26.9.08

"victor hugo"

o último dia de um condenado,
não o célebre francês, o barba,
ou as gargantas do suicídio.
alguém que acorda em pintura
e se frustra com a cor do mundo,
mas acredita nele, mente nele.
o da vida fátua, rente à retina,
desejo ante uma revolução inapta.
não o inaudito, antes de tudo
o cálido, o poeta sem remorso,
a violência sem resposta, o muro,
amigo de quem se cuida, algo assim
como eu - um pouco de cada um,
irreconhecível todo em branco,
diante de garrafas e flores pisadas.
me falta o ar, as pernas já bambas.
talvez você esteja aqui, talvez nós.

23.9.08

"a vocês"

Gostaria de dar algumas palavras aos estupradores de crianças e até mesmo fetos ainda em formação, às bandeiras erguidas pelo próximo traidor, ao que me faz chorar em certas tardes gaiolas e eu não sei o nome dessa sensação que faz chorar, mas não é choro de quem perde, é choro de quem nunca teve, e não sei de nada e espero tudo, o homem cotidiano descrito por Camus, que se levanta e não quer fazer o mal por medo de ser punido por seres magnânimos e matemáticos.

E a eles eu gostaria de entregar algumas palavras. Aos que abrem estradas sobre corpos humanos, aos metafísicos da consolação, a todos os grandes poetas que espancavam com amoladores de faca, na escuridão dos sentidos, crianças indefesas, que de alguma forma crescerão para colher os louros do patife laureado. Aos que enrolam dinheiro com esparadrapos na cintura e estão prestes a explodir. Aos que farejam como porcos e se alimentam de entranhas.

Dedicaria, se tivesse a grandeza necessária, com firma autenticada em cartório e assinada por deus, algumas palavras aos ilustres freqüentadores de bordéis, senhores poderosos e bonecos na cama, tão iguais a vocês e a mim, mas menos iguais a vocês, prefiro pensar, vocês que viram a cabeça, vocês que cortam a corda, vocês que aplaudem o pôr do sol e, bêbados, matam. Vocês que dedicam poemas e, ensandecidos, levam as mãos à cabeça. Vocês que presenteiam mendigos com cachaça nas datas festivas e os atropelam pelo resto do ano.

Aos contrabandistas de emoções, delfins elaborados em barro sintético, dou portanto algumas palavras a vocês, atrozes espelhos de si, sorridentes dentro da sombra, hienas com o dedo em riste, assassinos em série, candidatos à Prefeitura.

O mundo é de vocês mas, não se enganem, ainda estamos aqui, do outro lado, do lado fantasioso, do lado ingênuo, do lado utópico, do lado ultrapassado, do lado alienado, chamem do que quiserem. Daqui vemos muito bem e também sabemos esperar. Não há cá muita sombra, mas a vista é privilegiada e ainda temos pernas. Nossa cabeça está um pouco avariada, somos produto de uma noite tenebrosa, mas talvez isso nos mantenha absurdos e, portanto, de acordo com a vida.

É por isso que dou, entrego, cuspo estas palavras no colo dos formadores de opinião grisalhos e pedófilos, dos ventríloquos de auditório simpáticos e inofensivos, por isso letais, aos pantagruélicos donos de negócios promissores, que geram milhões e são incapazes de escolher uma esposa decente. Aos adolescentes que apodrecem nos edifícios comerciais como enormes consultórios dentários, ao que sorri e apunhala pelo gosto doce do sangue pastoso, ao fratricida de mil olhos e com a palavra certa.

Por causa de vocês nos restou muito pouco, e disso fizemos um mundo. Vocês líricos byronescos de visão turva e passo manco. Vocês integralistas enjaulados na cadência envelhecida. Vocês caçadores de recompensa em forma de mais um pouco de tempo. Vocês que, munidos de façanhas milenares, garantem a própria lápide e nos mastigam os anos.

Aos demolidores de séculos, atacadistas sentimentais, devoradores da esperança, destino estas palavras, que terminarão em breve e serão pó como tudo:

A terra é árida, o terreno não muito fértil, usado pelo avesso, mas nas veias ainda corre o algodão. Vocês nos ensinaram a quebrar os pés quando precisávamos de abrigo, nos mostraram o desgraçado jogo da oferta. Vocês nos fizeram saber sem esperar por mais nada. Estamos aqui nus, sim, a pele desmanchada. São feias as marcas no corpo, obra compulsiva de uma espécie milagrosa. Mas aprendemos a atirar com a língua, somos bardos e nosso desafio são os dentes roxos. Nosso escudo é o coração, outros já disseram. Estaremos esperando por vocês, prontos.

"toni"

hoje de manhã
um sujeito na rua
insistiu que eu era
o Toni Platão.
Não fosse pelo Toni
e isso até que não
soaria assim tão mal.

20.9.08

“mais estranho que o paraíso”

andar pelas ruas se tornou algo banal.
me pergunto: será o fim da poesia?
tanto faz o que é ou não é ou se é.
o que é ou não é de qualquer forma será
e então já foi – não importa mais, é resto.

sou alheio aos homens e deles me alimento.
tudo não passa de tempos verbais,
pequenos erros bem-intencionados,
o não-dito, um embarque imediato
para Budapeste.

escrever portanto um apenas para o cérebro,
para a massa disforme que formula enganos.
apenas para limpar o antro, polir a máscara,
criar um novo tédio dos passos se somando.
dizer "te amo" como quem acena de um trem.

19.9.08

"Helena Ignez"

chovia, sim, chovia hoje,
e ninguem mais sabia
onde chovia, se era dentro
ou se era fora do corpo.
fora certamente chovia,
dentro era um presságio,
e talvez porque eu usasse
meu fantástico sobretudo
talvez isso fosse chover.
era uma padaria, era sim,
era uma padaria, e lá eu vi
a eterna musa do cinema
brasileiro, quando havia
cinema brasileiro, cinema
de vários lugares, e ela era
musa do cinema brasileiro:
Helena Ignez – e eu a vi
com meu sobretudo e ela
talvez achasse legal pois
olhou para mim sorrindo
um sorriso longe de musa
e ela estava velha, a musa
parecia fruta seca, poética,
e como no caso das grandes
aparições eu não fiz nada
mas pensei que gastamos
muito pouco nosso corpo
preocupados em durar algo
e ao morrer não sabemos
porque demorou tanto.

14.9.08

"Mr. Henry Charles Bukowski Jr."


“a poem is a city”

a poem is a city filled with streets and sewers
filled with saints, heroes, beggars, madmen,
filled wit banality and booze,
filled with rain and thunder and periods of
drought, a poem is a city at war,
a poem is a city asking a clock why,
a poem is a city burning,
a poem is a city under guns
its barbershops filled with cynical drunks,
a poem is a city where God rides naked
through the streets like Lady Godiva,
where dogs bark at night, and chase away
the flag; a poem is a city of poets,
most of them quite similar
and envious and bitter...
a poem is a city now,
50 miles from nowhere,
9:09 in the morning,
the taste of liquor and cigarettes,
no police, no lovers, walking the streets,
this poem, this city, closing doors,
barricaded, almost empty,
mournful without tears, aging without pity,
the hardrock mountains,
the ocean like a lavender flame,
a moon destitute of greatness,
a small music from broken windows...

a poem is a city, a poem is a nation,
a poem is the world...

and now I stick this under glass
for the mad editor’s scrutiny,
and night is elsewhere
and faint gray ladies stand in line,
dog follows dog to estuary,
the trumpets bring on gallows
as small men rant at things
they cannot do.

***

“um poema é uma cidade”

um poema é uma cidade cheia de ruas e esgotos
cheia de santos, heróis, pedintes, loucos,
cheia de banalidade e bebedeira,
cheia de chuva e trovão e períodos de seca,
um poema é uma cidade em guerra,
um poema é uma cidade perguntando ao relógio por que,
um poema é uma cidade em chamas,
um poema é uma cidade rendida por armas
suas barbearias cheias de bêbados cínicos,
um poema é uma cidade onde Deus anda pelado
pelas ruas como Lady Godiva,
onde cães latem à noite e perseguem a bandeira;
um poema é uma cidade de poetas,
quase todos um tanto semelhantes
e invejosos e amargos...
um poema é uma cidade agora,
50 milhas de lugar nenhum,
9:09 da manhã,
o gosto de bebida e de cigarros,
sem polícia, sem amantes, andar pelas ruas,
este poema, esta cidade, as portas fechadas,
barricadas, quase vazia,
desolada sem lágrimas, envelhecendo sem pena,
as montanhas feitas de pedra,
o oceano como chama de lavanda,
uma lua destituída de grandeza,
a pequena música que vem das janelas quebradas...

um poema é uma cidade, um poema é uma nação,
um poema é o mundo...

e agora eu enfio isso debaixo do copo
para o exame detalhado do editor maluco,
e a noite está noutro lugar
e débeis damas cinzentas estão na fila,
cão segue cão até o estuário,
as trombetas trazem a forca
enquanto homens pequenos se gabam de coisas
que não podem fazer.

tradução Leonardo Marona

9.9.08

"EL DESDICHADO" (Gérard de Nerval)



Je suis le Ténébreux, - le Veuf, - l'Inconsolé,
Le Prince d'Aquitaine à la Tour abolie:
Ma seule Etoile est morte, et mon luth constellé
Porte le Soleil noir de la Mélancolie.

Dans la nuit du Tombeau, Toi qui m'as consolé,
Rends-moi le Pausilippe et la mer d'Italie,
La fleur qui plaisait tant à mon coeur désolé,
Et la treille ou le Pampre à la Rose s'allie.

Suis-je Amour ou Phébus?... Lusignan ou Biron?
Mon front est rouge encor du baiser de la Reine;
J'ai rêvé dans la Grotte où nage la Syrène...

Et j'ai deux fois vainqueur traversé l'Achéron:
Modulant tour à tour sur la lyre d'Orphée
Les soupirs de la sainte et les cris de Fée.

***

Eu sou o Tenebroso, - o Viúvo, - o Inconsolado,
O Senhor de Aquitânia à Torre da abulia:
Meu único Astro é morto, e o meu alaúde iriado
Irradia o Sol negro da Melancolia.

Na noite Sepulcral, Tu que me hás consolado,
O Posílipo e o mar Itálico me envia,
A flor que tanto amava o meu ser desolado,
E a treliça onde a Vinha à Roseira se alia.

Sou Biron, Lusignan?... Febo ou Amor? Na fronte
Ainda o beijo da Rainha rubro me incendeia;
Eu sonhei na Caverna onde nada a Sereia...

E duas vezes cruzei vencedor o Aqueronte:
Modulando na cítara a Orfeu consagrada
Os suspiros da Santa e os arquejos da Fada.


tradução Alexei Bueno

8.9.08

Fausto Wolff (1940 - 2008)



Então morreu o lobo. Morreu de ofício do tempo e sem reclamar. O deserto se fechou, o lobo não vive afugentado no eterno branco. Não é possível mantê-lo de pé sem o líquido da vida, que apenas os duros bebem aos borbotões, com rosto duro cheio de ternura, e os selvagens se lambuzam. Morreu então o lobo que, sempre ereto, uivava palavras em alemão. O lobo que escutava uma tristeza ulterior no vento de areal. O lobo que comia carne crua e esperava a lua para nascer a cada dia. Um dia ele não mais nasceu. O mundo do lobo é um mundo sem bondade nem crueldade, totalmente aberto e perigoso, um mundo sublime possível justamente por ser um mundo sem rédeas. Um mudo natural por si. A dureza do lobo vinha de saber que um mundo assim é cruel para os padrões humanos e que, portanto, a natureza era mesmo cruel na visão humana, e isso fazia com que nós humanos não soubéssemos realmente o que fazer ou desejar, pois a maldade era a nossa própria cabeça, e a única saída era tornar-se inumano para, assim, renegar a falta de humanismo da massa original, que não vem exatamente de nós, mas do que nos gerou e não sabemos. O lobo chorou muito com o tempo adverso. Em silêncio, soletrou absurdos líricos, usou pedras de travesseiro cético. Costelas à mostra, chorava devagarinho. A dor lancinante – boca de abutre no intestino – dificultava os ganidos românticos. O lobo chorou para a lua porque no fundo desejava chorar por tudo que é e não é o mundo com uivo completo de magnitude caudalosa, como um agradecimento amaldiçoado ao germe da faísca. Difícil saber agora o que fazer sem a presença arrítmica do lobo, como imaginá-lo acinzentado ao vento, dar carinho aos seus restos pútridos. Seu charme magnético de andar. Sua relação direta com o cosmos. Seu mais completo desinteresse sobre questões de ego ou repartição. Ah, e sua violência mitológica! As garras de fora no momento do pulo. As costas eretas no toque do verbo. O lobo agora, vieram buscá-lo. Trouxeram finalmente a foice, pegaram-no diante do último salto. Pela força única que sua ética denota, o lobo, é provável, virá outra vez, e outras, porque ele é costela da natureza selvagem, poesia de gatilho e meio-fio à luz de prata. Deus queira que esteja por paragem ainda mais árida, ainda à espreita, andando por quem não tem pernas, vivendo por quem não tem vida. Mas deus não existe, eis a dura beleza. E o lobo sabe que é matéria inata, ancestral crucificado da beleza primitiva.

5.9.08

"samurai"

eu sou o samurai.
um homem sozinho
com ganas de sangue.
o herói sem atitude,
potência indiferente,
espécime de vidro.
de verso em verso
a lâmina: o suicídio.

vilão sem identidade,
pária social, rasgado,
refrão sem codinome,
eu sou o samurai.
o passo além do corpo
o osso que interrompe
o medo: o fiel servo.

ao me ver não mova
a face sutil – espere.
lá do alto das colinas
vejo o vale em chamas
a espera de um milagre.
conto sete respirações
e vou morrer no fogo.
eu sou o samurai.

2.9.08

"desconstrução do amor"

o amor é uma arma
usada por covardes
com medo da vida.

o amor é uma ferida
que mantém a busca
pela espera frenética
que porá em risco
as nossas estruturas
e, sem dúvida, um dia
nos matará, pela falta.

ridículo falar do amor
como a cura do indigno,
como a ponte do suicida,
como a razão do sociopata,
como a fome do inválido,
como a bengala do cego.
mas o amor é tudo isso.

um erro por dia e planos,
o amor se basta na vontade,
porque, tal como o sonho,
o amor só vale noutro plano.
o presente do amor são juras
hipotéticas, metalingüísticas.

essência do amor é a solidão,
fonte dos poemas e das mentiras.
jamais haveria o amor solene
se não houvesse um abandonado.
o amor poético se dissolve fácil
no chá silencioso dos hipócritas.

ao falarmos “amor, amor, amor”
não precisamos falar “que fome”,
“como está frio aqui”, “eu tenho
o que eu preciso e me sinto vazio”,
“eu não sei o que preciso e sofro”.

mas em vez disso temos sempre
o amor cúmplice, o amor covarde,
o amor por tendência, construtivo,
positivista: o amor com ventosas.

o amor é mesmo a planta química
devorada por bocas anestesiadas.
ou talvez o amor seja outra coisa,
palavra fora daquilo que se pensa.

ninho de enigmas carmesim,
o amor ergueu acampamento:
ele também se esgotou de si.

portanto não se preocupe
se ao olhar fundo nos olhos
houver apenas um e um: dois.

com amor demais matamos,
degolamos desejos, sorrimos
pensando no que vai nos salvar.

quem sabe tendo o amor fugido
nos juntaremos outra vez por medo
e do medo, talvez, a igualdade
possa nos manter em silêncio,
mas ao menos de mãos dadas.