Chuva forte, calça larga, tosse seca, catarro na palma, na alma sem guarda-chuva. É sempre assim quando você está desarranjado. O que fazer? A primeira entrada do metrô fechada com grades sólidas e enferrujadas como o sistema de classes. Uns vagabundos mordem pontas de cigarros e pigarreiam debaixo do toldo furado. Me indicam a porta certa, que calha também de ser a errada: por motivos de reforma. É sempre assim com informações espontâneas. Corro para a terceira entrada – o curativo no meio do peito arde com as pulsações do sangue escoado na vontade, meu coração, onde foi parar? – mas pingos são mais rápidos que pernas.
Já no subterrâneo, levo a mão ao peito, conversamos um pouco, massageio seu ego ferido. Pergunto o que há, ele diz que tum-tum, tum-tum, numa fala descompassada, de modo que não entendo suas necessidades. Desde guri é assim. O que há, velhinho? Não vai fraquejar agora, aqui no metrô... Isso não é um filme francês. Nenhuma mulher de lábios grossos, olhos amendoados, cachecol e pêlos debaixo dos braços está te esperando com vento no rosto e uma lágrima paralisada sob os cílios. Não é sua hora ainda, meu chapa. Você precisa gritar por mais uns anos. Não vá rouquejar logo agora. Mais 70 anos, como a quiromante leu nas linhas da minha mão, a esquerda, que é a mais torta. E um filho único ainda por cima, mais um, o que deixa de ser único. “E você quase morrerá aos 58... uma linha estranha... vejo aqui... quase-quase”, diz a moça careca com argolas prateadas de baiana nas orelhas, acariciando as próprias mãos, “mas ainda não... bem velhinho só, e muito só, cheio de dinheiro... menos o do ordenado, que vai te sair por 70 mangos, como os anos que ainda te faltam”.
Portanto, avanço, sentido Zona Norte, Cinelândia, ver um filme no cinema. O trem chega por trás dos pensamentos como uma boa surpresa. Não é o meu ainda. Um velho sem cabelo e com um dente aparece na minha frente e pergunta para onde vai o trem. Penso na resposta ideal, algo como “ele vai para nunca mais, amém”, mas digo “vai até Copacabana”. “Siqueira?”, ele pergunta. “Siqueira”, eu faço com a cabeça. Mas ele não entra.
De um cinema para outro. Será que então é isso? Ficar ao lado de centenas de pessoas vazias dividindo emoções aboletadas sobre sacos de pipoca, assobiando e aplaudindo na frente de uma tela enorme, pedindo silêncio mais alto do que o próprio incômodo... A quiromante diz que não. Que o filho será bonito e saudável. “Então será uma mulher bonita”, minhas sobrancelhas concluem. “Não sei dizer isso, mas serão três”, ela morde a bochecha. Um filho... Outro desgraçado, mais três mulheres... Que bela piada! A primeira, a grande paixão. O corte fundo na carne fibrosa. Mas, se não há cura, a ferida cicatriza uma hora, com o tumor dentro. A segunda, boa mulher. Verdadeira dama. “Dá pra saber se será loira? Gosto das Loiras” – a quiromante torce a cara, dobras na careca, quando lhe pergunto. A segunda me dará o filho. Casamento cristão, camas separadas, sexo quinzenal, duas tentativas de suicídio frustradas, uma artista sensível, temperamental. Quase morre no parto, como minha mãe, e morrerá antes de mim, como minha mãe. A terceira, pobrezinha, não terá tanta sorte. Vai viver bastante, como eu. Terei casos por fora e ela vai sofrer com os longos fiapos de cabelo presos nas minhas cuecas, cheia de uísque e pílulas à espera no portão. Outra coisa: depois de velho vou usar cuecas, pois quem é rico se protege para morrer feliz, sem saber que aquele que se protege demais consegue apenas uma morte cuidadosa. Desmoralizada nas rodas de chá, pois a essa altura já serei rico para tomar chá em rodas, tentará dar cabo da vida de forma besta, pulando na frente de uma moto. Uma costela lhe perfurará o pulmão e nunca mais vai falar direito. Pagarei a clínica para birutas até o fim dos seus dias, incluídos os meus. Na clínica tentará outra vez, com uma tesoura. “Um carma”, diz a quiromante, “todo mundo tem o seu”. Meu filho, rapaz solícito, tentará por ela uma terceira vez, não podendo ver o pai tão abatido, com veneno de formaldeído. Péssima escolha, deixará a pobre presa a uma cadeira de rodas com metade do rosto paralisado em tubos de sucção.
De fato, ninguém consegue esperar pelo amor. Eu mesmo, aqui no metrô, estação Largo do Machado, vejo o amor deslizar vagão adentro, eu sedento, ele lento, sem esperar por nada, pois é só quando aparece, como as tias velhas. Vagão quase vazio: o velho sem cabelo e com um dente que pegou o trem errado, eu completamente encharcado e uma guria magra, sem cor nem muita frente, cabelos pretos ralos e escorridos, olhos puxados mas ocidentais, digo, acidentais, melhor assim, bunda mirrada, pente na mão. Me apaixono por ela quando, de costas, se senta, pernas cruzadas, descruza as pernas para apanhar o lenço que escapa da bolsa para o chão. Nunca vi um lenço cair tão devagar, dançar o tango, penso ajeitando os cabelos molhados e enxugando o rosto com mangas de camisa.
Silêncio no vagão. Aquele lenço de seda, o amor que contêm as finas linhas trançadas... Vejo os pés da guria, livres de sapatos, unhas vermelhas descascadas, a do mindinho apenas um fiapo de cálcio, seus calcanhares dançam por baixo do assento.
São os calcanhares mais bonitos que já vi, penso. Ou talvez seja a primeira vez que vejo calcanhares. Isso o amor: que se vê pela primeira vez e para sempre.
Subimos as escadas para o inferno. Já ouço o estalido das cotias penteadas. Ironia subir para baixo. Primeiro eu. Ela atrás, cabeça baixa, parece preocupada, muitos cabelos presos no pente na frente dos olhos. Micose, anemia, alterações tireoideanas, menopausa – mas parece tão nova! –, quimioterapia?
Tenho duas opções: a escada rolante e os degraus. Penso assim: vou pelos degraus, se ela me vir e fizer o mesmo, então é ele mesmo, o amor. Do contrário iria pela escada rolante como todo mundo. Mas pelos degraus, me seguiria como quem diz: estou contigo, querido, para sempre e por onde for. Subo os degraus. Paro no meio. Olho para trás por baixo do fundilho das calças, quando finjo dobrar as bainhas por culpa da chuva lá fora. E lá vem ela, vagarosa como o lenço de seda, ainda com os olhos baixos, a certeza do amor sincero. Morde levemente os lábios – uma lágrima? Vasculha a bolsa. Está procurando meu amor lá dentro, só pode. Como é bom. Me sinto dormente. Na saída beijo a chuva e espero minha recompensa. Não há dúvidas. Passo por um sujeito encharcado de cabelo encaracolado que parece assistir à cena, emocionado. Tudo bem, camarada, entendo você, também estou emocionado. Pode aplaudir se quiser, não me incomodo, divido contigo meu triunfo.
Já no subterrâneo, levo a mão ao peito, conversamos um pouco, massageio seu ego ferido. Pergunto o que há, ele diz que tum-tum, tum-tum, numa fala descompassada, de modo que não entendo suas necessidades. Desde guri é assim. O que há, velhinho? Não vai fraquejar agora, aqui no metrô... Isso não é um filme francês. Nenhuma mulher de lábios grossos, olhos amendoados, cachecol e pêlos debaixo dos braços está te esperando com vento no rosto e uma lágrima paralisada sob os cílios. Não é sua hora ainda, meu chapa. Você precisa gritar por mais uns anos. Não vá rouquejar logo agora. Mais 70 anos, como a quiromante leu nas linhas da minha mão, a esquerda, que é a mais torta. E um filho único ainda por cima, mais um, o que deixa de ser único. “E você quase morrerá aos 58... uma linha estranha... vejo aqui... quase-quase”, diz a moça careca com argolas prateadas de baiana nas orelhas, acariciando as próprias mãos, “mas ainda não... bem velhinho só, e muito só, cheio de dinheiro... menos o do ordenado, que vai te sair por 70 mangos, como os anos que ainda te faltam”.
Portanto, avanço, sentido Zona Norte, Cinelândia, ver um filme no cinema. O trem chega por trás dos pensamentos como uma boa surpresa. Não é o meu ainda. Um velho sem cabelo e com um dente aparece na minha frente e pergunta para onde vai o trem. Penso na resposta ideal, algo como “ele vai para nunca mais, amém”, mas digo “vai até Copacabana”. “Siqueira?”, ele pergunta. “Siqueira”, eu faço com a cabeça. Mas ele não entra.
De um cinema para outro. Será que então é isso? Ficar ao lado de centenas de pessoas vazias dividindo emoções aboletadas sobre sacos de pipoca, assobiando e aplaudindo na frente de uma tela enorme, pedindo silêncio mais alto do que o próprio incômodo... A quiromante diz que não. Que o filho será bonito e saudável. “Então será uma mulher bonita”, minhas sobrancelhas concluem. “Não sei dizer isso, mas serão três”, ela morde a bochecha. Um filho... Outro desgraçado, mais três mulheres... Que bela piada! A primeira, a grande paixão. O corte fundo na carne fibrosa. Mas, se não há cura, a ferida cicatriza uma hora, com o tumor dentro. A segunda, boa mulher. Verdadeira dama. “Dá pra saber se será loira? Gosto das Loiras” – a quiromante torce a cara, dobras na careca, quando lhe pergunto. A segunda me dará o filho. Casamento cristão, camas separadas, sexo quinzenal, duas tentativas de suicídio frustradas, uma artista sensível, temperamental. Quase morre no parto, como minha mãe, e morrerá antes de mim, como minha mãe. A terceira, pobrezinha, não terá tanta sorte. Vai viver bastante, como eu. Terei casos por fora e ela vai sofrer com os longos fiapos de cabelo presos nas minhas cuecas, cheia de uísque e pílulas à espera no portão. Outra coisa: depois de velho vou usar cuecas, pois quem é rico se protege para morrer feliz, sem saber que aquele que se protege demais consegue apenas uma morte cuidadosa. Desmoralizada nas rodas de chá, pois a essa altura já serei rico para tomar chá em rodas, tentará dar cabo da vida de forma besta, pulando na frente de uma moto. Uma costela lhe perfurará o pulmão e nunca mais vai falar direito. Pagarei a clínica para birutas até o fim dos seus dias, incluídos os meus. Na clínica tentará outra vez, com uma tesoura. “Um carma”, diz a quiromante, “todo mundo tem o seu”. Meu filho, rapaz solícito, tentará por ela uma terceira vez, não podendo ver o pai tão abatido, com veneno de formaldeído. Péssima escolha, deixará a pobre presa a uma cadeira de rodas com metade do rosto paralisado em tubos de sucção.
De fato, ninguém consegue esperar pelo amor. Eu mesmo, aqui no metrô, estação Largo do Machado, vejo o amor deslizar vagão adentro, eu sedento, ele lento, sem esperar por nada, pois é só quando aparece, como as tias velhas. Vagão quase vazio: o velho sem cabelo e com um dente que pegou o trem errado, eu completamente encharcado e uma guria magra, sem cor nem muita frente, cabelos pretos ralos e escorridos, olhos puxados mas ocidentais, digo, acidentais, melhor assim, bunda mirrada, pente na mão. Me apaixono por ela quando, de costas, se senta, pernas cruzadas, descruza as pernas para apanhar o lenço que escapa da bolsa para o chão. Nunca vi um lenço cair tão devagar, dançar o tango, penso ajeitando os cabelos molhados e enxugando o rosto com mangas de camisa.
Silêncio no vagão. Aquele lenço de seda, o amor que contêm as finas linhas trançadas... Vejo os pés da guria, livres de sapatos, unhas vermelhas descascadas, a do mindinho apenas um fiapo de cálcio, seus calcanhares dançam por baixo do assento.
São os calcanhares mais bonitos que já vi, penso. Ou talvez seja a primeira vez que vejo calcanhares. Isso o amor: que se vê pela primeira vez e para sempre.
Subimos as escadas para o inferno. Já ouço o estalido das cotias penteadas. Ironia subir para baixo. Primeiro eu. Ela atrás, cabeça baixa, parece preocupada, muitos cabelos presos no pente na frente dos olhos. Micose, anemia, alterações tireoideanas, menopausa – mas parece tão nova! –, quimioterapia?
Tenho duas opções: a escada rolante e os degraus. Penso assim: vou pelos degraus, se ela me vir e fizer o mesmo, então é ele mesmo, o amor. Do contrário iria pela escada rolante como todo mundo. Mas pelos degraus, me seguiria como quem diz: estou contigo, querido, para sempre e por onde for. Subo os degraus. Paro no meio. Olho para trás por baixo do fundilho das calças, quando finjo dobrar as bainhas por culpa da chuva lá fora. E lá vem ela, vagarosa como o lenço de seda, ainda com os olhos baixos, a certeza do amor sincero. Morde levemente os lábios – uma lágrima? Vasculha a bolsa. Está procurando meu amor lá dentro, só pode. Como é bom. Me sinto dormente. Na saída beijo a chuva e espero minha recompensa. Não há dúvidas. Passo por um sujeito encharcado de cabelo encaracolado que parece assistir à cena, emocionado. Tudo bem, camarada, entendo você, também estou emocionado. Pode aplaudir se quiser, não me incomodo, divido contigo meu triunfo.
Me viro. A guria entre os braços do sujeito, ambos chorando na chuva, como se doesse. De repente se separam. Vejo de longe. Não sei se choro ou se chuva. Discutem. A chuva escorre de mim para todos os esgotos vazantes da Praça Mahatma Gandhi. Plafp! A luz espanta gotículas dos cachos dele. Um tapa lhe estala a fronte. Vergonha, humilhação, blefe. Ele se vira e vai embora, ofendido, confuso, arrependido, tranqüilo. Ela fica na chuva com o pente na mão, olhos emprestados do satã. Rompimento traumático – ou o trauma somos nós? Eu sozinho na chuva. Sinto esgarçar minha cicatriz no peito. Com meu coração não converso mais. Que fuja enquanto é tempo. A chuva me encharca mas não sei de onde ela vem, mesmo olhando para cima, se sou eu ou se quem chora é o mundo. Pobre guria, nem tão feia, nem tão linda, que tem meu amor guardado na bolsa. Agora para sempre, até o próximo trem – sonho? Ela corre de volta para dentro da terra aos tropicões. Olho em torno e percebo pela primeira vez que pombos também voam em noites chuvosas. Acordo molhado e morto. 70 menos 1.