadas e lambendo bordas
de garrafas e escrevendo odes em sangue para ti é sinal
de alguma coisa de alguma saga mitológica
de algum desafio em busca do cálice sagrado mas você
é uma dama como poucas mexe nos cabelos
de modo que parece sempre uma pessoa nova e tem ainda
seus famosos três níveis de risada que eu busco analisar
com piadas infames porque no fundo sou um palhaço triste
e falamos sobre filosofia germânica mas meu deus
esses homens eram tão amargurados e falavam
sobre o estar-aí mas eles nunca estiveram de fato
em parte alguma meu não posso dizer a palavra
e nós estamos aqui exatamente aqui e não é justo
que eu chore feito um idiota murmurando por que não podemos
simplesmente nos não posso dizer nem mesmo o verbo
e ver o brilho num relance mágico e não é justo
que depois desse dramalhão de quinta eu ainda durma
no teu colo porque eu não quero dizer adeus eu quero dormir
para sempre no teu colo e quero que você embale
os meus pesadelos mais íntimos porque com sua longa e bela
mão magra eu posso enfrentá-los como um templário
e quero que você um dia escreva não para autômatos
de chapéu-coco mas para mim que não tenho ainda
máquina própria e diga num poema oh meu cigano
oh meu cavaleiro prateado e eu quero poder eu quero
poder desejar te **** porque quanto a isso estamos de acordo
que é possível e você tem razão isso não é **** é apenas
uma lágrima muito antiga
sobre uma cidade bombardeada por flores sem pétalas.
do que eu e eu fico pensando que isso talvez
seja um parâmetro do nosso não posso dizer a palavra
combinamos de não dizer a palavra
mas você ter sempre mais enquanto eu fico
aqui sugando guimbas usadas e lambendo bordas
de garrafas e escrevendo odes em sangue para ti é sinal
de alguma coisa de alguma saga mitológica
de algum desafio em busca do cálice sagrado mas você
é uma dama como poucas mexe nos cabelos
de modo que parece sempre uma pessoa nova e tem ainda
seus famosos três níveis de risada que eu busco analisar
com piadas infames porque no fundo sou um palhaço triste
e falamos sobre filosofia germânica mas meu deus
esses homens eram tão amargurados e falavam
sobre o estar-aí mas eles nunca estiveram de fato
em parte alguma meu não posso dizer a palavra
e nós estamos aqui exatamente aqui e não é justo
que eu chore feito um idiota murmurando por que não podemos
simplesmente nos não posso dizer nem mesmo o verbo
e ver o brilho num relance mágico e não é justo
que depois desse dramalhão de quinta eu ainda durma
no teu colo porque eu não quero dizer adeus eu quero dormir
para sempre no teu colo e quero que você embale
os meus pesadelos mais íntimos porque com sua longa e bela
mão magra eu posso enfrentá-los como um templário
e quero que você um dia escreva não para autômatos
de chapéu-coco mas para mim que não tenho ainda
máquina própria e diga num poema oh meu cigano
oh meu cavaleiro prateado e eu quero poder eu quero
poder desejar te **** porque quanto a isso estamos de acordo
que é possível e você tem razão isso não é **** é apenas
uma lágrima muito antiga
sobre uma cidade bombardeada por flores sem pétalas.
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