28.6.08

"Vitângela"

“Pobre Boris Vian, considerado extremamente contemporâneo”. Foi o que ela disse e eu não sabia ainda quem era Vian, mas anotei num papel. Eu era um romântico à carteirinha. Primeiro a negação, depois a precipitação, o sonho com a morte e, por fim, o refúgio, o esquecimento ponderado da existência, o largar-a-deus, o morrer-aos-poucos infalível.

Andávamos e colhíamos cacau numa planície. “Isso não é cacau, isso é comida de hospício”, ela dizia, abrindo um casco cheio de cabelos ao meio e enfiando o sumo branco na boca. Escorria pelo queixo. A provocação exata para um desconhecido, em meio a uma tensão sexual inevitável, é deixar algo escorrer pelo queixo. Assim inventamos a paixão – e não era lua cheia. Pobre Boris Vian.

Existe um prazer mórbido na boa vontade. A gente dá o que não tem e recebe o que não pode receber. A verdade é que meu negócio principal eram frases de efeito, “Respostinha”, era como ela me chamava.

Andávamos de mãos dadas, entrelaçando os dedos. Engraçado que, andando assim, ela parecia mais nova, e eu via manchas na minha pele um dia curtida de enganos bons.

Eu tinha na época uma fala empolada e, obviamente, ambições poéticas, o que já era ridículo por si só, fora o cacau no Aterro do Flamengo em pleno meio-dia, lendo tal personagem ultra-humano de Tchekhov – ela uma atriz em progresso – o que não era só um absurdo geográfico, mas entre nós ainda havia uma toalha de mesa estampada e, com esforço, colibris se desmanchando em preces orientais, manchas de vinho, poemas sobre ópio.

Ela era o meu messias. Faltava a barba e a tendência a túnica. Tomava remédios potentes e aparecia com as gengivas em sangue às quatro horas da madrugada. Isso era literário.

“Você vive uma vida literária”, dizia meu pai, um jornalista. Eu pensava: “E se eu dissesse a ele: você vive uma vida jornalística, o que seria?” De fato não era nada. Ele não entenderia e mudaria de assunto, ou esperaria um minuto, para dizer: “Tem coisas que você não precisa de um psicólogo para saber que são ruins”.

Eu era um escritor e não estamos falando aqui de qualidade literária, mas que diabo de vida meu pai queria que eu tivesse, não fosse uma vida literária, eu sendo um escritor, semente do meu fruto podre e único?

Era a vida que eu tinha e muitas vezes ela se desvencilhava de mim de modo que eu ficava solto numa rinha de galo, com os olhos vendados. Quando acontecia dela se desvencilhar eu começava a complicar as coisas, intelectualizar tudo para não ter que lidar com nenhuma novidade.

A perversão era um crime. Me lembro que por anos meu pai, figura importante para um filho sem mãe, dizia: “A culpa é uma coisa fundamental”. E ele falava calmamente, ele era extremamente sólido e consistente, profundamente arraigado, mas sabia rir de si próprio. Um sujeito emotivo que, de alguma forma, teve a delicadeza abusada e preferiu apenas me deixar passar, vendo à distância. E eu também não tentei muito, apenas disse muitas vezes “te amo”. Mas dizemos isso apenas quando não temos o que dizer.

Mas por que falei do meu pai? É preciso ter um fio. Diz a escola e, afinal, precisamos das regras para quem sabe publicar. Rasgar a pele falsa é muito mais difícil. Tento fazer isso e sinto fome. Lembro que o nome dela era mistura do nome do pai com o nome da mãe. Vitângela.

Cacau, pois então. Quem conhece o cacau sabe do que estou falando. Só há uma pessoa que conhece o cacau – é aquela que o esmaga. Hoje ela se chama Vitângela. Dorme pouco, engloba tudo, tem o pé grande – Boris Vian, uma fraude – e, mesmo que eu queira, não cabe numa página, mas é tarde, e meu nome é mais difícil.

26.6.08

"tempo"

Aproveitar o tempo! Mas o que é o tempo, que eu o aproveite? Aproveitar o tempo! Nenhum dia sem linhas... O trabalho honesto e superior... O trabalho à Virgílio ou à Milton... Mas é tão difícil ser honesto ou superior! É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio! [...] Aproveitar o tempo! Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro. Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto. Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste. Aproveitar o tempo! Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos. Aproveitei-os ou não? Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!
Álvaro de Campos / Fernando Pessoa (1928)

25.6.08

"ainda é cedo para continuar"

Dos pequenos erros, cometidos por vontades que parecem alheias. É disso que se faz o homem. Da porta entreaberta que permaneceu longe do pulo. De cada frase equivocada e sem saber onde acabar. São erros às vezes cometidos por sabedoria. Toda a sabedoria é estúpida, dado que não se sabe o fundamental: por que continuar? Ou, como diria o ajudante de guarda-livros, “por que exprimir?”

Deixei de me perguntar isso todo dia, deixo a barba crescer livre e raspo mensalmente. Os tiros na têmpora já não me incomodam, mas a falta de assunto é o cão. Sei que me levanto e, por algum motivo ainda desconhecido, volto a me deitar para levantar outra vez e, de fato, ninguém nunca nos explicou os motivos dessa prosopopéia.

“As coisas simplesmente acontecem” é o mais longe que chegamos até hoje. Volta e meia aparecem uns homens de bigode, sisudos, com cara de poucos amigos, sentados em montes e derrubando barracas de feira. Os novos profetas, os cidadãos póstumos. Pois estes senhores de mão no queixo e piteira inauguraram a era da autopromoção, falando em si próprios como se fossem uma novela. “A seguir (daqui a séculos) cenas do próximo capítulo”. E mesmo assim eles foram ferrenhos, produziram, deram nome a praças e lascas de pedra, deixaram belos textos sobre verdades brutais, morreram de sífilis ou de miolo mole – e as coisas simplesmente continuaram acontecendo.

O trajeto do espinho à murada de gelo. É assim que sentimos a vida constantemente – isso vale para os que ainda conseguem sentir alguma coisa de próprio, por mais descontrolado e impulsivo que seja. Vagamos pelo mundo e de vez em quando nos damos as mãos. Nosso erro é jurar amor de mãos dadas. Todos os dias amamos e atropelamos existências, matamos impunemente, e alguns ainda fazem a sesta e o sinal da cruz. Somos biografias sem fatos. O gatilho do afeto é tão rápido quanto o veneno das horas. Bernardo Soares tinha razão.

24.6.08

"se ele falou, a gente escuta"

Talvez, senhores, pensem que enlouqueci. Permitam-me fazer uma ressalva. Concordo: o homem é um animal predominantemente construtivo, destinado ao esforço consciente em direção a um objetivo e dedicado à arte da engenharia, quer dizer, á eterna e incessante construção de uma estrada – não importa para onde ela vá. E que o ponto principal não é para onde ela vai, mas que vá a algum lugar, e que uma criança comportada, mesmo que deteste a profissão de engenheiro, não deve se render àquela desastrosa indolência que, como se sabe, é a mãe de todos os vícios. O homem ama a construção e a abertura de estradas, isso é indisputável. Mas como explicar que ele seja tão apaixonadamente propenso à destruição e ao caos? Digam-me! Sobre esse assunto tenho algo a dizer, ainda que breve. Não será seu apego apaixonado à destruição e ao caos uma consequência do seu medo instintivo de alcançar o objetivo e completar a obra em construção? [...] Mas o homem é uma criatura volúvel e de reputação duvidosa e, talvez, como um enxadrista, esteja mais interessado em perseguir um objetivo do que no objetivo em si. E, quem sabe (ninguém pode ter certeza), talvez o único propósito do homem neste mundo consista no processo contínuo de perseguir um objetivo ou, em outras palavras, de viver, e não propriamente no objetivo, que, é claro, tem de ser algo como duas vezes dois são quatro, ou seja, uma fórmula, algo que, afinal, não é a vida, mas o princípio da morte.
Dostoievsky (1864)

"Baudelaire"

após visita à China – um porto,
Baudelaire estica o corpo morto
e finalmente verifica a paz falsa

que tanto pintou em seus poemas
sobre a burguesia, que criticava,
pelas fraudes de amor e progresso.

não mas o antídoto contra a causa,
não mais o afeto pela circunstância.
seu corpo jaz e nós nem nascemos!

mas suas narinas ainda se mexem.
o gato das arábias, um dia loiro,
agora os lábios cortados, e o ópio

tomou-lhe os sonhos, o levou até lá.
ele já não volta, o poeta, a poesia,
essas coisas não existem, são fotos

desbotadas, um certo jeito de andar
nos mais afetados, os ditos sensíveis.
nos panos sujos: cheiro de almíscar.

23.6.08

"as palavras"

Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas, tão fortes como o javali. Não me julgo louco. Se o fosse, teria o poder de encantá-las. Mas lúcido e frio apareço e tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida. Deixam-se enlaçar, tontas à carícia e súbito fogem e não há ameaça e nem há sevícia que as traga de novo ao centro da praça.

Carlos Drummond de Andrade, 1942.

21.6.08

"Hemingway Japonês - e Gay"




Uma coisa precisa ser dita ao se falar de Yukio Mishima (1925 – 1970): ele escreve como pensa. Apesar de quase óbvia, essa combinação é muito rara, tendo em vista que o ser humano não é óbvio.

Mishima incomoda a cabeça de qualquer um que, por não saber nada do que realmente acontece, acredita saber o suficiente, concorda ou discorda com a cabeça, e segue a vida.

Suas indagações acerca da pobreza da existência humana, as máscaras de um teatro grotesco, erguidas diante da perversão social, derrubam o leitor feito enxurrada, e foi sorte eu ter me levantado outra vez depois de terminar suas Confissões de uma Máscara (Companhia das Letras, 1949, 199 págs.).

Ele simplesmente cava, cava, cava sem parar. E quando o sangue é despejado diretamente sobre os ossos, então ele quebra os ossos, e é só então que ele sente seu verdadeiro prazer.

Yukio Mishima usa palavras como quem usa argila. Sua relação com a moral e com o bem e o mal é tão intrincada, que é simplesmente impossível saber exatamente até onde ele é capaz de descascar a cebola. Às vezes suas indagações atingem um ponto tal, que espera-se, olhando para os lados, que caia uma enorme pedra na nossa cabeça, como um castigo místico executado por um ente secreto, que nos esconde o fundamental das coisas.

Mishima vai ao fundamental das coisas. Um dia um amigo disse para eu ler Murakami, segundo ele, o Hemingway japonês. Ignorei meu amigo na hora, não lembro o que estava lendo ou mesmo se queria ler. Agora me deparo meio sem querer com esse livro de Mishima, usado também por alunos de psicanálise nas universidades.

Como Hemingway, Mishima aborda questões de um universalismo doloroso, obriga o leitor a dar conta do fardo de viver a vida sabendo antecipadamente que sobre a Terra nada é certo ou controlado, a não ser o nosso rumo inapelável à falência do corpo, e que tentar corrigir o que jamais poderá ser correto é cinismo e flagelação ecumênica. Mishima ensina o que é ser humano sem se basear em qualidades, mas sim nas sensações vitais, as que normalmente deixamos em segundo plano.

Para terminar, ambos não souberam reverter o cheque-mate que inventaram: Mishima e Hemingway. Suicidaram-se de forma bizarra.

Hemingway deu um tiro na boca com uma espingarda, que precisou disparar com o dedão do pé, pouco após ter ganhado o Prêmio Nobel. Mishima desde criança queria morrer de forma heróica, trucidado vivo de alguma forma. O fato de não ter sido convocado para a Segunda Guerra devido à saúde muito frágil foi motivo de profundo desgosto. Suicidou-se segundo a tradição samurai (seppuku), rasgando a barriga com uma espada e depois sendo decapitado.

Mais exibicionista que Hemingway, deu cabo à própria vida na frente de uma multidão, a quem antes fez discurso patriótico pela restituição da monarquia, solenemente ignorado. Acredita-se que Mishima tenha preparado seu suicídio por um ano.

Um pouco do inacreditável Yukio Mishima:

“O ideal universal de beleza das esculturas gregas também se aproxima da semelhança entre homens e mulheres. Não haverá aí um sentido oculto de amor? Será que nos recônditos desse amor não se anima o desejo inalcançável da exata semelhança entre os amantes? Não seria essa a ambição que move as pessoas e as conduz à trágica alienação de desejar que o impossível se torne possível a partir do extremo oposto? Em outras palavras, sendo o amor entre duas pessoas incapaz de se tornar semelhança mútua, não existiria um processo mental mediante o qual elas buscam enfatizar sua dessemelhança, valendo-se disso como uma forma de flerte? Infelizmente, ainda que alcançada, a semelhança mútua não passará de ilusão momentânea. E isso porque, mesmo que a menina se torne audaciosa e o menino, reservado, em algum momento eles se cruzarão a caminho do extremo oposto, ultrapassando o ponto almejado em direção à outra margem – ao além desprovido de parâmetros.”

(Confissões de uma máscara, pág. 69)

19.6.08

"malditos russos"

NÃO MENTIR A SI MESMO
Lembre-se de que os escritores ditos imortais ou simplismente bons e que nos deixam inebriados têm em comum um traço muito importante: para onde quer que se dirijam, eles o convidam a acompanhá-los e você sente não com a razão, mas com todo o seu ser, que possuem algum objetivo, como a sombra do pai de Hamlet, a qual aparecia não por acaso e perturbava a imaginação. Alguns, dependendo do próprio calibre, perseguem objetivos mais imediatos: a servidão, a libertação da pátria, a política, a beleza ou simplesmente a vodca, como é o caso de Denis Davýdov; outros têm objetivos remotos: Deus, a vida depois da morte, o bem da humanidade etc. Os melhores dentre eles são realistas e retratam a vida como ela é, mas, pelo fato, de cada linha estra impregnada, como se fora de um suco, da consciência do objetivo, você, além da vida como é, também sente como ela deveria ser, e é isso que o cativa.

E nós? Nós! Nós representamos a vida como ela é, e ponto final... Além disso não vamos nem a chicotada. Não temos objetivos imediatos nem remotos, e em nossa alma não há nada de nada. Não temos concepção política, não acreditamos na revolução, não temos um Deus, não temos medo de assombração, e, quanto a mim, nem mesmo a morte e a cegueira eu temo. Quem nada quer, nada espera e nada teme não pode ser artista. Seja isso doença ou não, pouco importa, mas deve-se reconhecer que a nossa situação não é das melhores. Não sei o que será de nós daqui a dez, vinte anos; talvez, até lá as circunstâncias tenham mudado, mas por enquanto seria leviandade esperar de nós algo que realmente preste, pouco importando se temos talento ou não. Escrevemos feito máquinas, submetendo-nos à ordem de há muito estabelecida, segundo a qual uns são funcionários, outros comerciantes, outros ainda são escritores... Você e Grigoróvitch acham que sou inteligente. Sim, sou inteligente pelo menos a ponto de não ocultar de mim mesmo a minha doença e de não mentir a mim mesmo e esconder o meu vazio com os farrapos alheios.

Anton Tchékhov em carta a Aleksei Suvórin, Miélikhovo, 25 de novembro de 1892.
LÍNGUA DE BUROCRATAS
“Outrossim” e “em conformidade com” são invenções dos burocratas. Leio e tenho engulho. Os jovens, particularmente, escrevem muito mal. São obscuros, frios e deselegantes; os filhos da puta escrevem como se estivessem mortos e enterrados.

Anton Tchékhov em carta a Aleksei Suvórin, Miélikhovo, 24 de agosto de 1893.

17.6.08

"john"

- Entrei numa fase western aí.

- A tendência é essa.

- Vi uns 10 filmes de John Wayne.

- Gênio.

- Cara, Rastros de Ódio é foda!

- Aliás, John Ford.

- Pois é, Ford.

- Exatamente.

- O sujeito a cavalo pela neve.

- Atrás do que exatamente?

- Da menina.

- Seqüestrada.

- Isso. Por índios.

"leve"

por que não também suave?
algo como asas se batendo.
o andar leve de uma garça,
antigo pavilhão desativado.

por que sempre enérgico aço?
faca certa na exatidão veloz.
mãos que atingem a solidão,
segunda sinfonia de Sibelius.

por que não também liberto?
passo incerto, nunca em riste.
corrente escura sem demora,
o texto exato de quem falhou.

um verso como varal ao vento,
as paredes da última miragem.

16.6.08

"Fagulha" (Ana Cristina Cesar)

Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando.

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava...

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio.

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las.

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.

14.6.08

"aquário"

o que traz água
à chuva das primaveras.
nascente límpida
da qual se pode beber.
água da vida,
que vem do acúmulo dos tempos.
salvador cristalino, antena sem filtro.
ele entrará pelas cidades: sigam-no.
ali o grande segredo, à mesa da casa.
o passo das eras, o próximo delirante,
a marca de limo sobre o poço profundo.

"Por que será que não saiu na Veja?"


10.6.08

“hálito negro”

por não sermos parecidos
que precisamos nos amar.

parece confuso no início,
muitas vezes é até o fim.

não é sempre que as gargantas
gritam corra para o mesmo lado.

é necessário portanto um pouco,
ao menos o mínimo de fantasia,
entre os restos da nossa espécie,
entre lixo do bem e lixo do mal,

brotar vida de cada vinco em chamas.

amar é preciso e, amando, dizer adeus.
retomar o tombo, a constante ruptura
que mantém o movimento da tragédia.

“o louco apaixonado pela diva”

fala-se muito, diz-se muito pouco.
o movimento não faz muito mais.
o movimento engana, tabu maior.
o movimento é tábua de transferência,
a psique te pergunta, Freud no banheiro.
das coisas leves, malditas e fundas,
virá o gracejo do cinismo mitológico,
a idade do perdão, a idade do adeus
– a idade de dizer a idade de dizer a –
o infinito presságio, infinito refúgio,
solidão repartida em sorrisos técnicos.

6.6.08

“dilema dos amantes”

então aqui outra vez nós e mais alguma coisa.
é tudo sempre a mesma e outra alternativa.

o paradoxal tremor quase mórbido no ser amante
é o mesmo que vírgulas onde há pontos ruins.

e o sentir-se fora de deus, o ser nuvem com asma,
por outra pessoa que sente e dói de outras formas.

então dissipar-se até perder o sentido humano.
e entrar noutra bifurcação, a do aparente invisível,
e ainda assim não saber como dar o que sobra,
minério não fosse tamanha divagação de não se ter.

4.6.08

"half a hamlet"

a morte com ordem é a chance
de matar deus pela garganta
e olhar com ânsia o que apavora
o peito híbrido, de sangue irônico,
que não suporta segurar as tripas.
fazer fazer fazer, deixar vir o sono.

e mesmo massacrado, pela metade,
seguir até o fim, empurrar à frente,
juntar os cacos com as mãos cortadas.
não haverá crânios, a foice em riste
fará mármore o tronco sem cabeça.

e dizer mil vezes: “não é possível”,
mas seguir ainda, não ser tão bom.
homem pequeno, poeta faminto,
de olhos vagos, coração na mão,
perdido em discursos, preso à carne,
fugir das âncoras e dos penhascos.

e com menos da metade, só um toco,
quase o antigo feto ainda sem braços,
dar outra vez a volta e, desnorteado,
cair enfim de joelhos, o sorriso inútil,
e a dor no estômago de quem espera.