20.9.05

Um homem vê uma mulher dormindo ou o azul é apenas uma ilusão noturna

Ela começa quente, redonda, crepitante, fetal, depois não que chegue e se esfriar, apenas estremece, como uma fogueira que vacila no meio da noite. Depois vai ficando incandescente outra vez, mas fria como um cubo de gelo, de uma cor azul amoral que eu procuro até hoje no verso das fotos antigas. Então ela vai se tornando pálida, cristalina, a mais cintilante sensação de ternura teria essa cor, e se agiganta sobre mim, se abaloa, então se encolhe como uma criatura renegada abandonada com fome num sótão, as migalhas de pão num redemoinho causado pelo vento que bate as janelas, os braços de cores vivas e distantes, os traços dementes de pavor do futuro próximo, inevitável como o respiro que antecede o afogamento, o núcleo sôfrego com olhos esticados, perplexos com lacunas de vida, mas intocáveis pela palidez da delicadeza do movimento ondulante, acelerado e completamente indiferente do corpo. Não é de propósito que ela se faz enxergar dessa forma. É por pura indiferença; não se dá pela minha presença. De tão pálida, pega fogo, num fogo choro de coro cristão, um fogaréu azul gelado de um universo engolido pelo buraco na alma das essências primárias. Finalmente, brotando do instante comum ao primeiro nascimento fecundo, o vermelho do seu fogo se esparrama e regressa, tomado de fúria e faíscas, primeiro azuis, depois encarnadas como o sangue que delira o touro na capa do matador, depois laranjas como o grito da primavera, então amarelas como o mofo atrás dos armários: são seus cabelos que me lembram as cores vivas e mortas, sempre depois que variamos durante toda noite entre o céu e o inferno para, no fim, ambos exaustos, ela se entregar ao sono, o enigma da vida, deixando livres seus cabelos para mim, sob a luz da lua, apenas chumbo, nua, miúda, púrpura como a capa do ilusionista do meu último sonho no qual a última caravana atravessava a noite do deserto e todos estavam sedentos e os cavalos arriavam as patas na areia com as línguas estrebuchadas e o ilusionista tirava sua cartola, se agachava com seu lampião, tomava um punhado de areia e comia como se fosse pão, e dizia em seguida ao resto da caravana que tudo aquilo não era um deserto e que não eram montanhas aquilo que estavam subindo e que no final também não era o mar que iriam encontrar; era tudo apenas ilusão, dizia o homem da capa púrpura, tão púrpura quanto as linhas adormecidas do dorso dela virado para o chumbo da lua, e a caravana seguia em frente e do outro lado da montanha encontrava o mar, azul como aquele azul que em vão eu procurava no verso das fotos antigas, e de fato, como dizia o ilusionista de capa púrpura da cor do sono lunar, apenas uma ilusão, o azul é apenas uma ilusão noturna, mas nunca mais fria, no sonho já distante, embaçado, embaralhado com minhas próprias pálpebras, perdendo-se no vendaval dos trigueiros do passado intocável como ela, virada de lado como uma pequena cordilheira de neve e larva, cabelos da cor do ferrugem da primeira oxidação, lambendo meus sonhos enquanto a observo deitada de bruços na cama.

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