31.7.07
"jogo dos sete erros"
1 - foto de Helmut Newton (Berlim, 1920 - Los Angeles, 2004)
2 - "As meninas", de Diego Velásquez (1656, óleo, 318x276cm)
"bergman"
mesmo que momentâneo,
da cientificidade do sentimento,
de tudo que for felicidade e tristeza.
felizes e tristes, cal de um tempo surdo.
recorremos sempre aos mesmos temas:
corações subjugados, almas em sangue.
e por ternura não fomos além da redundância.
a tarefa difícil de por um fim
a todos os temas de felicidade e tristeza:
obrigado, consciência, já cumpriu seu dever.
cabe a nós talvez
o sacrifício da juventude que ainda rasteja,
talvez o envelhecimento precoce da alma,
para sentir a leveza do contínuo renovável.
cabe a nós, por fim,
dar fim aos precipícios e ritos de passagem,
aos improváveis suicídios, às ilhas de ópio,
para dar início aos temas sem reticências.
26.7.07
"pretensioso"
um porto para os sorrisos incontidos,
alguma boca que ame roxa – e que trema.
é preciso também algum poema.
alguma vodka no canto do armário,
algumas voltas antes de achar o início.
é preciso algum desperdício.
compactuar com flores mofadas,
usar como telefone a orelha do tempo.
é preciso ainda estar atento.
como alguém que esbarra na eternidade
e reconhece as cinco fases de uma tragédia.
é preciso que a dúvida esteja certa.
um parapeito seguro para o suicida,
um choro incontido por se ter certeza.
é preciso recuperar o que se fecha.
e talvez a solidão do grito mais forte
exorcize o ato puro que nos condena.
"a praia do futuro"
24.7.07
"gene"
como se trata o corpo da mulher.
para os homens, guerras e máquinas:
que morram os homens como quiserem.
o poema é todo ele fêmea escachada.
jamais diga algo de que ele se lembre
e quando ele gritar – e ele vai gritar –
cale-se, não revide, sorria se possível.
a nós cabe apenas o rebolar do poema,
enquanto ele escapa de nós outra vez.
talvez por desespero ou pura vaidade –
e aos criminosos será o fim da poesia.
massageie sua pele, cheire seus pêlos.
depois observe como o poema dorme,
os olhos trêmulos, a face tranqüila.
então será possível ouvir seu coração.
finalmente, acordar o poema,
acordá-lo com um susto bom.
lamber, massagear, mordiscar
o clitóris do poema ainda sonolento,
até deixar a língua do poema gelada
e fazê-lo gozar aos prantos,
como se fosse morrer de prazer.
22.7.07
"buarqueana" ou "a mentira mais nova"
que brota
da boca pequena dos homens
e morre
no pus que a ferida dissolve
e foge
do bem que nos gera o lamento
há tempo
de amor já que é tempo de sono
eu sonho
com as notas de um hino fantasma
que engasga
meu peito toda vez que me esqueço
esqueço
e cada vez tenho menos sonhos
medonhos
em becos de sífilis e casas de ópio
um gole
de cana que te pago mais tarde
Buarque
escuta a mentira mais nova.
19.7.07
"pequena carta para saudade forte"
De onde vem a idéia do refúgio? Quer se esquentar? Chegue mais perto. Não toque! Melhor primeiro dividir os pedaços da carne. Espere um pouco antes de lembrar dos mínimos ossos torácicos daquele coelho com batatas, com batatas? Mais importante que responder é perguntar, mas isso na época de Godard. Onde está Godard? Pensando na guerra. “Mas de quem os aviões não explodem todos os dias?” Que linda frase, minha amiga. Posso te chamar assim, espero. Que linda frase, irmã do meu destino. Uma frase sem condenação, uma frase cotidiana, que te traz como anúncio, uma frase comunitária, completa, já me sinto mais próximo. Não! Ainda não toco. Também não fujo. Não faço nada. Não precisamos fazer nada para estarmos juntos. Precisamos apenas de um labirinto e um enigma. Planando. Sim, posso sentir o vento no tórax. Pobre coelho despedaçado, de mínimos ossos torácicos. Ainda nos veremos, eu sei, espero. Mas quando nos virmos de novo, veremos o quê?
17.7.07
"Discoteca"
O que ocorre é que pelos pés imagino um mundo melhor, mais bem definido. Uma unha encravada, um coração partido. Um dedão esfolado, tempo demais à beira do abismo. Duas unhas descascadas, um amor descuidado. Unhas bem pintadas e polidas, traição ao marido. Unhas lisas, bem feitas, mas sem tinta, tentativa de rever os pecados. Pés de dedos finos e esbranquiçados, com canelas mortas de pele quebradiça, cocaína em frente a um aquário com um peixe morto de fome. Calcanhares... Bom, nesse caso o apaixonado sou eu.
Mas hoje, quando saí de casa, o dia estava dublado, de uma dublagem iraniana numa repetição contínua de movimentos desesperados. Talvez fosse uma danceteria, onde os pés comprovam que os corações enlouqueceram. Sofro do que chamo de Síndrome dos Sintomas Incorporados. De fato é mais difícil ser triste impunemente quando há uma criança desnutrida contraindo cólera na Faixa de Gaza.
"Jade"
menina franzina
da perna grossa,
que sabe voar.
sorriso de dentes
abertos no meio,
que belo sorriso!
feito uma vírgula
e sobe no pódio,
salta-me o verbo.
no ar são os olhos
da falta de afeto,
do povo que aplaude.
feito prenúncio,
feito pedra da China
você desce até nós,
Jade Barbosa.
que teve a mãe morta,
assim como eu tive,
aos nove de idade.
menina-borracha,
chora por mim,
recebe a medalha,
porque já não posso,
não sei mais chorar.
"algo"
você está sozinho,
sozinho no mundo,
você está preso,
solto no mundo,
preso às coisas,
às coisas do mundo,
tão longe do mundo,
quanto a isso
não há dúvida,
que é muito cedo,
quanto a isso
não se preocupe,
sozinho sempre,
sozinho no mundo,
veja bem,
mas não tão sozinho,
sozinho só dentro
dos olhos de alguns
no mundo sozinho,
só em si mesmo,
e dentro dos olhos:
já é algo.
12.7.07
"procurado vivo ou morto"
da contínua fricção imune entre os corpos,
talvez tivesse ao menos curado as mágoas,
se em vez de pouco tivéssemos entregue nada,
talvez se não tivéssemos cedido um milímetro,
talvez se a dita “descoberta ímpar” não fosse
aquela a qual chegamos aos pedaços que restam
da fricção temente à deificação incerta,
por preguiça do mesmo quarto de estátuas,
da próxima página, do mau-hálito matinal,
discriminados todos por beijos de olhos abertos,
e se ao menos não tivéssemos chegado tão perto
e se não tivesse de fato sido a pior descoberta,
a que nós sofremos de amor porque o amor
é sempre solitário e nunca o suficiente,
talvez se tivéssemos feito tudo ao contrário
do critério utilizado por loucos inocentes,
eu não estaria agora criando uma saudade
de mim sentindo falta do que não vivemos.
9.7.07
"Magali foi ao banco"
- A senhora precisa terminar o sorvete antes de entrar – diz o segurança através da porta transparente giratória e blindada.
Cara de Magali, sofria como Neuma. Incomoda a delicadeza pálida, a indiferença do segurança do banco. Incomoda o jeito como ele suspende as calças pela cinta de couro, assim como quem sabe alguma coisa que você não. Um cachorro de madame num colo de madame, lambidas e cafunés, crianças matando gatos, babás fumando cigarros, um cego de braços dados com uma cega, tudo incomoda. Olha para cima: uma bela encosta, pessoas rindo e apostando os dentes no baralho. Um menino ajuda uma senhora a recolher um cacho de bananas que havia caído. O sol reluzindo como um pequeno escravo. “Asco!” – diz Magali cuspindo no chão.
Porque ela – mas ela quem afinal? – queria ser como todo mundo, apenas não podia. Pois detestava o modo como o mundo persistia na mesma náusea espiral sem fim. Detestava a percepção de que o mundo, o mundo como se imagina o mundo abstrato, o mundo que não está em nós, caga horrores para os nossos desejos. E que desejos afinal? Casar, ter filhos, um asilo decorado com palmeiras? Talvez. E depois, fazer o que mais? Alimentar. E se alimentar do que, para poder alimentar? Amor. E do que se alimenta o amor? Da falta de amor. Perguntas vagas, boçais, o velho de bigode pardo atirando milho aos pombos. Calor detestável, “eu liguei duas vezes, duas é muito, não ligo mais, ele que morra!”. Observe bem, Magali: não há perdão, não há saída, não há sala de estar, o amor envelheceu.
Ora mas que inferno! Uma aliança? Não tinha uma aliança, e daí? Não precisava de uma aliança, ora porra... Mas então por que, sendo Magali, sofrer como Neuma? Talvez não fosse Magali. Talvez fosse Neuma sofrendo em silêncio e sorrindo, feito Magali enforcada tomando sorvete. Então, num lapso, esquece quem é.
- Não, não tenho nada – diz ao guarda Magali que, ainda sem saber quem é, empurra a porta giratória.
O homem apenas fecha as pernas, ambos com os peitos de encontro, os fartos peitos da senhora grisalha espalhando-se pelo peito duro do homem alto, os olhos fixos das lebres no cio. A senhora grisalha abre discretamente a braguilha do sujeito alto, que consente olhando para o relógio com um suspiro de tédio. Mas logo estão se beijando. Ela sobe como serpente, as unhas encarnadas, a boca encarnada. Lambem-se, bolinam-se. A senhora grisalha enlaça o tronco do rapaz com as pernas e eles saem da fila juntos, destinados a contas atrasadas e uma caneta perdida. E talvez fosse para sempre, talvez aquilo fosse mesmo o amor. Saindo da briga, pulando pela janela, abandonando a casa antes do incêndio. “Mas não o amor, o amor envelheceu”.
Do piche, os estilhaços absolvem a paisagem. Magali sorri.
7.7.07
"pecado venial"
como O’Hara
ela recebe cortejos
como Greta
e sem medo me engana
como Silvana
com seus três amantes
como Ana
que canta no banho
como Ieda
que troca de idéia
como Ofélia
e me estapeia a cara
como Clara
sem grana, sem sorte
como Audrey
que jamais ficou velha
como Marilyn
nem Grace nem Kelly
Dietrich
que vem e vai num triz
como Rita
e quando se irrita morde
como Loren
e abençoa o meu susto
como todas
que percorreram as veias
do meu erro.
5.7.07
"balada para jack à luz de juca"
contra o tempo ganho.
será essa a única manta
do desmistificado parto?
de quem Dali um dia disse:
“o homem mais bonito...”
um homem convicto
de signo incerto
que nasceu do vinho
e morreu depressa.
quem um dia soube antes
ser o que antes não sabia.
o tempo tomou benzedrina
e nada mais seguiu adiante.
todos ainda precisamos amar,
desde que desesperadamente,
mas o desespero causa janelas.
e o movimento se congela
mas não como nos filmes
quando o clímax escurece.
e sim enquanto sorrimos,
enquanto levamos a culpa
e nosso sangue vira pedra
e amamos demais, e disso
alguém diz: “não é nada”.
eu quero te dizer, camarada,
que minha mãe está enterrada
e que à época não tive chance
para sentir sua forma infecta,
para molhar seu ombro oco.
ela foi enterrada, camarada,
de um modo que ainda persiste.
dela restou o que da minha ossada
reside com outros no ossário geral
do cemitério São João Batista.
"degustação"
o cimento secreto da ternura-cadafalso,
do que são feitas as famílias comidas pela traça,
do que é feito o riso ereto do senador da república,
ou o movimento pudico do estupro à bailarina.
engolir à seco e não saber se amanhece ainda,
se estamos dentro do que estamos fora,
se fora estarmos dentro de onde não estamos,
estamos onde ninguém mais se encontra,
sem saber do que é feita a sombra do monstro
que usa nossas roupas e atende pelo nosso nome,
ou o que fazer com as escadarias silenciosas
do pavor premeditado por pétalas de plástico.
e, mesmo assim, engolir à seco, colher pedaços
diários das falhas mais ardentes declaradas
porque mesmo falhas são falhas nascentes
de olhos humanos, correnteza de saturno,
para ter um pouco do erro próprio e da luz
que nos faz lasca de deus e rota de paz
onde anjos penitentes se alimentam do carma
do que degolam e, mesmo assim, engolir à seco
o que à noite esvazia os cérebros delicadamente
e nas manhãs frias nos faz pensar em casamento,
em sapatos virados de baixo da cama em chamas,
nas costas que protegemos com abraços forçados,
nas revelações imaginárias das tardes coloridas,
quando não se imagina nada, apenas se permanece,
e em tudo mais que, mesmo assim, à seco engolido,
faz a gente lamber os dedos sem saber que gosto.