22.5.08

“Poema”

Um dia ou dois em frente ao poema. Um dia ou dois de negação e paz. Esquecer o poema, jogá-lo sob a carne das idéias. Para sonhá-lo durante as noites sem sono. Não tocá-lo! Vê-lo negro em capuz de prata, a foice longa, a face ossuda, se aproximando lento, arrastando tudo.

Mas ele continuará ali, “a superfície intata”, eu não diria exatamente sorrindo, ele quer te provocar, brincar com a tua paciência, ele quer manchar tua glória, deixar-te fraco, à mercê.

Não te zangues, deixa-o quieto, adula-o se puderes, mas tenhas sempre uma faca à mão.

O poema é afirmação de vida, mostra a vida equivalente à morte. Portanto, observe bem este poema ainda seminu, o lençol sobre as partes, o centro em sangue palpitante, a vergonha rarefeita, e por um dia ou dois veja, observe como dele não vem nada, como é surdo de silêncio o que palpita no cerne exato, pois é puro estado de passagem, a frieza do destino dilacerada em mar aberto.

Jamais será teu ou de qualquer um, por sua essência de promiscuidade e rebelião. Deve ir com qualquer um, cigano, um cigarro na ponta dos lábios, sempre o capuz de prata cobrindo seu verdadeiro mandante. Provavelmente sob chuva fina dessas que nos fazem pensar em filhos. Mas ele teve o ventre arrancado ao nascer, o poema, e ficará olhando, estripado, esperando que o tempo o cubra de terra.

E a chuva passará, haverá decerto algumas escoriações, alguns pássaros mortos cairão das árvores, haverá talvez uma súplica tardia, um tremor pneumônico, quanta tristeza haverá quando o derem como falecido?

Engraçado no fundo não ver o rosto do poema, mas enchê-lo com pás da nossa própria substância, tão certos de sua passagem mítica, e o medo que nos causa, um dia ou dois em frente ao poema, negar tudo e recolher para ficar em paz com o ritmo caótico dessa alegoria em movimento.

Portanto, não esperar dele o que seria possível agarrar com as próprias mãos. Ele é o bobo da corte, seu sexo híbrido, sua risada sórdida, vazante de vinho tinto, ervas e papoulas as correntes de Adão, as costas de vidro e as mentes venezianas, o rosto de ferro. Ele que não será amor, que não será afeto, e quem der a mão o levará, ele que é fácil e injeta nas veias químicas heterodoxas.

Pobre poema, seminu, incompleto, quase roxo de frio, sem poder olhar para os lados de tanto medo, porque antes era pântano, agora é seca, adquire-se dia-a-dia a riqueza frágil dos homens, todos prestes a se matar, e não existem mais espécies, vocês já viram formigas brigarem?

Quando quiser parar me avise, poema, e deixe-me em paz por mais alguns instantes, apenas olhando de fora para dentro, tal que até gosto dessas vírgulas pretensiosas, mas ainda te vejo mistificado e cansado com o peso, a terra dos séculos pobres demais para nós dois.

Nenhum comentário: