Peço um copo. Não há nada no copo. Encho o copo. Não há nada no copo. Para onde foge a poesia quando falha a confiança? Tremer diante das baionetas me levou ao humilhante detalhe: suar frio quando se apressa o cadafalso. Por favor, mais um, mas não há mais o que encher. A máscara taciturna não suportou vasculhar a alcova de Rimbaud. Um poeta não precisa ser um homem. Mas um homem que deixa de ser homem jamais poderá se manter poeta. Um poeta precisa das pernas e Rimbaud é prova disso, que tanta falta sentiu de uma, quando precisava mais do que nunca seguir andando. Resta-nos cessar toda a música, inaugurar sem pena o canto funesto. Mas sobra este cigarro pendurado como um fígado cinzento entre os dentes. Lá fora vejo pessoas carregando coisas. Não, acontece o contrário. São carros, motos, a ponta de uma faca. Mas apenas dentro de mim, enquanto pendem os cachos de minha tristeza premonitória diante da testa quente, varam as ruas caminhões me perfurando a nuca. Muito mal vai a situação na rádio, dizem que minha voz envelheceu e não condiz com meus “trejeitos ciganos”. As coisas do coração, os desvios da paz truculenta, tudo paralisado, diante do iceberg noturno. Acabou-se a voz. Mais um, por obséquio. Quando eu era um rapaz... Já basta disso! Sinto que nunca me senti tão jovem, assim desnorteado – será isso uma corcunda ou a mochila nas costas? Resta fazer jus ao colete milimétrico, à paz convulsiva que explode feito bomba, deixar cair outro cacho e pedir mais um copo. A cor dentro do copo, esta que busquei. Frente à face efetua-se a brincadeira perigosa, a torre de vidro que em breve não suportará o peso criado para enobrecer o talento. Resta embaralhar palavras como aqueles macaquinhos de caixa que retiram papéis da sorte. Lembro-me bem dos olhos dos animais de circo. Um copo se quebra pelo chão e de repente reparo que olham para mim, olham para mim sempre do mesmo jeito: “Por favor, retirem esse homem daqui”. Mas olhar é senha para o precipício, os ossos precisam semear a dança da morte. Sempre a minha maior habilidade: revelar a tristeza por trás do que faz rir. Mais um, traga dois de uma vez – derrubarei um terceiro. Estamos aqui, afinal, para isso: derrubar e trazer mais. Sou um dos que trazem de muito longe, preciso do cigarro preso como faísca entre os lábios. Um senhor bondoso se inclina: lembra meu pai. “Filho”, ele diz, “não acha que já foi demais?” Alguém suspende minha cabeça e só penso no orgulho da barreira a ser rompida. De qualquer modo, falta-me estômago, é preciso dar um basta nisso, companheiro traga mais uma. Sei que agora ela fala sozinha diante de um muro, com as roupas íntimas à mostra. E quem escutará seus gemidos inconstantes quando minha voz se apagar? Criei os embusteiros, os bêbados desequilibrados com poéticas justificativas. Tenho uma convicção sem culpa. Trouxe a morte mais uma vez para o colo, derreti os candelabros com meu sopro vulcânico. Verdade seja dita: temo que fui traído. E não paro de pensar no bigode, na boca de tartaruga de Igor Stravinsky. Sim, mas é claro, pode me trazer qualquer coisa. Olham-me como um fantasma: é preciso arregalar os olhos para ficar na história. Finalmente lembro que falta pouco para atingir o ápice. Os amigos, aqueles malditos materialistas de Oxford. É da minha alma que se alimentam. E eu, de que me alimento? Peça mais uma, faça o favor. Novamente o insistente senhor se aproxima: “Está querendo se matar, meu filho?” Explico a ele, reitero que sou de uma força vulcânica, que fui traído, sim, mas não se humilha jamais aquele que é humilde por natureza. Agora estou diante da natureza, não há quem possa me questionar. Dou beijos como dou murros, eis a frase verdadeira. As mulheres não entendem isso, as mulheres, as frases que amamos. Realmente, dê-me a dose de qualquer coisa, baterei o recorde, criarei meus filhos. Sei que preferem os delicados de muitas facetas, sei que sou o que não seria “para a família”. Com mais um drinque há gente falando meu nome, dizendo sobre poemas que não escrevi. Mulheres se derretem, estudam meu teatro, me defendem injustamente.
Talvez não seja assim tão mau. Sim, é terrível. Vacilo em pequenos períodos de umidade casta, mal posso olhar a morte nos olhos, ela não me deixa, aquela mulher gorda ali no canto, com feições de Gales, vermelha, aqueles peitos enormes, unidos e saltando para fora como um gigantesco sol, dois, aos quais não tenho mais direito, estou distante como um verme, distante e indissociável, eu o que sabe, principalmente agora, cheio de uísque, olho para os pobres coitados – estão tão contentes, derrotados – que sabem menos ainda que eu, pobres corações dentro desse vácuo entre os homens, e de repente dou por mim: estou no bar, esse é o meu purgatório, devo cumpri-lo, trata-se da passagem para o outro lado, mas num minuto estou aos gritos, em pé sobre a mesa, tentando arcar, pobre de mim, com o mito de William Shakespeare, mas não se deve colocar o demônio no colo, disso eu não sabia até chegar aqui.
Um sujeito gordo com gravata borboleta se aproxima de mim. Sinto raiva, ele se parece com o que me tornei. Sem nenhum escrúpulo ele chega junto, se apresenta como O MAITRE, quer levar dali meus copos, meus troféus magníficos, a essa altura, meu único apego. Obviamente não deixo que ele o faça. Solto em cima dele os meus cachorros, o retrato do cachorro quando velho, puxo o gordo pelo colarinho ensebado, cuspo na cara dele e digo: “Meu amigo, você é capaz de contar quantos copos eu tenho aqui na mesa?”. Aparentemente ele se retrai, nunca viu nada parecido. Olha para mim com os olhos estalados, com uma calma inadequada, imprópria para o momento. “Meu senhor, Senhor Thomas, vejo aqui 15 copos, o senhor já quebrou três, o senhor precisa ir mais leve, se acalmar um pouco, tome um copo d’água, vamos afrouxar esse colarinho, por favor, o senhor é um escritor reconhecido e temos muita satisfação em tê-lo aqui no bar, mas, por Deus, controle-se”.
Aquilo me atingiu feito uma pedrada. Aquele homem, não de todo deselegante, mas muito suado, pedia que eu afrouxasse o meu colarinho e, vejam bem, ele mesmo o fez por mim. Me tratou como criança quando contou os copos – quantos eram? –, 15 copos, então me fez de filho quando disse “tome um copo d’água, controle-se por favor” e, finalmente, me tratou como poeta dizendo que eu era reconhecido e deveria por isso me cuidar. Vejam bem, um verdadeiro nome da cultura ocidental, ele chegou a dizer, e até mesmo convocou Deus, aquele asno, um assunto no qual eu já nem pensava mais... É fato, penso cada vez menos. Pensar é o que faz sofrer e, ao mesmo tempo, impede que eu me suicide. Suando demais... Um papel, preciso imediatamente de um papel! Dê-me aqui um guardanapo!
Oh pure worm of us, do not delight With the fear of our souls, please don’t fight. Give us back, in fragments, the gold That once has been the ground for us to hoe... “Senhor Thomas, Senhor Thomas, o senhor está bem, Senhor Thomas?” Gritos. Telefonemas. Jornais. Ambulâncias. Autópsia. Hemorragia alcoólica. Eternidade, enfim.
já te dei o que podia, não o bastante pra você lembrar de mim, fora o livro que perdeu pra Colasanti, mas eu juro que aqui não farei mais nenhuma métrica, porque, 2009, foi cansativo desde o começo, com tuas palavras românticas em bolhas, com tua edição de livro, tua calma fajuta, para antecipar objeções tardias dependentes da válvula que começa a apresentar as falhas de uma sigla preciosa, um instinto submerso, que me faz dizer “EU TE NOMEIO, 2009” como o ano em que os poemas não sairão mais retos e secos contra a página vadia.
será a coisa mais vaga, não charmosa, que subirá pelas paredes, verde musgo, e estaremos em Baden, São Petersburgo, jogando dados contra nossas mulheres.
te verei arder pelo beco insólito da pele, te darei de mamar, talvez, farei um muro, e te levantarei como um bebê natimorto.
as mulheres terão mais o que fazer e seremos nós a boca do precipício.
estarei atento desta vez, quase brega, não tamparei os ouvidos à boca maior.
mas nunca mais estarei contigo, 2009, já que teus fogos só reafirmam aspas, e a solidão hoje é nossa, e de mais ninguém
existe, é claro, aquela cor cinza, o frio inigualável de Petersburgo. funcionários reles, paredes de musgo somatizam o fedor dos dentes podres. o salário pequeno, os feitos seguros, aos quais nos dedicamos sem comer. nós todos viemos de ti, e roubados somos diariamente e nem sabemos quanto temos da nossa própria loucura, se o inverno será frio dento de casa, se os ladrões tomarão a cama doentia. os espelhos serão ventosas coniventes, estaremos no fim doutra noite de vodca e assobiaremos canções folclóricas, rindo, porque, felizes, não sabemos que hienas rondam e falam e dizem elogios básicos, para depois nos arrancarem a imagem do que nem sabemos que somos e nem quereríamos saber, não fosse este frio que faz por dentro da casa às escuras quando gritamos vossa excelência! – perdoe-nos por sermos nossa história.