29.1.12

"poema das contas"

tentei encomendar meu próprio livro,
um livro escrito por mim mesmo.
descobri que o livro estava esgotado.
admito que meu primeiro pensamento
foi que um dia eu serei famoso e eles
vão republicar o livro pelo triplo do preço
e talvez eu ganhe também algum dinheiro
e talvez eu até viva disso como Ferreira
Gullar e Manoel de Barros e fique velho
fazendo isso até entediar-me gordo e doente.

mas naturalmente meu pensamento se move
para outras questões mais reais e iminentes:

penso que tenho no bolso um meio baseado
que meu colega de trabalho deixou comigo.
penso em onde morarei daqui a quatro meses
quando serei muito provavelmente despejado.
penso até no preço mórbido da nossa cerveja,
em como ficou caro embriagar-se e em como
o delírio passou a ser só uma questão de classe.
por fim penso no exame retal que nas palavras
da médica preciso fazer urgentemente porque,
segundo meu histórico familiar, temperamento,
estou precisamente na minha “fase do câncer”.

a poesia nunca foi cruel comigo, ao contrário:
ela insurge para me aliviar, como a morfina,
mas logicamente tudo que alivia, depois mata.

outras coisas são contas, expectativas vagas,
rumores desconhecidos, as multas perpétuas.
mas, como veem, mesmo para o alívio dessas
ferozes máculas de cada sina, existe a poesia.
pois o poema é a morfina de cada segunda via.

Um comentário:

Julia Mendes disse...

ou a poesia é o arrimo entre a morfina e o precipicio


p.s: então esgotou? eu que tava pensando em encomendar uns...