29.1.12

"poema das contas"

tentei encomendar meu próprio livro,
um livro escrito por mim mesmo.
descobri que o livro estava esgotado.
admito que meu primeiro pensamento
foi que um dia eu serei famoso e eles
vão republicar o livro pelo triplo do preço
e talvez eu ganhe também algum dinheiro
e talvez eu até viva disso como Ferreira
Gullar e Manoel de Barros e fique velho
fazendo isso até entediar-me gordo e doente.

mas naturalmente meu pensamento se move
para outras questões mais reais e iminentes:

penso que tenho no bolso um meio baseado
que meu colega de trabalho deixou comigo.
penso em onde morarei daqui a quatro meses
quando serei muito provavelmente despejado.
penso até no preço mórbido da nossa cerveja,
em como ficou caro embriagar-se e em como
o delírio passou a ser só uma questão de classe.
por fim penso no exame retal que nas palavras
da médica preciso fazer urgentemente porque,
segundo meu histórico familiar, temperamento,
estou precisamente na minha “fase do câncer”.

a poesia nunca foi cruel comigo, ao contrário:
ela insurge para me aliviar, como a morfina,
mas logicamente tudo que alivia, depois mata.

outras coisas são contas, expectativas vagas,
rumores desconhecidos, as multas perpétuas.
mas, como veem, mesmo para o alívio dessas
ferozes máculas de cada sina, existe a poesia.
pois o poema é a morfina de cada segunda via.

24.1.12

"Billy Budd"






até o fim do dia serei Billy Budd.
meus braços, sem força, atingirão os brutos,
meus olhos, sem tremer, castigarão a feiúra,
essa feiúra dos corpos que nada temem,
essa feiúra duas suítes vaga na garagem.

até o fim do dia serei Billy Budd.
indicarei do mastro alto a rota da aventura,
e só de me olharem todos perderão o medo,
porque quando me faltam palavras gaguejo,
e isso, todos saberão, é ter medo também.

até o fim do dia serei Billy Budd.
e na minha lei só haverá justiça e não leis,
meu dever será carregar os sem pernas
e dar de comer aos que sentem enjôos
e apresentar o mar aos que só vêm água.

até o fim do dia serei Billy Budd.
a mim não importa se mercante ou militar,
quero um navio onde possa cantar música
para alegrar um pouco os que se odeiam
e batizar com a forca o amor da espécie.

17.1.12

"Cioran, Le Ténébreux"







Elementos e atos, tudo concorre para ferir-te. Armar-se de desdéns, isolar-se em uma fortaleza de nojo, sonhar com indiferenças sobre-humanas? Os ecos do tempo te perseguiriam em tuas últimas ausências... Quando nada pode impedir-te de sangrar, as próprias ideias tingem-se de vermelho ou invadem-se umas às outras como tumores. Não há nas farmácias nada específico contra a existência; só pequenos remédios para os fanfarrões. Mas onde está o antídoto do desepero claro, infinitamente articulado,, orgulhoso e seguro? Todos os seres são desgraçados; mas, quantos o sabem? A consciência da infelicidade é uma doença grave demais para figurar em uma aritmética das agonias ou nos registros do Incurável. Ela rebaixa o prestígio do inferno e converte os matadouros do tempo e paraísos. Que pecado cometeste para nascer, que crime para existir? Tua dor, como teu destino, não tem motivo. Sofrer verdadeiramente é aceitar a invasão dos males sem a desculpa da causalidade, como um favor da natureza demente, como um milagre negativo... Na frase do Tempo os homens se inserem com vírgulas, entretanto que, para detê-la, tu te imobilizaste como um ponto.

(Emil Cioran, Précis de décomposition; tr. port., "Braviário da decomposição", op. cit., p. 36-37)

15.1.12

"talvez eu ligue"

o que me deprime, amor, não é
trabalhar muito e ganhar pouco.
o que me deprime é não saber
de que tipo de ambição sou feito.
porque, se dói, deve haver alguma.
me deprime não sentir vergonha,
por ser o que sou e não ser mais,
acreditar na remissão dos corpos.
me deprime que o mundo esteja
varando minha percepção sem
que reste nada para mim mesmo.
me deprime é não ter convicção
sobre se algo é amor ou desamor,
e me atirar a qualquer colo apenas
por ter perdido a mãe muito cedo
e, pelo mesmo motivo, desamparo,
fazer algumas vezes xixi na cama.
me deprime, meu amor, não poder
mais te dizer “meu amor”; é como
mandam os costumes; e “teu amor”.
deprime sempre que domingo seja
domingo e que usemos domingo
justamente para pensar nas coisas.
então não se preocupe, meu não-
posso-chamar-de-amor, é só mais
um daqueles dias, já passa, talvez
eu até ligue para a sua Ana Paula,
aquela psicanalista linda e perspicaz
que você me indicou da última vez.
quem sabe ela não aceita meu preço.

"um fim para o lirismo"

claro que, eventualmente,
chega o fim da correria
e, com suor e pedaços,
fica o estampido de gelo,
as garras de abricó podre
que flagelam o corpo fútil.

sem demovê-lo a prêmio,
sem firmar suas multas,
ajustam-se sobras rotas,
arrota-se um filho verde.

então derrama-se o mel
dos venenos ancestrais,
e percebe-se sem nobreza
o fim da tua poção mágica.

que dirás das mãos, nunca
elas se ergueram, a não ser
pela imprevista força bruta,
daquilo que em si supunha
e não havia donde esperar.

o lirismo dos sem dentes
não atravessa mais as ruas,
a forca amacia com penas
goelas de sonhos úmidos.

assim chega todo epílogo:
joelhos encontram mucosa,
e te resta sorrir satisfeito
como o mártir renegado,
pois ainda não é tua vez
de beber do ritmo plácido
dos que progridem letras.

14.1.12

"Karina"

essa menina, Karina,
fala sobre fazer arroz
em panela de pressão,
criticar os vigaristas,
divertir-se e explodir
com uma bela banda
tocando para ela
solos de guitarra
que me lembram quem?
Karina olhos com glitter
e que olhos que ela tem!
coturno, meia arrastão,
musanopolis Copacabana.
vale aqui também a dica:
a música só é boa música
quando alguém se engana.

12.1.12

"namorados"

Você fala quero falar eu falei fale e você falou o que não deveria falar quando queremos falar falamos e não falamos quero falar mas ainda assim falei se você falar de uma vez então está falado que o que não se fala é aquilo que se propõe falar sobre quando falamos alguém há de falar falta algo na fala do que não foi falado e a equação mimética se dispõe na fala do falante sem fala e o falo é grande no engasgo do não falado porque se falássemos realmente poderíamos ficar sem falar no entanto a fala corta a falácia com lanças de falemos de uma vez o falido fato de que não devemos falar mais portanto beijemos e veja bem não se pode beijar e falar ao mesmo tempo ainda assim é preciso dizer falarei ainda mais porque o beijo é a falha da língua dos que falam de olhos abertos mas tente um dia falar fechar os olhos e veja como soa estranha a fala quando não se vê o objeto de que se fala e só assim ele existe puro nas entranhas do esquecimento.

Escutarei fecharei os olhos junto a deus estarei mudo à espera do abalo sísmico nos sinos da cabeça escutar o que se escuta chegar antes de chegar ao que escuta o corpo e você disse você não sabe escutar mas pergunta se você escutou quando eu sussurrei minha sorte furta voz do coração tum tum escute tum tum a passada larga tum tum do seu desespero tum tum o sorriso fértil do seu vigor em pântano onde se escuta o troar do que domina as escutas de todos os perfilhadores de habitemos então na escuridão dos grandes ruídos os ouvidos de uma geração surda que escutou sempre o que era para ser dito e não escutado e de tanto escutar passou a dizer o que era para ser escutado e não dito maldito dia em que o primeiro homem jogou os braços para cima e gritou posso escutar vejam só que barulheira deve ter sido porque a partir daí todos queriam gritar que podiam escutar mas já aí ninguém dizia um ai e de que adianta escutar perfeitamente se ninguém diz nada?

4.1.12

"Lawrence das Arábias"




minha mãe me concebeu de um escorpião.
não me foi concedido talento para as metas.
impossível alimentar o estômago do conforto.
não quero jantar, prefiro ir a pé, se possível,
com muito peso sobre as costas, sem costas.
sem ilusão do paraíso faço no lixo meu graal.
em todo lugar firo com esporas o meu corpo
cansado, e nem firo nada, sinto coisa alguma.
quero testar tudo, ficar com nada, e ser loiro.
para confirmar nas minhas marcas a presença
vaidosa desse deus pixaim de capa de revista.

"prova de amor"

Dani está agora com Natália,
e existe uma loira de Curitiba.

"água de colônia"

todo alagado tem alguns pulmões.
impossível confiar no melhor beijo;
há reserva com a pompa inaugural.

é assim que devo mergulhar solito:
desencontro raízes no meu sangue.

ver e amar, enfim, minha enchente.

"o pinho, a pinha"

o maior medo vem das minhas entranhas.
um demônio surdo que não ouve suplícios
sobrevoa meus povos com sua língua suja,
mergulha com esporas em meu estômago.
facadas maternas prolongam certo fetiche,
o marxismo nos encanta pela falsa leveza,
por leveza dos equívocos sábios de outrora.
gotas de vontade pingam barras de paixão,
animais aleijados sempre copulam melhor.
sou o cadáver com um pires sobre o peito,
as mortes representam as novas segundas.
o pinho é macho da pinha, isto é mais lindo.

"trabalhadores

a vida cheia denuncia
nossas vidas incolores.
nas juntas temos pelos,
na cabeça temos juntas.
a gente gosta é mesmo
da sujeira dos sentidos.
o amor é sempre tosco,
a raiva é toda perfeita.
flores, jardim do povo:
é isso que faz inverno.

2.1.12

"Último brinde" (Nicanor Parra)





Queiramos ou não
temos somente três alternativas:
o ontem, o presente e o amanhã.

E nem sequer três
porque como disse o filósofo
o ontem foi ontem
nos pertence só em recordação:
à rosa que já se desfolhou
não se pode tirar outra pétala.

As cartas para jogar
são somente duas:
o presente e o dia de amanhã.

E nem sequer dois
porque é um fato bem estabelecido
que o presente não existe
senão na medida em que se faz passado
e já passou…
como a juventude.

Em resumidas contas
só vai nos restando o amanhã:
eu levanto meu copo
por esse dia que não chega nunca
porém que é o único
de que realmente dispomos.

"só tenha relações com o que se ama"

meus grandes cílios beijam
o ar dos teus fenômenos,
da tua máquina cardíaca,
do dedicar-se aos próprios sons.
sem te ver sei das tuas entranhas,
do que pode ser também
silêncio absurdo ou fala criminosa,
abelhas no auge de teu estômago.
caem uma a uma as reservas
do meu frágil telhado imaturo.
mas penso em ti e sei, contudo,
que nisso não há nada a resolver,
curvo-me carinhosamente
sobre o meu próprio segredo,
meus grandes cílios beijam
o ar dos teus fenômenos.

1.1.12

"precisamos seguir"

necessidades curvas não traçam retas
e a respiração só é voluntariosa
quando perdemos as narinas.
verter palavras em silêncio de escândalo,
corroer as tripas de nossas ilusões nobres
e ainda assim sorrir, sorrir como faria
Lawrence diante do exército turco.
os desertos, os levaremos às montanhas,
e um dia, talvez, sem palavras,
poderemos descansar das tréguas
e beber da água pantanosa da esperança.