31.12.12

"Mário"




saber que certos olhos
espantam nossas amídalas,
e quando me dizem: estás rouco,
sei o quanto olhos já me espantaram
para chegar a este ponto.

a magia das coisas demora
a nos tocar e, quando toca,
notamos, mas já é outra coisa.

ser outra coisa é tudo
que lembramos e com isso,
na lembrança do que deveria
ser estado mas é passagem,
deslizamos em pedras agudas
e realizamos enfim a comunhão
com as amídalas inflamadas,
o coração rouco de imagens,
as cordas do tempo na garganta
feito A Grande Razão possuída.

uma pena ser apenas um proletário
e, mesmo sendo pouco mais bonito,
não poder escrever como Cesariny.

29.12.12

"escrevo agora como quem me dá a mão"




aqui te embalo para sempre em meus sonhos,
a ti, o próprio, fruto de todo prazer indubitável,
a quem ferimos com nomes e histórias de famílias,
mas que está aqui e agora, ainda circulando em peixe
dentro das veias e da pulsação que nos levará à morte,
e estar diante desta inafiançável situação é também
uma fonte de contrapor a essa pobre velha cansada,
a morte, e que respeito tenho por ti, ó morte, agora,
quando me faltam as veias e as batidas do coração,
como à velha mãe faltaram na hora do enterro cego,
é você que guia os passos que não damos, a dor
que sentimos enquanto dizemos “sou eu que sinto”,
mas é mais que outra coisa, é mais que tudo isso,
e seria tão só você pudesse esta mesma coisa louca:
estar ao menos bem vestida quando me cuspisse
seus tenebrosos decassílabos, além do que odeio
o cheiro do seu caviar russo, e antecipo suas cáries.

28.12.12

exercício espiritual (Mário Cesariny)



(1923 - 2006)


É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

"é preciso ir de vez em quando”



Não irá longe aquele que sabe
antecipadamente aonde quer ir
(Napoleão)


no dia em que precisamos ir, precisamos ir.
podemos voltar em muito pouco tempo,
mas teremos ido de uma vez e para sempre.
as benesses do retorno, elas não envolvem
o que podemos dizer a nosso respeito,
porque em geral não podemos dizer muito.
e se fazemos desse modo brusco, apenas ir,
mesmo que seja para voltar em pouco tempo,
é porque o que podemos falar sobre nós
não nos diz respeito e representamos apenas
o que em nós diz é preciso ir, é preciso.
o que se pronuncia silenciosamente em nós
é o que envergonha a frase e aperta o passo.
mas, uma vez de volta ao retorno inadiável,
voltamos a sorrir, a morrer, como todo mundo.

13.12.12

"em tempos de abstinência"


preciso dizer que pouco importa
a cândida, a clamídia, o fluconazol,
e que eu me satisfaço até mesmo
enquanto me masturbo e penso
em um milhão de coisas porque
sei que você estará ali mais tarde
ou no dia seguinte – e digo mais:
pouco importam também os dias
– e pode ser no outro ou no outro,
eu sei, preciso dizer que agora sei
o que nos trouxe até aqui de novo,
e quero te arrastar pelas ruas louco,
quase morrendo por entre os carros,
e quero te mostrar para as pessoas,
porque algo assim não pode ser uso
exclusivo – é preciso que todos saibam.

10.12.12

"A Cena Inédita"


Um casal de adolescentes. Eles andam a passos firmes pela rua lotada. Uma rua lotada de gente pobre, com cheiro agridoce de cabaré e vendedores, de todos os tipos. De longe, mas não de muito longe, observo o casal, como se fosse qualquer outro casal. Mas o passo deles acelera, então penso que talvez aquilo seja uma briga de um casal adolescente e, talvez preocupado porque já não me lembrava mais como era uma briga de um casal adolescente, continuo acompanhando, mais de perto. De imediato reparo como transpiro e desfaleço muito mais do que o casal adolescente que, apesar de quase correr (e, já posso notar, discutir alto), não escorre um pingo. Então, numa freada brusca eles param; acerto em cheio uma velhinha, pois não tenho os mesmos freios de resposta imediata que têm os adolescentes. A velhinha parece contrariada, inicia uma discussão à qual não dou ouvidos. Creio que, inclusive, observando o casal o tempo todo com um dos olhos, tentei informá-la do acontecimento incrível que se passava bem ao nosso lado. “Veja bem, senhora”, digo, “trata-se de uma discussão de um casal adolescente, a senhora por acaso se lembra de como é isso?”. O efeito da frase não sai como esperado, e a senhora me acerta no flanco direito com uma sombrinha. Que espécie de senhora é essa que anda com uma sombrinha quando a temperatura beira os 40 graus centígrados? Não me atenho muito a isso. O casal está de frente, olhos nos olhos. Não distingo o que ouço, porque talvez eu ouça demais, e ouça, além de tudo, alguns sons desconhecidos dentro de mim mesmo. Talvez eu esteja quase me lembrando de algo muito importante que há muito foi esquecido. Ou talvez esteja prestes a inventar tudo outra vez, o que me entristece, mas é bem mais possível. O que importa é que ali está um casal adolescente, um de frente para o outro, uma menina que parece, porque carrega uma garrafinha cor de rosa na mão, muito menos experiente que o menino, que, apesar disso, parece bem mais abalado com tudo. Quase rio e imediatamente me sinto mal ao notar que a menina, apesar da garrafinha cor de rosa e do jeito todo cor de rosa de menina, já dispõe de uma frieza cínica típica das mulheres que, no fundo, sentem-se acuadas. O menino parece prestes a chorar. Num instante, pela postura de frieza cínica antecipada da menina em anos de desilusões que ainda virão e pelo desalento cheio de tamanho e ímpeto e músculos já quase formados do menino, sinto que há certamente um descompasso necessário entre os sexos, e que, se fôssemos compassados, talvez a coisa piorasse ainda mais. Este seria um pensamento estúpido, se não fosse totalmente verdadeiro. Mas muitos pensamentos absolutamente verdadeiros são estúpidos, talvez a maioria. Enquanto divagava na estupidez dos adultos, quase perdia a mais linda cena. O menino finalmente ouve algo que parece um soco no estômago, mas, como é muito forte, apenas se curva, vira lentamente para o lado, dando por alguns segundos as costas para a menina, parece refletir algo, provavelmente fora do contexto, então se vira novamente, estende a mão à menina. O mundo inteiro congela. A menina nega a mão. Ele então retira como um cavaleiro da távola redonda a mochila que leva no ombro e a coloca com suavidade, mas nervosamente, sobre o ombro da menina. A menina se concentra em levar a garrafinha cor de rosa à boca, fazendo barulhos desagradáveis e, na situação do menino, imagino que mais ainda. O menino dá as costas e sai em sua passada marcial, elegante, porém derrotada, como na maioria das vezes é a elegância e, no caso daquele menino, é também uma antecipação em anos de desilusões que ainda virão e que, imperceptivelmente, nos vão dando ares marciais. Neste momento me lembro de algo, que vem como um cuspe na cara. Algo parece recolocado, algo que eu um dia tive e me foi tirado. Demoro a identificá-lo, mas sei que está naquele menino arrasado, andando em passo marcial, olhando para baixo, às vezes gesticulando com o rosto retorcido para o lado. Nesse momento viro-me, preciso ver a menina. Ela segue andando, bem mais devagar, a todo o momento levando a garrafinha cor de rosa à boca, mas não ouço mais seus barulhos: sei que este algo a que me refiro e demoro a identificar está nela também. Sou acometido por uma completa sensação de ridículo, parado entre o casal adolescente que se separa, olhando ora para um, ora para o outro. Repentinamente a menina para. Penso milhares de coisa em um segundo. Terá desistido de tudo? O que fará o menino, se talvez nem ainda possa beber? Será que ela se apaixonou por outro menino, e ele soube agora? Ou talvez o ame de algum modo, mas precise deixá-lo partir, e talvez isso seja uma forma de amar mais comum do que parece... Staccato. Infantilmente, como um gato recém-nascido, a menina esconde-se atrás da mureta de um prédio e, estranhamente, parece muito tranquila. Prova disso é que continua bebendo da sua garrafinha cor de rosa, e já posso ouvir mais uma vez os barulhos desagradáveis. Além disso, posso jurar que vi um meio sorriso em seu rosto, desses de filme de terror barato. Mas tudo muito, extremamente infantil, escavando a essa altura o meu peito em busca de mais informações que ficaram por anos abandonadas. Deixo-a para trás. Ao tornar-se uma criança, automaticamente perde seu encanto adolescente, e de crianças não entendo. Além disso, sinto-me miserável com aquele meio sorriso de Conde Drácula e, acima de tudo, sinto muita pena do menino, mas talvez não acima da pena que sinto de mim mesmo. Ainda assim, por algum motivo, sigo já suando em bicas e vejo, a alguns metros, talvez muitos, o corpo do menino que, feito uma locomotiva cujo piloto se drogou, perde o controle em todo o seu peso de chumbo e fogo. Ainda assim, parecia uma locomotiva, e isso deve ser respeitado. Um homem arrasado torna-se automaticamente um homem atraente, contanto que não seja você mesmo. Mas ele andava rápido demais e eu já me sinto velho e cansado. De todo modo, pude ver quando, ultrapassando o último prédio da quadra, desviando por um fio de um ônibus, cujo motorista xingou um altíssimo palavrão incompreensível, ele girou feito um leão de circo o corpo para trás de uma mureta e, depois de descansar alguns segundos, fechar os olhos e abrir mil vezes, aproximou vagarosamente a cabeça e começou a espiar. Já eram duas crianças brincando de esconder. Eles se encontrariam outra vez, provavelmente em segundos. Senti-me extremamente velho, como que arremessado pela janela de um trem a todo vapor. Para não me sentir pior, decidi eu mesmo correr a toda velocidade, no que teria, aliás, dado um banho no fedelho, e cheguei à residência aos saltos para, desse jeito mesmo, escrever a cena inédita. Porque tem coisas de que precisamos correr para não esquecer jamais.

6.12.12

"Morre Oscar Niemeyer"





Hoje morreu Oscar Niemeyer e, no entanto, aqui escrevo para você. Talvez o fato de ter morrido Oscar Niemeyer, depois de tanto tempo, seja justamente o que me faça escrever para você. Existe uma morte imperiosa que cerca nosso maravilhoso acontecimento. Sinto-me como um homem da capital, que sente “a vida em toda a sua plenitude, em toda a sua fragilidade”. E eu sempre tive uma certa tendência a fogueira, então dá-me palha.

Existem coisas mais absurdas que a morte de Niemeyer, que, aliás, é um dos acontecimentos menos absurdos de que se tem notícia. Eu e você, por exemplo; que absurdo é poder dizer “que absurdo somos eu e você”.

Porque sempre há algo que ensurdece quando o amor é jovem. E ainda somos jovens, eu reparo, veja bem como andamos pelas ruas, deixando escorregar às vezes timidamente as mãos entrelaçadas como quem não é capaz de admitir completamente que é feliz; como você é sempre quase atropelada porque eu ando rápido demais e me enfio entre os carros – ah! existe muita coisa aí, nesse acompanhar uma possível morte a dois entre carros indiferentes – e você vê, meu bem, como todos os carros têm este sombrio propósito de, quase nos acertando em cheio, louvar nosso difícil e renascido encontro a cada esquina.

Desculpe, mas não posso admitir sem gargalhar como um louco. Ainda sou muito novo para ser completo, talvez eu ande como quem está atrasado para algo porque, de fato, eu talvez esteja atrasado para muitas coisas. Se pudesse, pediria que você me ensinasse a passear. Seríamos então uma das curvas das quais é feito o universo curvo de Einstein. Esqueci por completo se um dia tive algum talento, mas ainda não me sinto nem um pouco desesperado, a não ser quando penso que não preciso mais de nada porque tenho você, porque você me tem. Então a coisa fica mesmo apavorante quando me dou conta de que me tornei um tipo capaz de assistir à novela das oito e fazer breves comentários como “ela não deveria ter feito isso” ou “abre logo, seu babaca”. A questão é: apenas no amor existe a mudança. Estou disposto a mudar, ou melhor, me jogar de vez no que relutei em considerar “a verdadeira vida”. Sim, ficaremos apavorados, mas, meu deus, você tem todas as caras, todos os modos sutis e violentos de mexer as mãos e espremer os olhos e abrir sua boca imensa e alisar minhas vontades e me olhar no banco do ônibus enquanto eu finjo que não te vejo. E mais uma vez lembro de supetão que hoje morreu Oscar Niemeyer, o arquiteto. Morreu Niemeyer e eu estou vivo, então decidi escrever para você, justamente porque morreu Niemeyer, às vésperas de completar 105 anos, e eu estou vivo, vivo! Não vamos dar nome algum a isso. Vamos.

27.11.12

"toneladas no deserto"


há certos tipos tísicos
um tanto melancólicos
que já não têm escolha.

estão sempre apoiados
em alguma cruz alta.

se lhes tiram a cruz
caem desconfiados
assim como se lhes
faltassem os braços.

só sabem o caminho
do fim – mas o início
de qualquer episódio
solene, que não seja
heroico, causa coceira,
pois atrai a luz divina.

um pouco loucos, sim,
mas também carinhosos,
tais tipos são, em suma,
uma péssima escolha.

porém são os únicos
capazes de arrastar
toneladas no deserto.

conhecem melhor
a fragilidade ímpar
do sonho convicto.

sozinhos eles marcham
tristes e desconfiados:
testas de ferro do amor.

26.11.12

"aquário"


forço no
mundo
o que
não sei.
o mundo
pode
ser no
máximo
divertido
e no
mínimo
intolerável.

não querer,
não querer
tudo que
se quer.

e querer
demais
aquilo
em que
nem se
pensa.

deses-
pero
desse
pote,
desse
vidro
cheio
de nada.

feito para
servir de
um outro,
montei a
redoma
que me
asfixia.

arruinado
talvez pela
felicidade,
a coisa toda
ficará pior.

o íntimo é
demais ao
que serve
de espaço.

e não se
procura
em fotos
a malha
finíssima
do esque-
cimento.

14.11.12

Ariel (Sylvia Plath)



Stasis in darkness.
Then the substanceless blue
Pour of tor and distances.

God's lioness,
How one we grow,
Pivot of heels and knees! -- The furrow

Splits and passes, sister to
The brown arc
Of the neck I cannot catch,

Nigger-eye
Berries cast dark
Hooks ----

Black sweet blood mouthfuls,
Shadows.
Something else

Hauls me through air ----
Thighs, hair;
Flakes from my heels.

White
Godiva, I unpeel ----
Dead hands, dead stringencies.

And now I
Foam to wheat, a glitter of seas.
The child's cry

Melts in the wall.
And I
Am the arrow,

The dew that flies,
Suicidal, at one with the drive
Into the red

Eye, the cauldron of morning.
 

Ariel (trad. leo marona)

Estanca-se em trevas.
Então a cascata insubstancial
Azul de rocha e distâncias.

Leoa de Deus,
Num só crescemos,
Eixo de joelhos e patas! -- A fenda

Se racha e passa, irmã do
Bronzeado arco
Do pescoço que não pego,

Sementes
Olho-negro lançam escuros
Anzóis ----

Doces bocas cheias de sangue,
Sombras.
Outra coisa além

Me arrasta pelo vento ----
Coxas, cabelo;
Lascas de minhas patas.

Godiva,
Branca, eu descasco ----
Mãos mortas, mortas asperezas.

E agora eu
Espumo no trigo, brilho de mar.
O choro da cria

Derrete no muro.
E eu
Sou a flecha,

Orvalho que voa,
Suicida, de impulso harmônico
Adentro o olho

Vermelho, caldeirão da manhã.

4.11.12

"Wanting to Die" (Anne Sexton)




Since you ask, most days I cannot remember.
I walk in my clothing, unmarked by that voyage.
Then the almost unnameable lust returns.

Even then I have nothing against life.
I know well the grass blades you mention,
the furniture you have placed under the sun.

But suicides have a special language.
Like carpenters they want to know which tools.
They never ask why build.

Twice I have so simply declared myself,
have possessed the enemy, eaten the enemy,
have taken on his craft, his magic.

In this way, heavy and thoughtful,
warmer than oil or water,
I have rested, drooling at the mouth-hole.

I did not think of my body at needle point.
Even the cornea and the leftover urine were gone.
Suicides have already betrayed the body.

Still-born, they don't always die,
but dazzled, they can't forget a drug so sweet
that even children would look on and smile.

To thrust all that life under your tongue!--
that, all by itself, becomes a passion.
Death's a sad Bone; bruised, you'd say,

and yet she waits for me, year after year,
to so delicately undo an old wound,
to empty my breath from its bad prison.

Balanced there, suicides sometimes meet,
raging at the fruit, a pumped-up moon,
leaving the bread they mistook for a kiss,

leaving the page of the book carelessly open,
something unsaid, the phone off the hook
and the love, whatever it was, an infection.


"Querendo Morrer" (trad. Leonardo Marona)

Se quer saber, a maioria dos dias não me lembro.
Ando na minha beca, desmarcada por essa viagem.
Então a quase inominável luxúria retorna.

Mesmo agora não tenho nada contra a vida.
Conheço as lâminas de erva que você mencionou,
a mobília que você posicionou debaixo do sol.

Mas suicídios têm uma língua especial.
Como carpinteiros, querem saber que ferramentas.
Eles nunca perguntam por que construir.

Duas vezes eu tão simplesmente me declarei,
havia subjugado o inimigo, engolido o inimigo,
arranquei dele sua arte, sua mágica.

E desse jeito, pesada e pensativa,
mais quente que óleo ou água,
eu descansei, escorri pelo buraco da boca.

Não pensei no meu corpo a ponto de agulha.
Mesmo a córnea e a urina dispensada se foram.
Os suicídios acabaram de trair o corpo.

Natimortos, nem sempre morrem,
mas, cegos, não podem esquecer droga tão doce
que mesmo crianças olhariam com sorrisos.

Confiar toda essa vida debaixo da língua!—
que, por si própria, torna-se paixão.
A morte é um osso triste; partido, você diria,

ainda assim ela espera por mim, ano a ano,
em desfazer tão delicado e velhas chagas,
para me tirar o fôlego de sua prisão ruim.

Equilibrados ali, suicídios às vezes se cruzam,
com raiva das frutas, uma lua estourada,
deixando o pão confundido com um beijo,

deixando a página do livro aberto sem cuidado,
alguma coisa não dita, o telefone fora do gancho
e o amor, seja lá o que tenha sido, uma infecção.

28.10.12

“quinta de mahler - finale”


Para Luiz Cervasio

não seremos inteligentes, eis a dádiva.
a tentativa da inteligência nos matou em dez segundos.
diremos ao deitar, no ouvido da pessoa amada:
“essa é a coisa mais importante que já me aconteceu”.
e isso será sempre sem inteligência.
aceitaremos as relíquias de uma Atlântida nevada,
e isso também será sem inteligência.
o que queremos é a rosa na boca do trompete.
a inteligência quer uma história, um contorno,
mas sabe-se o quão redonda pode ser a imprecisão.
basta olhar um monte de pó que flutua no chão do teu quarto,
e verás que a beleza não tem nada a ver com a inteligência,
e não haverá inteligência alguma enfim, e acolherás o pó.

"padrinho"


com as unhas sujas de sangue outra vez,
arrasto-me para fora da cama, para a vida.
que o sol lá fora colha milhões de amores,
que a vida por dentro seja pó de tentação,
minhas unhas sujas de sangue dizem algo,
uma confirmação temporária, definitiva.

não lavarei jamais novamente as unhas,
elas ficarão assim pelo tempo usufruído.
nadaremos sem remo nesse mar turvo?
não te perguntarei mais nada, estou mudo.
lavar as mãos é para os bandidos e santos,
talvez tu não venhas a te orgulhar de mim,
mas a lembrança do que ainda geme sujo
por entre as unhas que jamais serão lavadas
é o tiro limpo de que precisamos para morrer.

e sorrirei, e acordarei para sempre sorrindo,
porque sendo possível ver o sangue de perto,
fica mais simples carregar a aresta invisível
do peso do sangue entre os que não surgem.
e não são beijos, nem dedos que vão fundo
naquilo de que dizemos “é deus”, e somos.

24.10.12

“conversando com um amigo incauto que terá um filho impreterivelmente”


- não se preocupe, mais hora, menos hora, a ficha cai.
- sim, acho que você tem razão, ainda estou confuso.
- e depois que a ficha cair, vai cair um milhão fichas.

17.10.12

“que fazer?”



ainda não existe o poema fundamental
para mulheres ainda não existe é fato
um homem que seja apto para a mulher
um poema fundamental para o povo
não existe mais pontos vírgulas poemas
fundamentais para não existe a morte
mais nos poemas apenas um controle
sorriso de filme eslavo ou a naftalina
que é como uma parenta velha russa
que sabe o dia em que você nasceu
isso é pior que as catástrofes é pior
que o apogeu de qualquer dinastia
é pior do que eu mesmo enfurecido
e é bem mais eu enfurecido que pior
somos os piores enfurecidos de todos
porque amamos nossos pais por tudo
e dedicamos a vida a ídolos anônimos.

23.9.12

"sobre como tratar um rapaz"


o que me intriga é que um belo dia
tia maria que cuida da esquina
me deu um saco com vários preservativos
(proibida a venda) e também muitos sachês
de lubrificante íntimo, fora os saquinhos
de amendoim diários e as aulas de
“sobre como tratar um rapaz”.

o que pretende tia maria
com essa louca apresentação
a não ser indicar coisas que talvez
ela veja em mim, ou em qualquer um como eu,
mas que sou incapaz de ver em mim mesmo,
porque não entendo nada desse assunto de
“sobre como tratar um rapaz”.

prometo, no entanto, que, em respeito
à nobre e de difícil aceitação sugestão indireta
de tia maria, eu serei o mais cuidadoso
e escorregadio rapaz de que se ouviu falar
e manterei o que sobrar sempre à mão,
farei questão de dar a vida ao dever de
“sobre como tratar um rapaz”.

20.9.12

"noturno da primavera"

com o pensamento em rilke


quando nasce o dia em nós
(porque é irrelevante quando nasce o dia no mundo)
arrumamos logo afazeres
que justifiquem sua morte em batalha:
arrumamos a estante, fumamos cigarros na janela,
planejamos ilhas, ouvimos frases futuras,
falsos amores, algo parece coçar no corpo,
algo como uma presença maior que começa
a invadir o espaço que nem sabíamos ter.

daí vêm os textos, frescos nas ideias,
pouco importa sejam ideias descartáveis;
o descartável, com o pavor do que se aguarda,
o dia que materializa e dispersa a louca
ideia de que somos algo e não qualquer coisa,
o dia que deverá, de todo modo, ser utilizado
até sua morte, sugado como um escravo,
torna-se perceptível, justo e firme
como uma realidade intransigente.

daí nos vem a ideia de colher
pequenas pétalas que caiam pelo chão.
daí a ideia de que, sendo noite de ninguém, ó rosa!
fechaste tantas pálpebras em pleno dia.
ideia, planos, a vertigem e o medo do que,
apenas sendo, não se sabe o que é.
vantagem e desvantagem da noite:
dentro dela nós não passamos
de restos do que não foi o dia.

18.9.12

"geração cristal"


frases de éter nos salvarão.

as correntes amamentadas
por búfalos portáteis em nós
fundarão a língua brânquia.

com as cabeças nas imagens
seremos sonhos sem cabeça.

com trompetes em ferrugem
alucinaremos bebês antigos,
manteremos sujas as marcas.

por não podermos entregar
nosso estreito osso de amor
sorriremos firmes na chuva,
colheremos falsas papoulas.

de nossa turbulenta ternura
amarela um sol de abelhas
que faz jus à tripa receosa
onde incha o nosso veneno.

férias em doença trarão paz
aos túmulos da nossa elegia.
gotas nos olhos feito saúvas
são o mundo como antídoto.

e que beleza é o morto-vivo,
que sem estar e até não sendo
compreende esse túnel pálido
de onde emana a pura beleza
de não esperar, e querer tudo,
fazer rolar o dado, e se perder.

16.9.12

"o fim do menino"


agora é o fim das nossas noites áticas,
é preciso destruir um novo testamento.
enchemos de varizes as casas pálidas
e pouco sobrou à comunhão do adeus.

eis que estamos contando novos votos,
e a percepção dura menos que amizade.
as coisas das pedras lindas, estas jamais
nos trarão de volta a cor rara do adeus.

eis as curvas, grossas flores de tragédia,
eis as matas, mantidas em calças limpas.
a cor da fruta é mais a falta da cor viva,
e choramos infantis no coração do adeus.

bem métrico, mas não tanto quando sou,
bem métrico, e pouco abaixo do intestino.
mas como querer fazer as vezes de adulto
se procuro a convulsão alerta do menino.

mas o menino não soube dizer até logo;
aqui está ele em vestes formais de ateu.
as convulsões noturnas estão à margem:
se diz do menino o que se diz do adeus. 

21.8.12

"morrerei de um câncer na coluna vertebral" (boris vian)




Morrerei de um câncer na coluna vertebral
Será numa noite horrível
Clara, quente, perfumada, sensual
Morrerei de um apodrecimento
De certas células pouco conhecidas
Morrerei de uma perna arrancada
Por um rato gigante surgido de um buraco gigante
Morrerei de cem cortes
O céu terá desabado sobre mim
Estilhaçando-se como um vidro espesso
Morrerei de uma explosão de voz
Perfurando minhas orelhas
Morrerei de feridas silenciosas
Inflingidas às duas da madrugada
Por assassinos indecisos e calvos
Morrerei sem perceber
Que morro, morrerei
Sepultado sob as ruínas secas
De mil metros de algodão tombado
Morrerei afogado em óleo de cárter
Espezinhado por imbecis indiferentes
E, logo a seguir, por imbecis diferentes
Morrerei nu, ou vestido com tecido vermelho
Ou costurado num saco com lâminas de barbear
Morrerei, quem sabe, sem me importar
Com o esmalte nos dedos do pé
E com as mãos cheias de lágrimas
E com as mãos cheias de lágrimas
Morrerei quando descolarem
Minhas pálpebras sob um sol raivoso
Quando me disserem lentamente
Maldades ao ouvido
Morrerei de ver torturarem crianças
E homens pasmos e pálidos
Morrerei roído vivo
Por vermes, morrerei com as
Mãos amarradas sob uma cascata
Morrerei queimado num incêndio triste
Morrerei um pouco, muito, 
Sem paixão, mas com interesse
E quando tudo tiver acabado
Morrerei.


(Boris Vian - tradução de Ruy Proença)