29.12.09

"com amor, para meu pai"

no fundo, meu pai, te espero

como o cometa sexagenário

que passa enquanto dormimos

e já nem temos mais os sonhos,

sobrou apenas o suor doente

porque no fundo todos nós

esperamos o cometa tardio,

enquanto, cá na terra, os olhos

se desencontram sob a moral

das opiniões sublimes, e o nó

já não pode mais ser desfeito,

teremos que, sem papel, virar

as páginas do nosso silêncio,

abandonar o resto da ternura,

que dava cor às fotos, água

à sede colorida, ao pensarmos

no quanto ainda nos faltava,

com ansiedade nos largávamos

por entre os becos da fome rara

e avançávamos restritos como

óvnis desalentados, sem rumo

entre extraterrestres perenes,

como nós dois, sem asas, e nem

a boca preciosa dos impropérios,

nem a língua que, com delicadeza,
remediava as feridas inevitáveis

que deveríamos ter com carinho,

mas que nos matam indiferentes.

20.12.09

"poema se esvaindo em sangue"

miseravelmente, dessa vez escreverei em vermelho,

miseravelmente, cavalheiros, pois que me faltam

dentes para a poesia, rarefeitas ficaram as rimas

e os olhos, mitos de cetim, justificam as falhas,

que desabrocham no ar do raciocínio amortizado.

estamos nas ruas ao menos, mas a chuva precipita

o fim dos nossos pulmões, a tísica que, seca, avança,

o erro de toda a espécie, e vamos soltos, sem fígado,

colher as flores tardias para uma epopéia perigosa.

somos a reprise de uma antiga estação, mas as roupas

são coloridas, as bandanas franciscanas desempenham

soluções escrupulosas para a completa falta de espaço.

as caras quebradas, a boca de gelo, as curvas fáceis

desafiam o tempo e a saúde, estamos lilases na chuva,

com nossas pernas em transe, à espera do ciclone

prometido por Camus, e quem dera pudesse o Kundera

ver a margem tensa do deslize, tomar o caldo mágico

da fome, quando faltarem as palavras, quando a asma

tomar o corpo, então nós assobiaremos a todo volume,

e pálidos seguiremos com essa tristeza em flor de lótus,

e mais uma vez as senhoras apoiarão nas janelas o busto

com seus lenços na direção dos últimos sobreviventes

que vieram de longe e cuja morte trará a terceira guerra.

"Os últimos instantes de Dylan Thomas"


Peço um copo. Não há nada no copo. Encho o copo. Não há nada no copo. Para onde foge a poesia quando falha a confiança? Tremer diante das baionetas me levou ao humilhante detalhe: suar frio quando se apressa o cadafalso. Por favor, mais um, mas não há mais o que encher. A máscara taciturna não suportou vasculhar a alcova de Rimbaud. Um poeta não precisa ser um homem. Mas um homem que deixa de ser homem jamais poderá se manter poeta. Um poeta precisa das pernas e Rimbaud é prova disso, que tanta falta sentiu de uma, quando precisava mais do que nunca seguir andando. Resta-nos cessar toda a música, inaugurar sem pena o canto funesto. Mas sobra este cigarro pendurado como um fígado cinzento entre os dentes. Lá fora vejo pessoas carregando coisas. Não, acontece o contrário. São carros, motos, a ponta de uma faca. Mas apenas dentro de mim, enquanto pendem os cachos de minha tristeza premonitória diante da testa quente, varam as ruas caminhões me perfurando a nuca. Muito mal vai a situação na rádio, dizem que minha voz envelheceu e não condiz com meus “trejeitos ciganos”. As coisas do coração, os desvios da paz truculenta, tudo paralisado, diante do iceberg noturno. Acabou-se a voz. Mais um, por obséquio. Quando eu era um rapaz... Já basta disso! Sinto que nunca me senti tão jovem, assim desnorteado – será isso uma corcunda ou a mochila nas costas? Resta fazer jus ao colete milimétrico, à paz convulsiva que explode feito bomba, deixar cair outro cacho e pedir mais um copo. A cor dentro do copo, esta que busquei. Frente à face efetua-se a brincadeira perigosa, a torre de vidro que em breve não suportará o peso criado para enobrecer o talento. Resta embaralhar palavras como aqueles macaquinhos de caixa que retiram papéis da sorte. Lembro-me bem dos olhos dos animais de circo. Um copo se quebra pelo chão e de repente reparo que olham para mim, olham para mim sempre do mesmo jeito: “Por favor, retirem esse homem daqui”. Mas olhar é senha para o precipício, os ossos precisam semear a dança da morte. Sempre a minha maior habilidade: revelar a tristeza por trás do que faz rir. Mais um, traga dois de uma vez – derrubarei um terceiro. Estamos aqui, afinal, para isso: derrubar e trazer mais. Sou um dos que trazem de muito longe, preciso do cigarro preso como faísca entre os lábios. Um senhor bondoso se inclina: lembra meu pai. “Filho”, ele diz, “não acha que já foi demais?” Alguém suspende minha cabeça e só penso no orgulho da barreira a ser rompida. De qualquer modo, falta-me estômago, é preciso dar um basta nisso, companheiro traga mais uma. Sei que agora ela fala sozinha diante de um muro, com as roupas íntimas à mostra. E quem escutará seus gemidos inconstantes quando minha voz se apagar? Criei os embusteiros, os bêbados desequilibrados com poéticas justificativas. Tenho uma convicção sem culpa. Trouxe a morte mais uma vez para o colo, derreti os candelabros com meu sopro vulcânico. Verdade seja dita: temo que fui traído. E não paro de pensar no bigode, na boca de tartaruga de Igor Stravinsky. Sim, mas é claro, pode me trazer qualquer coisa. Olham-me como um fantasma: é preciso arregalar os olhos para ficar na história. Finalmente lembro que falta pouco para atingir o ápice. Os amigos, aqueles malditos materialistas de Oxford. É da minha alma que se alimentam. E eu, de que me alimento? Peça mais uma, faça o favor. Novamente o insistente senhor se aproxima: “Está querendo se matar, meu filho?” Explico a ele, reitero que sou de uma força vulcânica, que fui traído, sim, mas não se humilha jamais aquele que é humilde por natureza. Agora estou diante da natureza, não há quem possa me questionar. Dou beijos como dou murros, eis a frase verdadeira. As mulheres não entendem isso, as mulheres, as frases que amamos. Realmente, dê-me a dose de qualquer coisa, baterei o recorde, criarei meus filhos. Sei que preferem os delicados de muitas facetas, sei que sou o que não seria “para a família”. Com mais um drinque há gente falando meu nome, dizendo sobre poemas que não escrevi. Mulheres se derretem, estudam meu teatro, me defendem injustamente.


Talvez não seja assim tão mau. Sim, é terrível. Vacilo em pequenos períodos de umidade casta, mal posso olhar a morte nos olhos, ela não me deixa, aquela mulher gorda ali no canto, com feições de Gales, vermelha, aqueles peitos enormes, unidos e saltando para fora como um gigantesco sol, dois, aos quais não tenho mais direito, estou distante como um verme, distante e indissociável, eu o que sabe, principalmente agora, cheio de uísque, olho para os pobres coitados – estão tão contentes, derrotados – que sabem menos ainda que eu, pobres corações dentro desse vácuo entre os homens, e de repente dou por mim: estou no bar, esse é o meu purgatório, devo cumpri-lo, trata-se da passagem para o outro lado, mas num minuto estou aos gritos, em pé sobre a mesa, tentando arcar, pobre de mim, com o mito de William Shakespeare, mas não se deve colocar o demônio no colo, disso eu não sabia até chegar aqui.


Um sujeito gordo com gravata borboleta se aproxima de mim. Sinto raiva, ele se parece com o que me tornei. Sem nenhum escrúpulo ele chega junto, se apresenta como O MAITRE, quer levar dali meus copos, meus troféus magníficos, a essa altura, meu único apego. Obviamente não deixo que ele o faça. Solto em cima dele os meus cachorros, o retrato do cachorro quando velho, puxo o gordo pelo colarinho ensebado, cuspo na cara dele e digo: “Meu amigo, você é capaz de contar quantos copos eu tenho aqui na mesa?”. Aparentemente ele se retrai, nunca viu nada parecido. Olha para mim com os olhos estalados, com uma calma inadequada, imprópria para o momento. “Meu senhor, Senhor Thomas, vejo aqui 15 copos, o senhor já quebrou três, o senhor precisa ir mais leve, se acalmar um pouco, tome um copo d’água, vamos afrouxar esse colarinho, por favor, o senhor é um escritor reconhecido e temos muita satisfação em tê-lo aqui no bar, mas, por Deus, controle-se”.


Aquilo me atingiu feito uma pedrada. Aquele homem, não de todo deselegante, mas muito suado, pedia que eu afrouxasse o meu colarinho e, vejam bem, ele mesmo o fez por mim. Me tratou como criança quando contou os copos – quantos eram? –, 15 copos, então me fez de filho quando disse “tome um copo d’água, controle-se por favor” e, finalmente, me tratou como poeta dizendo que eu era reconhecido e deveria por isso me cuidar. Vejam bem, um verdadeiro nome da cultura ocidental, ele chegou a dizer, e até mesmo convocou Deus, aquele asno, um assunto no qual eu já nem pensava mais... É fato, penso cada vez menos. Pensar é o que faz sofrer e, ao mesmo tempo, impede que eu me suicide. Suando demais... Um papel, preciso imediatamente de um papel! Dê-me aqui um guardanapo!


Oh pure worm of us, do not delight
With the fear of our souls, please don’t fight.
Give us back, in fragments, the gold
That once has been the ground for us to hoe...

“Senhor Thomas, Senhor Thomas, o senhor está bem, Senhor Thomas?” Gritos. Telefonemas. Jornais. Ambulâncias. Autópsia. Hemorragia alcoólica. Eternidade, enfim.

14.12.09

"walter franco"


foi com muita relutância que cheguei até aqui,

porque gosto de ti, então resolvi me decidir

a deixar coisas de lado em favor de outras,

porque li uma carta em que Paulo Leminski,

o grande Paulo Leminski, judoca e ilusionista,

vociferava, na carta ele falava muito mal de ti,

mas via-se que algo nele havia sido destruído,

e via-se também que isso tinha a ver com amor,

o amor que ele tinha por você e o amor morto,

porque ele falava que você era isso e aquilo,

eu nem decorei as palavras, mas eram de morte,

e eu pensei, meu deus, agora eu preciso escolher,

e eu escolhi você, meu caro, o que é alienado

e fala sobre a doçura dos elefantes e o lindo blue.

eu escolhi você a Paulo Leminski e isso doeu,

foi como se estivesse abandonando um braço

pela janela do trem, mas adeus Paulo Leminski,

eu disse a mim mesmo, pois de que vale a poesia,

se vivemos fora dela e, fora dela, nos matamos?

"canção para Roberto Piva"

parece que recolheram, a pau e pedra, os amigos pederastas,

os barbudos que povoam os mictórios atômicos, estilhaçados

ficaram os versos, continuam encostados na parede, a solidão

permanece nua, amarrada ao poste, e Piero della Francesca

não pode mais dar o abraço plurissexual, o apito disentérico

das fábricas se tornou aquário desordenado da imaginação.


te vejo tão sério na página do jornal marrom, entre as grades

de bambu, dizendo: NÃO SUPORTO SÃO PAULO, e rumo

à extinção da luz mesclamos vozes barbitúricas, e os bolsos

escancarados da mente provocam os anjos de enxofre, e das

janelas do crânio observamos o corpo suicida de Modigliani,

já Garcia Lorca penteia pela última vez o crânio martirizado

enquanto a noite varia, as estátuas doentes, com conjuntivite

borram a nesga preciosa por onde escaparemos feridos, nunca

mortos, e nos arrastaremos satisfeitos na paisagem de morfina.

13.12.09

"2009"

não quero mais saber de ti 2009.

já te dei o que podia, não o bastante
pra você lembrar de mim, fora o livro
que perdeu pra Colasanti, mas eu juro
que aqui não farei mais nenhuma métrica,
porque, 2009, foi cansativo desde o começo,
com tuas palavras românticas em bolhas,
com tua edição de livro, tua calma fajuta,
para antecipar objeções tardias dependentes
da válvula que começa a apresentar as falhas
de uma sigla preciosa, um instinto submerso,
que me faz dizer “EU TE NOMEIO, 2009”
como o ano em que os poemas não sairão
mais retos e secos contra a página vadia.

será a coisa mais vaga, não charmosa,
que subirá pelas paredes, verde musgo,
e estaremos em Baden, São Petersburgo,
jogando dados contra nossas mulheres.

te verei arder pelo beco insólito da pele,
te darei de mamar, talvez, farei um muro,
e te levantarei como um bebê natimorto.

as mulheres terão mais o que fazer
e seremos nós a boca do precipício.

estarei atento desta vez, quase brega,
não tamparei os ouvidos à boca maior.

mas nunca mais estarei contigo, 2009,
já que teus fogos só reafirmam aspas,
e a solidão hoje é nossa, e de mais ninguém

10.12.09

"elegia ao capote de gogol"




existe, é claro, aquela cor cinza,
o frio inigualável de Petersburgo.
funcionários reles, paredes de musgo
somatizam o fedor dos dentes podres.
o salário pequeno, os feitos seguros,
aos quais nos dedicamos sem comer.
nós todos viemos de ti, e roubados
somos diariamente e nem sabemos
quanto temos da nossa própria loucura,
se o inverno será frio dento de casa,
se os ladrões tomarão a cama doentia.
os espelhos serão ventosas coniventes,
estaremos no fim doutra noite de vodca
e assobiaremos canções folclóricas, rindo,
porque, felizes, não sabemos que hienas
rondam e falam e dizem elogios básicos,
para depois nos arrancarem a imagem
do que nem sabemos que somos e nem
quereríamos saber, não fosse este frio
que faz por dentro da casa às escuras
quando gritamos vossa excelência! –
perdoe-nos por sermos nossa história.

9.12.09

"the fool on the hill"

de repente tudo pára e me pergunto:

“o que eu deveria me perguntar?”

as coisas passam rápido para o corpo

mas a cabeça pesa no arraste lento

da hora que passa rápido pela pele,

e é estar sentado diante da chuva

para se pegar perguntando o que

afinal se deve perguntar quando há

essa contradição violenta, tão leve,

do corpo que supera o cérebro e se

desmancha leve dentro de um fundo

comum a ambos e eu, nem cérebro

nem corpo, espero a chuva passar

como se aquilo fosse uma grande

revelação quando é apenas tédio,

essa rica, antiga mania de separação.

"chuva"

a felicidade tem

esse lado ruim:

quando acaba

a gente fica

triste.

7.12.09

"taís"




com a barba vermelha banhada em sangue,

dirijo-me à gruta da tua vontade liquefeita.

os olhos já não esperam a carne do vacilo,

o corpo treme, mas as mãos, enfim, unidas

massacram com delicadeza tua pele úmida.

tento falar das coisas do amor, mas tu fechas

com tua mão minha boca e exiges um pouco

do veneno cotidiano que nos salva e arrasa

as paredes do tédio diário, e nós estamos ali,

nos banheiros apertados, agarrados à volúpia

que não exige palavra, mas sim o desperdício

com o qual faremos a comunhão das espécies

e pularemos etapas, nos graduaremos ciganos,

não precisaremos talvez mais ter que começar

os poemas com as barbas banhadas em sangue.

estaremos tortos enfim, para sempre esgotados,

e nosso sorriso satisfeito calará todos os poetas.