nas entrelinhas do pavor canônico
existe o afeto louco, desgovernado,
e essa alma tão sem nada, sifilítica.
difícil manobra ser espelho público,
para realizar em si ambições alheias
– ambições irreconhecíveis, latentes.
e logo abaixo das casas de mulheres,
logo abaixo da performance, da unha,
vejo sujo nosso jardim de orquídeas.
beleza plena que envergonha e mata,
vejo tinta nos cabelos, caras lavadas,
beleza vaga à qual nós damos nome.
difícil conceber a miopia dos sentidos
sem assumir em nós esse rastro podre,
beijo letal de uma boca roxa, carnívora.
28.11.07
26.11.07
"Os criminosos"
Aquilo que nos impele. Somos as palavras difíceis no fim de frases vagas. Somos aquilo que deu errado em nós. É preciso disso para se continuar vivendo. Saber ser o que se é, mesmo sabendo que aquilo que se é não passa do que somos e não deveríamos ter sido. Pobres os que são o que sempre quiseram ser. Estão mortos, os mortos sorriem constantemente, os mortos contam trajetórias. Porque morte é alívio. Morte é, por assim dizer, o início da vida contemplativa a que tanto aspiram hipócritas e gênios, um o tipo mais avançado do outro. Mas viver sangra. O sangue são pedaços de carne lambidos pela alma. Por isso o sangue é amor, sacrifício e, finalmente, despedida. Sobre o que deu certo nós apenas falamos. E fazemos em silêncio o desesperado jogo de tecer pedras com os próprios dedos.
Por exemplo, eu certamente sei que não deveria continuar a escrever este texto. Primeiro sei que o motivo pelo qual comecei a escrevê-lo já não é mais o meu motivo. É o de outra pessoa, outro qualquer coisa, através de mim. Não a noção rimbaudiana de “outro”, mercador de escravos e dinheiro ilícito, purificador de almas por não ser bom nem mau, por não precisar. Estou falando de um outro tipo de matemática. Aquela matemática que acontece enquanto pensamos que sabemos exatamente o que dizer. Como há dois minutos quando comecei aqui. Aquilo que reelege um presidente inapto, o que faz um filho nascer acéfalo apesar do imenso amor entre os copuladores. Aquilo que bebem os que promovem os acordos de paz. O que cala fundo o messias diante do próprio discurso, um pouco do que escorre pela boca do fraudador sobre a indiferença da beleza original.
De fato algo tão complicado que é quase um crime continuar com isso. Muitos sabem exatamente o que dizer. Deveriam morrer fuzilados ou ser de uma vez canonizados para virarem praça pública. Mas eles não sabem disso. Nós sabemos, nós os incompletos. Nós que vivemos querendo dizer algo e sabemos que não seria possível continuar. Nós que emprestamos livros com a desesperada função de marcar território. Nós os do eterno holocausto, os das canelas rachadas que carregam tonéis até a boca com o excremento dos que recebem medalhas – seus caixões feitos de madeira nobre. Nós que falamos por entre dentes coisas que não ouviriam nem mesmo se gritássemos. E nós não ouviríamos. Nós os ridículos falsificadores de suspiros, baseados na constante variável entre o mais absurdo mecanicismo maquiavélico e o absoluto respeito pelo temperamento explosivo das difíceis palavras no fim das frases impelidas.
Preciso terminar de uma vez sem tocar em nada. Não há mais tempo para aliterações. É preciso dizer a quem quiser ouvir que não temos outra vez a menor idéia, que tudo é um ciclo que se repete num eterno passado. É preciso fazer isso para conservar o tutano dos desejos mais secretos. Esses criminalizados. Os duvidosos que seguem reto. Os entrevados que jamais gritam. Os que esperam lhes abrirem as portas com sorrisos e sem perguntas. Os passíveis de caramujo. Os que se mantém puros em todas as extensões de suas vidas. Os encatarrados de nariz seco, mãos imundas e unhas sujas, quebradiças. Os que seguem apanhando e nunca reclamam de nada. Estão tristes, mas nunca derrotados. Eles são o que hoje as hienas chamam petróleo. Os aniquilados sem direito voltarão milhões de vezes e o rei estará preso em madeira de lei, ainda apodrecendo. Voltarão os de quem não se pode esperar nada que não seja esperar qualquer coisa e como isso é bom.
Por exemplo, eu certamente sei que não deveria continuar a escrever este texto. Primeiro sei que o motivo pelo qual comecei a escrevê-lo já não é mais o meu motivo. É o de outra pessoa, outro qualquer coisa, através de mim. Não a noção rimbaudiana de “outro”, mercador de escravos e dinheiro ilícito, purificador de almas por não ser bom nem mau, por não precisar. Estou falando de um outro tipo de matemática. Aquela matemática que acontece enquanto pensamos que sabemos exatamente o que dizer. Como há dois minutos quando comecei aqui. Aquilo que reelege um presidente inapto, o que faz um filho nascer acéfalo apesar do imenso amor entre os copuladores. Aquilo que bebem os que promovem os acordos de paz. O que cala fundo o messias diante do próprio discurso, um pouco do que escorre pela boca do fraudador sobre a indiferença da beleza original.
De fato algo tão complicado que é quase um crime continuar com isso. Muitos sabem exatamente o que dizer. Deveriam morrer fuzilados ou ser de uma vez canonizados para virarem praça pública. Mas eles não sabem disso. Nós sabemos, nós os incompletos. Nós que vivemos querendo dizer algo e sabemos que não seria possível continuar. Nós que emprestamos livros com a desesperada função de marcar território. Nós os do eterno holocausto, os das canelas rachadas que carregam tonéis até a boca com o excremento dos que recebem medalhas – seus caixões feitos de madeira nobre. Nós que falamos por entre dentes coisas que não ouviriam nem mesmo se gritássemos. E nós não ouviríamos. Nós os ridículos falsificadores de suspiros, baseados na constante variável entre o mais absurdo mecanicismo maquiavélico e o absoluto respeito pelo temperamento explosivo das difíceis palavras no fim das frases impelidas.
Preciso terminar de uma vez sem tocar em nada. Não há mais tempo para aliterações. É preciso dizer a quem quiser ouvir que não temos outra vez a menor idéia, que tudo é um ciclo que se repete num eterno passado. É preciso fazer isso para conservar o tutano dos desejos mais secretos. Esses criminalizados. Os duvidosos que seguem reto. Os entrevados que jamais gritam. Os que esperam lhes abrirem as portas com sorrisos e sem perguntas. Os passíveis de caramujo. Os que se mantém puros em todas as extensões de suas vidas. Os encatarrados de nariz seco, mãos imundas e unhas sujas, quebradiças. Os que seguem apanhando e nunca reclamam de nada. Estão tristes, mas nunca derrotados. Eles são o que hoje as hienas chamam petróleo. Os aniquilados sem direito voltarão milhões de vezes e o rei estará preso em madeira de lei, ainda apodrecendo. Voltarão os de quem não se pode esperar nada que não seja esperar qualquer coisa e como isso é bom.
Mas na verdade não é bom e preciso parar imediatamente. Não deveria nem mesmo ter começado. O que nos impele não escolhe sentido, por isso não adianta se lamentar. Melhor não fazer, melhor adotar uma religião, um bom plano de saúde, um amor caridoso que nos encante pelo seu cálido charme vazio de sentido. Estamos no meio das multidões, dos pântanos concretos de ferro e carne e barulho, estamos nas canecas cheias e nos corações enregelados. Estamos sozinhos e não sabemos para onde ir. Nós os crentes na beleza, os idiotas inveterados, os que apenas balbuciam na imensidão de verdades desconhecidas. Fazemos a volta e nos calamos. Olhamos ao redor, fraquejamos, pensamos em preces, andamos mais rápido. Muitos pararam, perguntaram: “Para onde?”. Todos morreram. É preciso disso tudo porque não deveríamos continuar, dar o passo no escuro. Pular no imprevisível que, obviamente, também já foi santificado pelos corajosos com mil olhos. Mas alguém, às vezes, precisa cometer o crime.
25.11.07
"Nada e Tudo"
Olhou para ele e disse: “gosto de você porque você é tudo e nada ao mesmo tempo”. Ele não entendeu. Mas gostou. Anotou num papel. Depois se amaram violentamente por debaixo das cobertas, como em qualquer casa de família, depois da meia-noite, quando as crianças já estão dormindo, com as orelhas grudadas atrás da porta.
“Você é liberal, faz o meu tipo. Tenho nojo de certos homens. Contigo é só excitação”. Ele não entendeu, mas dessa vez pelo menos fingiu que entendeu. Beijaram-se torrencialmente e depois fizeram as pazes por uma briga da qual nenhum dos dois se lembrava mais, por mais que os dois chorassem copiosamente, até que ela se lembrou: “Foi quando você me confundiu com outra na calçada do edifício”.
“Gosto de extremos. Beijaria você na boca agora, mas o que me interessam são os teus demônios internos”. Ele não entendeu novamente, mas dessa vez se aborreceu. “Não tenho demônios nem anjos internos”, disse a ela. “Sou apenas isso que você está vendo e, em breve, nem isso”.
Ela mudou de assunto, era melhor:
“Sonhei que estava pulando pela janela. Duas vezes na mesma noite. Na segunda vez eu conseguia voar. Na primeira foi lona”. Ele esperou um pouco e não disseram nada. Depois ela disse outra vez: “Sonhar com a própria morte é sinal de sorte”. Ele finalmente entendeu, logo depois de ver pela janela um tênis amarrado pelo cadarço num fio de alta tensão. Despediram-se debaixo de uma chuva fina, as mãos dadas, o céu vermelho do final de um verão.
Ela voltou correndo para casa, fugindo dos respingos e da libido aprisionada. Ele atravessou a rua e morreu atropelado por um táxi. O taxista não parou para prestar ajuda e chorou dali a cinco minutos, com a cabeça encostada no volante, parado num terreno baldio. Ninguém sabe se todos eles tornariam a se encontrar no céu.
24.11.07
“soneto da velha coisa inevitável”
o tempo nunca espera,
ele nunca nos esperou.
e a nós dois foi entregue
um interstício furta-cor.
essa é só uma cartinha
a quem o tempo levou
junto aos restos da rua,
à profusão do silêncio.
é estranho esse engasgo,
essas formas desapegadas,
que se enrugam só quando
falamos demais em amor,
doemos demais por amor,
e amamos só o que se foi.
ele nunca nos esperou.
e a nós dois foi entregue
um interstício furta-cor.
essa é só uma cartinha
a quem o tempo levou
junto aos restos da rua,
à profusão do silêncio.
é estranho esse engasgo,
essas formas desapegadas,
que se enrugam só quando
falamos demais em amor,
doemos demais por amor,
e amamos só o que se foi.
20.11.07
"tirem as crianças da sala"
a vida é mesmo um precipício.
há que se aprender a não voltar,
há que se pular de peito aberto
e não deixar carta de instrução.
mas, por favor, olhar para cima.
nunca olhar para baixo, a menos
que se vá desistir de dar o pulo.
a vida, como precipício, é claro,
não é segura.
é susto, logo de início, impulso,
frio na barriga.
no meio a vida é dúvida, tristeza,
lembrança curta
daquilo que não mais se lembra e
que facilmente ia.
no fim a vida é o medo, tropeço,
arrependimento,
e paz, pela obrigatoriedade nula
de só se ter paz.
sempre a precisão inútil das asas,
a força irreparável contra o muro,
os olhos abertos na direção irreal.
a vida é mesmo um precipício
– e tão longa, tão sem retorno!
que assim que um pula na vida
é quando ele sabe que é morto.
há que se aprender a não voltar,
há que se pular de peito aberto
e não deixar carta de instrução.
mas, por favor, olhar para cima.
nunca olhar para baixo, a menos
que se vá desistir de dar o pulo.
a vida, como precipício, é claro,
não é segura.
é susto, logo de início, impulso,
frio na barriga.
no meio a vida é dúvida, tristeza,
lembrança curta
daquilo que não mais se lembra e
que facilmente ia.
no fim a vida é o medo, tropeço,
arrependimento,
e paz, pela obrigatoriedade nula
de só se ter paz.
sempre a precisão inútil das asas,
a força irreparável contra o muro,
os olhos abertos na direção irreal.
a vida é mesmo um precipício
– e tão longa, tão sem retorno!
que assim que um pula na vida
é quando ele sabe que é morto.
17.11.07
"a fuga"
onde foste parar,
amor sem palavra?
será frio o lugar?
é quente? úmido?
passado ou futuro,
o tempo que foste?
tempo, sem tempo?
onde foste parar,
que já não escutas
minha aflição de ti?
onde paraste enfim,
para me deixar aqui
com velhos clichês?
onde paraste, amor,
para desmembrar meu
peito em tão pequenas
partes estas que juntas
são irreconhecíveis?
diz para que alturas,
amor sem palavra,
levaste minha fome?
é possível sorrir, rimar,
enquanto tua mão suada
enfrenta o frio sozinha?
onde foste que já não venta?
onde foste que a rua é crua?
onde foste que não há anos?
onde fui? por que paramos?
amor sem palavra?
será frio o lugar?
é quente? úmido?
passado ou futuro,
o tempo que foste?
tempo, sem tempo?
onde foste parar,
que já não escutas
minha aflição de ti?
onde paraste enfim,
para me deixar aqui
com velhos clichês?
onde paraste, amor,
para desmembrar meu
peito em tão pequenas
partes estas que juntas
são irreconhecíveis?
diz para que alturas,
amor sem palavra,
levaste minha fome?
é possível sorrir, rimar,
enquanto tua mão suada
enfrenta o frio sozinha?
onde foste que já não venta?
onde foste que a rua é crua?
onde foste que não há anos?
onde fui? por que paramos?
16.11.07
"São Paulo não está"
São Paulo não está
nas discussões acaloradas
sobre o que não é São Paulo.
São Paulo nunca estaria
nas cabeças esmagadas sobre os meio-fios,
nos postes apagados, nós sozinhos à procura,
na fumaça que respiramos em silêncio e seguimos,
no som que faz pensar em deus e vem do Chá,
nas catacumbas submersas, nos assustados que apenas estão,
em Mario de Andrade atrás de amor na Consolação,
no casal que não conversa há anos e sorri igual,
nas mulatas Di Cavalcanti, aquele punheteiro genial,
nos dedos grossos de Candido não tão cândido Portinari.
São Paulo não está
nos risíveis senhores mijados e alegres,
na perda da virgindade do gênio baiano,
nos arranha-céus iguais a Tóquio ou Hong Kong,
não está nos seus japoneses vindos de Quixeramobim.
São Paulo não está
entre uma esquina escura e a história forjada,
nos olhares caipiras para seus corredores vazios e largos,
suas pessoas que nem formigas,
seus colaboradores imaginários,
sua caretice e suas matinês de putaria,
sua rotina supervalorizada e poética,
suas mensagens engarrafadas lançadas ao mar,
seu mar uma fila interminável de concreto em movimento.
muito menos São Paulo estará
nos seus mimetismos e sua marginália.
São Paulo não está
nas ruas de São Paulo,
na solidão indiscutível de São Paulo,
muito menos São Paulo está
nas pessoas que habitam São Paulo,
no beijo único sem abraço,
no cumprimento entre estranhos.
São Paulo não tem tamanho,
não é grande nem pequena,
não está em mim nem em você.
por isso é possível amar São Paulo.
porque São Paulo não está em nós.
nas discussões acaloradas
sobre o que não é São Paulo.
São Paulo nunca estaria
nas cabeças esmagadas sobre os meio-fios,
nos postes apagados, nós sozinhos à procura,
na fumaça que respiramos em silêncio e seguimos,
no som que faz pensar em deus e vem do Chá,
nas catacumbas submersas, nos assustados que apenas estão,
em Mario de Andrade atrás de amor na Consolação,
no casal que não conversa há anos e sorri igual,
nas mulatas Di Cavalcanti, aquele punheteiro genial,
nos dedos grossos de Candido não tão cândido Portinari.
São Paulo não está
nos risíveis senhores mijados e alegres,
na perda da virgindade do gênio baiano,
nos arranha-céus iguais a Tóquio ou Hong Kong,
não está nos seus japoneses vindos de Quixeramobim.
São Paulo não está
entre uma esquina escura e a história forjada,
nos olhares caipiras para seus corredores vazios e largos,
suas pessoas que nem formigas,
seus colaboradores imaginários,
sua caretice e suas matinês de putaria,
sua rotina supervalorizada e poética,
suas mensagens engarrafadas lançadas ao mar,
seu mar uma fila interminável de concreto em movimento.
muito menos São Paulo estará
nos seus mimetismos e sua marginália.
São Paulo não está
nas ruas de São Paulo,
na solidão indiscutível de São Paulo,
muito menos São Paulo está
nas pessoas que habitam São Paulo,
no beijo único sem abraço,
no cumprimento entre estranhos.
São Paulo não tem tamanho,
não é grande nem pequena,
não está em mim nem em você.
por isso é possível amar São Paulo.
porque São Paulo não está em nós.
13.11.07
"vigília"
já tive a ti demais,
tradição.
já me puseste no berço,
já menti pelo teu pecado,
já vivi pela tua satisfação.
já tive a ti demais,
solidão.
teu cerne, meu William Blake,
teu vácuo já não me compensa.
tuas cinzas nas minhas unhas.
já tive a tudo demais,
e nunca.
tradição.
já me puseste no berço,
já menti pelo teu pecado,
já vivi pela tua satisfação.
já tive a ti demais,
solidão.
teu cerne, meu William Blake,
teu vácuo já não me compensa.
tuas cinzas nas minhas unhas.
já tive a tudo demais,
e nunca.
"O poeta"
Esta história, eu sei, já deveria ter sido contada. Mas me sinto ainda extremamente preso a ela, de modo que seria sempre parcial, em meu favor, ao lembrá-la. Depois percebi que guardá-la por isso seria burrice. Serei parcial agora, e sempre, enquanto sempre for agora.
Na época eu bebia muito. O resto é bem fácil imaginar: rondava as sinucas e os antros mais chinfrins até o fim da noite. Normalmente eu me tornava melancólico a partir de certa hora, e isso me levava para um lugar dentro de mim onde eu me sentia de certa forma confortável, cheio de ódio e senso de dignidade. Um lugar de muito sofrimento e amor próprio, de confusão sobre o sentido da dignidade. Normalmente eu acabava embrutecido, vomitando palavras desconexas num caderno de bolso, apenas para me sentir algo valioso, e isso era bastante estúpido e excêntrico para a maioria das pessoas – eu incluso – ainda mais com o aspecto deplorável que eu podia apresentar ao final de certas noites mal-sucedidas no meu não tão estranho jogo de esconder.
Tais idéias nebulosas sobre mim mesmo, as mais egoístas e extremadas, atraíam todo tipo de canalha, mulheres da vida, bêbados intratáveis, pequenos contrabandistas atormentados pelo consumo do próprio vício e alguns poetas ensebados. Impossível, no entanto, determinar o talento dos poetas, uma vez que eu também me considerava um poeta e estava inseguro quanto a mim mesmo: uma velha desculpa para a preguiça. E quando se está inseguro, ou preguiçoso, é impossível ser honesto.
Os poetas sempre foram tipos difíceis de classificar, afinal. Como a maior parte da poesia feita, pareciam todos um truque barato. Bons poetas poderiam ser ótimos canalhas ou corolas de igreja, os chamados “papa-hóstia”. Ao mesmo tempo, péssimos poetas poderiam ser cafetões disfarçados. Em suma, não havia no que se basear. E, normalmente, quanto mais uma pessoa me impressiona pelo seu intelecto, mais me assusta pela sofisticação da sua maldade. E puro intelecto é maldade pura.
De qualquer modo, eu também era considerado um poeta pelos meus mais chegados, e o que significava isso? Era mais ou menos a forma como eles esperavam que eu me comportasse: de maneira delicada e tacanha, com muita acidez e intensidade, de preferência com alguns rompantes dramáticos, mas sem perder a elegância. Eu, é claro, desempenhando o papel nos conformes do sistema, tentava negar tudo como um verdadeiro poeta, e dava os maiores vexames. Falava alto e cuspia, derrubava copos, chorava em ombros estranhos e, muitas vezes, entrava no sopapo por alguma divida de jogo – mesmo que eu nunca jogasse jogos de azar, pois sempre me pareceram redundantes.
Éramos na época alguns poucos amigos ainda. Havia os gêmeos, o diplomata e a “irmã mais velha”. Embora eu detestasse sinuca e não soubesse, por bondade, segurar um taco, ficava por ali, feito mosca varejeira, no balcão do boteco de fachada néon. Aquilo era um reduto de servidores públicos aposentados, punguistas com artrite e garotos de programa drogados demais, acompanhados de velhas viciadas ressequidas e vestidas com trapos, que dançavam até de manhã ao som de Jerry Adriani na juke box e seriam capazes de conversar contigo aos perdigotos sobre a crise dos mísseis em Cuba ou as crianças assassinadas da Chechênia. Aparentemente os motoristas de táxi eram os vendedores de cocaína que, por algum motivo secreto, também trocavam a droga por caixas leite. Os jogadores de sinuca mais velhos pareciam esconder alguma coisa quando olhavam para você.
Havia ali, como eu disse, uma juke box. Àquela altura da madrugada vocês podem imaginar o tipo de repertório. Basicamente música sertaneja e evangélica. Aquilo era bastante moderno. Um bar onde havia brigas freqüentes, onde uma vez vi um senhor de idade ser espancado por um selvagem de não mais que trinta anos com um soco inglês. Onde passavam droga e havia uma banca de apostas para os cavalinhos. E, basicamente, o que se ouvia lá dentro eram canções pregando esperança e boa ordem. Músicas de reabilitação e paz com Jeová. E que paz enlouquecida era aquela na qual vivíamos e de que tanto sinto falta?
Minha percepção das coisas ficava bastante afetada com a bebida e a fumaça. E era exatamente por isso que eu me sentia mais e mais perceptivo. Segurei uma das mesas de sinuca para os meus amigos, que estavam do lado de fora conversando sobre a passagem do tempo no cinema malaio. Então um senhor de certa idade se aproximou, com um olhar meio malandro, meio ordinário, e espremeu minha mão na mesa com a barriga, dura feito pedra.
- Meu bom jovem, você parece um rapaz loquaz – ele disse em seguida.
Tirei a mão debaixo da barriga dele e massageei cuidadosamente com a outra mão.
- O senhor percebe... A mesa já foi ocupada.
- Escuta, garoto, que tal ir lá colocar mais uma música, comprar um sorvete?
Havia uma cicatriz enorme atravessando o seu rosto e a unha do seu dedo mínimo era maior que as outras. Já haviam me dito uma vez para tomar cuidado com sujeitos com a unha do dedo mínimo maior que as outras.
- Tudo bem, mas o senhor vai jogar contra quem?
- Contra quem pagar – e me jogou uma ficha de música.
Você poderia ficar falando com um sujeito como este durante horas e ainda assim não saberia sobre o que ele está falando. Então resolvi aceitar a sugestão, apanhei a ficha no ar e pus para tocar uma música antiga que falava de crimes de amor e chuva. O velho levantou o chapéu na minha direção e disse:
- Nunca se esqueça, garoto: “a genialidade não anula a medula”.
Sorri de volta sem entender mais uma vez, pensando que talvez aquilo ficasse bom num poema do Manoel Bandeira (já que qualquer coisa ficava boa nos poemas do Manoel Bandeira), e fui até o balcão atrás do meu braço de ouro líquido. O que significava tudo aquilo? Aquela fumaça se esvaindo de vidas desmembradas em pequenos pedaços e aquelas mulheres com sinas definidas, emagrecidas pelo tempo. Aquelas pessoas que pareciam flutuar pelo mundo e que ninguém via. Não porque houvesse algo melhor para se ver. Mas justamente porque não havia algo melhor. Então não se via mais nada. Éramos pessoas aviltadas com problemas de insônia, cigarro após cigarro em becos sem saída, atrás de restos que nem os ratos haviam se dignado a aceitar. Éramos gritos entrevados enlaçados em espíritos penados, birras acumuladas em tempos de chuva forte, bocas mastigando bocas e ruminando algemas invisíveis em cubículos que diminuíam conforme os dias passavam. Não havia uma revolução ou uma guerra ou um partido ou um tirano ou uma ditadura em quem pudéssemos pendurar o cabide de uma culpa herdada, e que medisse nossos esforços. Vagávamos todos, imponderáveis, tolos, rumo a dias melhores, rumo a potes de ouro e duendes pegajosos. Dias melhores que nunca antes nem depois foram vistos desde que recebemos o peso da nossa tradição secular suplicante. Dias vivos apenas nas cores esmaecidas da nossa percepção deslocada.
Eu desenhava figuras geométricas no caderno. Antes havia feito um rapaz enforcado.
- Com licença, você é poeta, certo?
Olhei e vi um homem, melhor, um hominídeo com péssimo aspecto físico e semblante esquizofrênico, que parecia assim um poeta, por motivos óbvios. Uma flor na lapela e bafo. Não respondi nada. É o melhor modo de lidar com poetas. Então ele disse mais uma vez:
- Um poeta, muito bem... Vi logo que era... Pelo caderninho pautado.
- Olha, cara, eu só estava desenhando...
- Escuta bem: leia Rilke. É o maior poeta de todos. Leia Rilke antes e depois do banho. Leia Rilke na privada, durante as refeições, até no escuro, leia Rilke. Decore as elegias, afague seus anjos e suas esfinges, mas leia no original!
Ele mesmo não devia ler Rilke há muito tempo. Quando dizia mais uma vez “leia Rilke”, escorregou no que parecia ser o jantar devolvido de alguém, e tive que recolhê-lo. Coloquei o homem sentado num banco e ele imediatamente abraçou o balcão e pediu duas cervejas. Como um raio, se recompôs e serviu nossos copos. Não parecia comandar os próprios movimentos. Seus olhos tinham qualquer coisa de muito mal esclarecida. Tilintavam como gelo num copo de uísque. Pareciam mais próximos da origem das coisas que os olhos da maioria. Mas estavam próximos demais. Pareciam enlouquecidos justamente por isso.
Ele falava sem parar. Falou quase a noite toda sobre a métrica de Rilke, sobre como era necessário escrever poemas como quem esculpi uma pedra, e que eu deveria me preocupar com as cores de cada palavra ao compor versos. Ele dizia assim mesmo: “compor versos”. Parecia um sujeito muito antigo, mas não tinha ainda 30 anos.
Bebi muito na conta dele aquela noite. Meus amigos já haviam pagado as suas e as minhas e estavam saindo, quando eu disse que ia ficar, que tinha conhecido um poeta, um poeta de verdade, e que ele estava pagando as cervejas. Eu falava com uma ingenuidade pouco convincente, e nem eu mesmo acreditava em mim.
Meus amigos então foram embora e disseram para eu tomar cuidado. Ele que tome cuidado, eu disse, e apontei para o homem, que entornava todas no balcão. Sentei ao lado dele, ergui meu copo e disse com solenidade:
- Um brinde à poesia!
Sem me olhar ele disparou um tapa violento no meu copo, que estourou na parede. Os jogadores ergueram seus tacos, os bêbados acordaram, a garçonete molhou um cliente e a música repentinamente, como tudo naquela noite, acabou.
Os olhos do homem ficaram ainda mais vidrados, mas escureceram por dentro e em volta. Ele se curvou ainda mais no banco, como se espinhos lhe perfurassem a pele. Alguma coisa parecia perto de explodir dentro da sua cabeça. Alguma coisa que não era dele e também não me pertencia, mas que de alguma forma havia sido colocada entre nós. Ou a falta de muitas coisas. Ou tudo isso reunido. Seus olhos ficaram brancos e seu rosto, embotado.
Eu resolvi sacudi-lo pelos ombros e perguntei o que estava acontecendo, dando-lhe tapinhas na cara. Mas ninguém pergunta a um louco o que é a loucura esperando obter uma resposta coerente.
Ele apenas me olhou e disse, salivando pelos cantos da boca:
- Fique aqui. Não vá embora. Vou pegar um pouco de cocaína. Eu compro mais cerveja. A gente bebe lá em casa.
Então pensei, “foda-se Rilke”, e saí para vomitar na calçada. Depois fui para casa, poeticamente, e sonhei com frases coloridas.
Na época eu bebia muito. O resto é bem fácil imaginar: rondava as sinucas e os antros mais chinfrins até o fim da noite. Normalmente eu me tornava melancólico a partir de certa hora, e isso me levava para um lugar dentro de mim onde eu me sentia de certa forma confortável, cheio de ódio e senso de dignidade. Um lugar de muito sofrimento e amor próprio, de confusão sobre o sentido da dignidade. Normalmente eu acabava embrutecido, vomitando palavras desconexas num caderno de bolso, apenas para me sentir algo valioso, e isso era bastante estúpido e excêntrico para a maioria das pessoas – eu incluso – ainda mais com o aspecto deplorável que eu podia apresentar ao final de certas noites mal-sucedidas no meu não tão estranho jogo de esconder.
Tais idéias nebulosas sobre mim mesmo, as mais egoístas e extremadas, atraíam todo tipo de canalha, mulheres da vida, bêbados intratáveis, pequenos contrabandistas atormentados pelo consumo do próprio vício e alguns poetas ensebados. Impossível, no entanto, determinar o talento dos poetas, uma vez que eu também me considerava um poeta e estava inseguro quanto a mim mesmo: uma velha desculpa para a preguiça. E quando se está inseguro, ou preguiçoso, é impossível ser honesto.
Os poetas sempre foram tipos difíceis de classificar, afinal. Como a maior parte da poesia feita, pareciam todos um truque barato. Bons poetas poderiam ser ótimos canalhas ou corolas de igreja, os chamados “papa-hóstia”. Ao mesmo tempo, péssimos poetas poderiam ser cafetões disfarçados. Em suma, não havia no que se basear. E, normalmente, quanto mais uma pessoa me impressiona pelo seu intelecto, mais me assusta pela sofisticação da sua maldade. E puro intelecto é maldade pura.
De qualquer modo, eu também era considerado um poeta pelos meus mais chegados, e o que significava isso? Era mais ou menos a forma como eles esperavam que eu me comportasse: de maneira delicada e tacanha, com muita acidez e intensidade, de preferência com alguns rompantes dramáticos, mas sem perder a elegância. Eu, é claro, desempenhando o papel nos conformes do sistema, tentava negar tudo como um verdadeiro poeta, e dava os maiores vexames. Falava alto e cuspia, derrubava copos, chorava em ombros estranhos e, muitas vezes, entrava no sopapo por alguma divida de jogo – mesmo que eu nunca jogasse jogos de azar, pois sempre me pareceram redundantes.
Éramos na época alguns poucos amigos ainda. Havia os gêmeos, o diplomata e a “irmã mais velha”. Embora eu detestasse sinuca e não soubesse, por bondade, segurar um taco, ficava por ali, feito mosca varejeira, no balcão do boteco de fachada néon. Aquilo era um reduto de servidores públicos aposentados, punguistas com artrite e garotos de programa drogados demais, acompanhados de velhas viciadas ressequidas e vestidas com trapos, que dançavam até de manhã ao som de Jerry Adriani na juke box e seriam capazes de conversar contigo aos perdigotos sobre a crise dos mísseis em Cuba ou as crianças assassinadas da Chechênia. Aparentemente os motoristas de táxi eram os vendedores de cocaína que, por algum motivo secreto, também trocavam a droga por caixas leite. Os jogadores de sinuca mais velhos pareciam esconder alguma coisa quando olhavam para você.
Havia ali, como eu disse, uma juke box. Àquela altura da madrugada vocês podem imaginar o tipo de repertório. Basicamente música sertaneja e evangélica. Aquilo era bastante moderno. Um bar onde havia brigas freqüentes, onde uma vez vi um senhor de idade ser espancado por um selvagem de não mais que trinta anos com um soco inglês. Onde passavam droga e havia uma banca de apostas para os cavalinhos. E, basicamente, o que se ouvia lá dentro eram canções pregando esperança e boa ordem. Músicas de reabilitação e paz com Jeová. E que paz enlouquecida era aquela na qual vivíamos e de que tanto sinto falta?
Minha percepção das coisas ficava bastante afetada com a bebida e a fumaça. E era exatamente por isso que eu me sentia mais e mais perceptivo. Segurei uma das mesas de sinuca para os meus amigos, que estavam do lado de fora conversando sobre a passagem do tempo no cinema malaio. Então um senhor de certa idade se aproximou, com um olhar meio malandro, meio ordinário, e espremeu minha mão na mesa com a barriga, dura feito pedra.
- Meu bom jovem, você parece um rapaz loquaz – ele disse em seguida.
Tirei a mão debaixo da barriga dele e massageei cuidadosamente com a outra mão.
- O senhor percebe... A mesa já foi ocupada.
- Escuta, garoto, que tal ir lá colocar mais uma música, comprar um sorvete?
Havia uma cicatriz enorme atravessando o seu rosto e a unha do seu dedo mínimo era maior que as outras. Já haviam me dito uma vez para tomar cuidado com sujeitos com a unha do dedo mínimo maior que as outras.
- Tudo bem, mas o senhor vai jogar contra quem?
- Contra quem pagar – e me jogou uma ficha de música.
Você poderia ficar falando com um sujeito como este durante horas e ainda assim não saberia sobre o que ele está falando. Então resolvi aceitar a sugestão, apanhei a ficha no ar e pus para tocar uma música antiga que falava de crimes de amor e chuva. O velho levantou o chapéu na minha direção e disse:
- Nunca se esqueça, garoto: “a genialidade não anula a medula”.
Sorri de volta sem entender mais uma vez, pensando que talvez aquilo ficasse bom num poema do Manoel Bandeira (já que qualquer coisa ficava boa nos poemas do Manoel Bandeira), e fui até o balcão atrás do meu braço de ouro líquido. O que significava tudo aquilo? Aquela fumaça se esvaindo de vidas desmembradas em pequenos pedaços e aquelas mulheres com sinas definidas, emagrecidas pelo tempo. Aquelas pessoas que pareciam flutuar pelo mundo e que ninguém via. Não porque houvesse algo melhor para se ver. Mas justamente porque não havia algo melhor. Então não se via mais nada. Éramos pessoas aviltadas com problemas de insônia, cigarro após cigarro em becos sem saída, atrás de restos que nem os ratos haviam se dignado a aceitar. Éramos gritos entrevados enlaçados em espíritos penados, birras acumuladas em tempos de chuva forte, bocas mastigando bocas e ruminando algemas invisíveis em cubículos que diminuíam conforme os dias passavam. Não havia uma revolução ou uma guerra ou um partido ou um tirano ou uma ditadura em quem pudéssemos pendurar o cabide de uma culpa herdada, e que medisse nossos esforços. Vagávamos todos, imponderáveis, tolos, rumo a dias melhores, rumo a potes de ouro e duendes pegajosos. Dias melhores que nunca antes nem depois foram vistos desde que recebemos o peso da nossa tradição secular suplicante. Dias vivos apenas nas cores esmaecidas da nossa percepção deslocada.
Eu desenhava figuras geométricas no caderno. Antes havia feito um rapaz enforcado.
- Com licença, você é poeta, certo?
Olhei e vi um homem, melhor, um hominídeo com péssimo aspecto físico e semblante esquizofrênico, que parecia assim um poeta, por motivos óbvios. Uma flor na lapela e bafo. Não respondi nada. É o melhor modo de lidar com poetas. Então ele disse mais uma vez:
- Um poeta, muito bem... Vi logo que era... Pelo caderninho pautado.
- Olha, cara, eu só estava desenhando...
- Escuta bem: leia Rilke. É o maior poeta de todos. Leia Rilke antes e depois do banho. Leia Rilke na privada, durante as refeições, até no escuro, leia Rilke. Decore as elegias, afague seus anjos e suas esfinges, mas leia no original!
Ele mesmo não devia ler Rilke há muito tempo. Quando dizia mais uma vez “leia Rilke”, escorregou no que parecia ser o jantar devolvido de alguém, e tive que recolhê-lo. Coloquei o homem sentado num banco e ele imediatamente abraçou o balcão e pediu duas cervejas. Como um raio, se recompôs e serviu nossos copos. Não parecia comandar os próprios movimentos. Seus olhos tinham qualquer coisa de muito mal esclarecida. Tilintavam como gelo num copo de uísque. Pareciam mais próximos da origem das coisas que os olhos da maioria. Mas estavam próximos demais. Pareciam enlouquecidos justamente por isso.
Ele falava sem parar. Falou quase a noite toda sobre a métrica de Rilke, sobre como era necessário escrever poemas como quem esculpi uma pedra, e que eu deveria me preocupar com as cores de cada palavra ao compor versos. Ele dizia assim mesmo: “compor versos”. Parecia um sujeito muito antigo, mas não tinha ainda 30 anos.
Bebi muito na conta dele aquela noite. Meus amigos já haviam pagado as suas e as minhas e estavam saindo, quando eu disse que ia ficar, que tinha conhecido um poeta, um poeta de verdade, e que ele estava pagando as cervejas. Eu falava com uma ingenuidade pouco convincente, e nem eu mesmo acreditava em mim.
Meus amigos então foram embora e disseram para eu tomar cuidado. Ele que tome cuidado, eu disse, e apontei para o homem, que entornava todas no balcão. Sentei ao lado dele, ergui meu copo e disse com solenidade:
- Um brinde à poesia!
Sem me olhar ele disparou um tapa violento no meu copo, que estourou na parede. Os jogadores ergueram seus tacos, os bêbados acordaram, a garçonete molhou um cliente e a música repentinamente, como tudo naquela noite, acabou.
Os olhos do homem ficaram ainda mais vidrados, mas escureceram por dentro e em volta. Ele se curvou ainda mais no banco, como se espinhos lhe perfurassem a pele. Alguma coisa parecia perto de explodir dentro da sua cabeça. Alguma coisa que não era dele e também não me pertencia, mas que de alguma forma havia sido colocada entre nós. Ou a falta de muitas coisas. Ou tudo isso reunido. Seus olhos ficaram brancos e seu rosto, embotado.
Eu resolvi sacudi-lo pelos ombros e perguntei o que estava acontecendo, dando-lhe tapinhas na cara. Mas ninguém pergunta a um louco o que é a loucura esperando obter uma resposta coerente.
Ele apenas me olhou e disse, salivando pelos cantos da boca:
- Fique aqui. Não vá embora. Vou pegar um pouco de cocaína. Eu compro mais cerveja. A gente bebe lá em casa.
Então pensei, “foda-se Rilke”, e saí para vomitar na calçada. Depois fui para casa, poeticamente, e sonhei com frases coloridas.
"gauche"
existe o baiano
e existe a praga
do baiano.
existe o preconceito
e existe o baiano
da praga.
existe a praga
de quem lê baiano
preconceito.
e existe Drummond.
e existe a praga
do baiano.
existe o preconceito
e existe o baiano
da praga.
existe a praga
de quem lê baiano
preconceito.
e existe Drummond.
5.11.07
“menino apaixonado tropeça e cai de costas no asfalto”
“Entre os olhos e a coisa
cai a sombra,
e essa sombra
é a palavra pré-gravada”
(William S. Burroughs)
cai a sombra,
e essa sombra
é a palavra pré-gravada”
(William S. Burroughs)
...e você não está ali quando mente de costas, dentro da noite e minha reticência beatificada no caos urbano, em gritos e olhos cheios de incompreensão e mãos pegajosas que tremem facas sem fio, mas ouço o teu trabalho alheio, ouço teu barulho falho, essa espécie de ronronar dos infernos, um estalo no desapego do desassossego do sexo que bateu asas, como se o som fosse da fricção da coisa vindo, como se o declínio estivesse próximo do corpo inchado, adormecido de meios-fios, meas culpas, comedores cabisbaixos de paralelepípedos, em tom surdo e seco, devastador como a flor que não passa de plástico em olhos abertos de vidro, como nós, como um saco de ossos que se pulverizaram dentro do amor assusta-dor, quem me assusta é o som do que sai de dentro como meteoro explícito na carne sudorípara do teu desamparo repentinamente próximo, dedicado a mim este ruído, um som de tropeço e absinto, um som casal de poetas falidos em praças públicas, onde crianças não sabem o demônio que as espera e sorriem, sinto a tiara do ódio castrado presa à falha do couro cabeludo, e nem sei o que digo, é verdade, mas quem souber melhor do que eu tampouco deveria dizer, pois se sabe, contente-se, e boa passagem, mas sinto o vento deste rumor estrondoso no ouvido vindo de pontos suspensos em coletas digressivas na paz forjada da calma daquele sussurro banido do qual nem mais lembramos, este barulho abafado de sonhos se chocando, que faz suarem os meus sentidos e derrete minhas necessidades imediatas, que me faz ver santos nas esquinas das palavras desnecessárias de que tanto preciso para morrer nada além de aflito pela placidez da paz compulsória, som vazio e seco, som do seio surdo que não sai da tua sonora suposição de mim, por mais que eu tente te arrancar do vácuo deixando meu vermelho no teu braço, que pise fundo na imensidão da tua dúvida, dos abraços distorcidos em concordâncias desleais, na busca por migalhas do que de mim só existe em bocas entrecortadas no momento do choro despercebido no escuro do quarto, quando sou eu que tenho os dentes brilhantes e brancos, pavorosamente brancos, como Vlad Tepes da Romênia, no teu mundo de calcinhas e meias-calças vermelhas do qual fui mutilado pela faca das decisões sem ressalva, do que não volta atrás depois que se ouve o som, os cabelos em choque paralisando o tempo eterno, a espinha que se contorce no eixo sujo da tristeza irrevogável em movimentos tetraplégicos necessitados de um porém que não se quebre, apenas mais um garoto tombado na esquina do agora ou nunca, e é sempre este o som quando um coração se parte, quando um irmão desconhecido tropeça enquanto pensa em quem ama loucamente porque lhe deixa calmo, inconsciente como vim e como vou, na nulidade tranqüilizante, nos assobios dos caridosos embriagados, entre as árvores que acompanham o momento do som mais sorte da próxima vez, pernas como foices cálidas ou um sorriso rápido emprestado que mutila, quando as palavras se calam e entendo a verdade que grita e que nada pode ver, enquanto for apenas, e não tudo, tarde demais.
1.11.07
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