30.1.06

"Aprendendo a Viver ou A Vida Feliz dos Infelizes"

Quero falar sobre “Aprendendo a Viver”, compilação de crônicas de Clarice Lispector, escritas “ao correr da máquina”, nas palavras da própria, para o Jornal do Brasil, lida por mim em curso de viagem, pega emprestada de alma caridosa, sobre quem por acaso não sei nada a não ser que se chama Ana, usa aparelho nos dentes, tem cabelo afro e vai me levar ao show do Caetano Veloso em Santo Amaro da Purificação, su tierra nativa, como diria Vinicius de Moraes no seu elegante castelhano bêbado.

Adoro quando leio sobre uma felicidade que não é a minha felicidade, muito menos a de quem a escreve.

Clarice, nessa estranha compilação de textos bruxos, profundos na simplicidade de uma raiz exposta, alguns alucinados, como quando viu cores a mais no Jardim Botânico, mas todos escritos como se come um algodão doce, apesar de finais eminentemente trágicos e pessimistas, como por exemplo em O Impulso: Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei; ou em Banhos de Mar: Nunca mais? (parágrafo) Nunca mais. (parágrafo) Nunca; a Clarice dessas crônicas – porque ela só pode mesmo ter sido muitas mentirosas, até que, usando agora suas próprias palavras, comecei a mentir até a minha própria mentira e decaí tanto que a mentira eu a dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta, enfim, essa Clarice é como esse turbilhão, só que com muito talento para dizer a crueldade humana nos pequenos detalhes cotidianos, o inferno de não se poder ser múltiplo, apesar de todos os esforços para isso, ela fala sobre a felicidade pequena de um fruto de aroeira esmagado com a sola do pé ou no sal lambido dos braços na volta de bonde da praia de Olinda, todas são pequenas realizações que aproximam a escritora da verdade mais singela, aquela mesma que abraça o mundo e suga nossas tentativas, aquela que se repete como mantra sem nem ao menos podermos nos dar conta dela, e Clarice fala tudo como uma pessoa que nunca sorriu sem um propósito sério. Acho, sim, que quando ela sorri levemente, não é ela.

Em suma: como Lispector é triste, fala melhor sobre a felicidade porque, no caso dos tristes, ela é sempre menos insossa.

Agora, uma pérola Lispectoriana:

MAIS DO QUE UM JOGO DE PALAVRAS

O que eu sinto eu não ajo. O que ajo não penso. O que penso não sinto. Do que sei sou ignorante. Do que sinto não ignoro. Não me entendo e ajo como se me entendesse.
PS: o retrato de Clarice que ilustra a postagem foi pintado pelo grego Giorgio De Chirico.

21.1.06

“uma garota esquisita” (daniela szwertszarf)

a voz grossa deixa um arranhado
rastejando doce melancolia
pelas curvas do corpo
descem lentas gotas arranhando o que um dia
chamei de amor.

a voz grossa te resume em três palavras,
mulher mal-dita da minha esquina.
te resume assim.

indo pelas ruas, pelas esquinas
dobrando a infância, a caminho de casa,
num fim de mais um ontem,
antes que se fure o centro do teu destino
outra vez

toda vez

toda vez que teu olhar é percebido
pressentido
(desconfiando esperança)
quando é lambido na retina
penetrando – (lá no fundo, coração, rasga dentro)
que a minha vida é vagabunda como a tua.

as gotas explodem no corpo ecos da voz ligeiramente profana
te resume pouca.
te resume assim.

como se palavras pudessem destruir coisas belas.
ou palavras até resgatassem detalhes de um mundo cruel.
eu te desvendo aqui, maldizendo minha poesia,
sad&sexy, woman.

19.1.06

"não quero saber quem morreu, quero chorar"

Acho justo que o susto da culpa seja imposto aos que usam de bula para saber como sofrer. Escrevo isso contra mim mesmo e também contra todos aqueles com quem me decepciono diariamente e com quem me decepcionei ao longo da vida, por transferirem para “o mundo injusto” e para “as pessoas que não prestam” uma responsabilidade que deveriam ter pelas próprias vidas. Por alucinarem-se em paranóia e teorias conspiratórias porque não encontraram a felicidade fantasiosa folheada nas revistas de comportamento e moda. Em suma, por culparem o mundo e as pessoas que os rodeiam por aquilo que ansiavam e não tiveram (ou talvez, por aquilo que algum sistema vicioso ansiava por eles sem que eles soubessem), conseguindo, dessa forma, autoridade suficiente para sofrer constantemente.

Do pouco que podemos dizer sobre nós mesmos, uma coisa é que sofrer não se sabe como, porque arde. Ardência é espanto e não predisposição. Algo só arde quando assusta, quando você não está preparado para a coisa, como acontece com as mortes (talvez com a nossa mesma), a felicidade e o fogo, por exemplo. Portanto, é um erro pretender sensações, embutir sensações espontâneas de esperança. Algumas coisas simplesmente não podem ser soterradas com o nosso antropocentrismo. Tudo morre quando ganha um nome. Muito prazer, me chamo José, e José, porque agora tem um nome, está imediatamente morto, assim como o amor, quando inventamos seu nome para saciar aquilo que não podemos explicar, justamente porque nos assusta demais.

Quando, por exemplo, você toma café fervendo ou rasga o dedo numa cerca de arame, isso arde, não arde? E você não sabe muito bem por que arde – apesar da ciência tentar explicar – porque no fundo só existe uma única verdade: essa que não se sabe qual é e que, portanto, estamos fadados a procurar eternamente, mesmo com toda ardência, loucura e minimalismo intelectual em prol de um bom domingo com a família alimentando os gansos no parque arborizado: todos tão distantes uns dos outros que até podem dizer que se amam.

Sorrir deveria ser tão fácil quanto chorar. Mas pessoas passam nas ruas programadas para serem felizes até morrer, um paradoxo em si, porque me parece meio triste fazer a mesma coisa até morrer – deixa claro que nem tudo está bem. Se te esbarram na rua, não pedem desculpa, não têm tempo para pequenezas, precisam fugir do abismo, aquele que circunda, nunca pararam para ver como é bonito lá embaixo. Se esquecem que o sofrimento pela ardência é anterior, superior e, acima de tudo, independente da nossa vontade.

O fundo da ardência, única relevância filosófica real, não se conhece. Ele está ali, na nossa frente, no nosso aleijão, em algum lugar, para olharmos suas entranhas expostas em nós mesmos, nas nossas misérias e fracassos, sem podermos agarrar sua provavelmente frustrante e microscópica realidade – talvez grande demais para nossos olhos furados, acostumados com grandiosidades irrelevantes. Então nos contentamos com pseudo-caridades e auto-promoções.

Então tapeamos a nós mesmos com explicações insuficientes. Teorias para dentro e não para fora. Tímidos espasmos de desconsolo. Gritamos por um isolamento voluntário, santificadamente alheio, que almeja o bendito atalho para a felicidade dos exclusivos. Pior, para a felicidade padrão. Não é possível aceitar que algo que serve para o bem presuma a felicidade, tal como se pronuncia pelas sacristias e salões de beleza, como uma busca elevada, sectária, para uns e não para todos. Pois, se for assim, nazismo, religião e felicidade se coincidem em alto grau: todos excluem os mal-aventurados.

Mas também os bem-dotados de razão e egocentrismo devem entender que não existe uma vida pela qual se possa orgulhar completamente. Em suma: não existe o que o homem estipula – e aí está outra estratégia fascista subliminar – como padrão de felicidade e sucesso, porque essa idéia, perto do caos de possibilidades gritantes de combinações e misturas de comportamentos cosmológicos, perto do equilíbrio perfeito espontâneo em tudo que existe de bom e de mau, é apenas uma forma disfarçada de – primeiro – esterilizar do mundo o que um grupo pequeno e dominante, com um intelecto não muito brilhante mas astucioso, julga desnecessário – segundo – lambuzar este erro fatal com o que sobrar da carcaça da nossa civilização. Não vejo nada além disso quando olho para baixo na primeira esquina ou para uma varanda, dois homens, o primeiro sem as duas pernas e o segundo sob fogos de fim de ano numa mansão carregado de drogas pesadas e prostitutas e dinheiro desviado que poderia ter mantido pelo menos uma das pernas do outro miserável.

No fundo, esperamos demais do mundo. Isso não é meu, mas vale a pena repetir: não é de propósito que o mundo nos frustra, ele simplesmente é indiferente ao nosso destino, nossa consciência é uma centelha passageira no meio da noite*. Portanto, não há porque projetar no outro a vontade sufocada. Isso é ainda mais covarde do que um tiro na nuca. Porque um tiro na nuca mata a pessoa de uma vez. Não a deixa com questionamentos vazios sobre uma atitude impulsiva, geralmente impensada.. Enquanto que a padronização elitista de sensações como a felicidade rende milhões de mortes por asfixia, destinadas aos não privilegiados pelas dádivas de deus, ou o que quer que o valha.

E torna-se assunto para terapeutas, suicidas, loucos – que muitas vezes são terapeutas e muitas vezes são suicidas, mas também muitas vezes são simplesmente justos –, padres, pastores, donos de cabaré, donos do dinheiro, que são entretidos pelos donos de cabaré, ladrões de almas, que entretêm os donos do dinheiro, assassinos de deus, que matam por uma causa que até deus desconhece... Para todas as risadas na beira do caos e para os mono(nazi)teístas em geral, que acreditam numa enorme rendição do homem para a salvação da espécie por definições deterministas e excludentes. Deus sob forma de pressão, quando deus também é o próprio homem. Mas não pensamos nisso. Pensamos em deus como um único homem. Mas ele é todos e mais o resto do que sobrou, tudo ao mesmo tempo, como a eternidade**. Nascemos culpados por causa do erro da salvação da alma através do martírio da vida e do prazer pelo erro dos pecados formadores de um espírito arejado.

Muitos homens justificam a morte de um boi com a adoração de uma planta. Isso apesar de todos os neurônios e todas as enzimas e obediências involuntárias e teorias determinantes que possam formular. Mas nunca estão realmente preparados para o espaço não preenchido que gera movimentos e mortes constantes e praticamente involuntários, ou senão imprevisíveis. O tal pêndulo entre o tédio e o desejo, assim como eu falava da ardência: algo que arde e cura naturalmente.

É sabido que o martírio é chorume de fanatismo religioso. Nem Jesus estava preparado para sofrer, porque se estivesse, não teria acusado o próprio pai de traidor.

Portanto, dedico este pequeno e ridículo texto sobre coisas nas quais nem mesmo eu tenho conseguido pensar com clareza ultimamente – e talvez devesse – aos calados sofredores, aos amantes embotados de silêncios malditos, aos poetas de casacas desbotadas nos cantos dos bares escuros, às meninas que cortam os pulsos depois de se enganar com relação ao amor, ao mais solitário profeta na mais rarefeita montanha, aos limpadores de todas as janelas do centro da cidade, que só olham para frente e para baixo, aos retirantes nordestinos comidos pela lepra, jogados nas calçadas da cidade grande demais para mais uma pessoa velha, magra, em carne-viva, com a mão sobre o rosto, porque tem vergonha de pedir os últimos trocados de volta para Riacho das Almas, Pernambuco, onde enterraram a sua... e a de todos os que não sabem sofrer e gritam e choram e esperneiam e batem as cabeças nas paredes sem entender e procuram pelo que já foi encontrado mas não por você e tentam outra vez o mesmo erro para ver se dá certo e erram outra vez e não acreditam em mais nada outra vez e desmaiam e se sentem deuses rebaixados por se orgulharem do próprio fracasso como se fosse apenas mais uma tentativa e depois se sentem sanguessugas sociais de escassa bondade e erram bem menos do que gostariam de poder se orgulhar e muito mais do que conseguem pensar sobre e se afetam com as coisas ruins e boas a sua volta, andam de olhos abertos nas ruas vendadas que, também elas, estão perdidas e duvidam de tudo porque no fundo acreditam em tudo que a eles se sobrepõe e isso inclui a puta no lixo e o cafetão e todas as falsas personalidades do amor como preenchimento sórdido de uma alma vazia quando o amor, ao contrário de preencher, de fadar ao fracasso por admitir-se limitado, serve como forma de expansão imensurável, como liga entre dois corpos que correm juntos sem saber por que nem muito menos para onde, por um caminho pedregoso e hipnotizante que segue sem mira nem esperanças, mas com a incrível confiança de que se pode com qualquer coisa, porque no momento do amor não se espera nada.

Por isso só existe história de amor feliz em filme ruim e tele-novela. O amor é para os desesperados. O amor é algo ilimitado forçando entrada num pequeno espaço lotado e barulhento. É dos que esperam pelo tempo apenas para descobrir que o tempo não dá braço em torcer de curva nem abraço e beijo quando a saudade madruga. Ele passa sem se dar conta da presença do que inventamos para o mundo.


*Arthur Schopenhauer, Sobre a coisa em si e a aparência.
**do poeta Kenneth Patchen

"Por que escrevo" (George Orwell)

"Reexaminando as duas últimas páginas, mais ou menos, noto que fiz parecer que meus motivos para escrever estiveram todos voltados à causa pública. Não quero que seja essa a impressão definitiva. Todos os escritores são vaidosos, egocêntricos e ociosos, e bem no fundo de seus motivos jaz um mistério. Escrever um livro é uma luta horrível e exaustiva, como um prolongado ataque de uma enfermidade dolorosa. Ninguém jamais se incumbiria de tal coisa se não fosse impelido por um demônio ao qual não se pode resistir nem entender. Porque todo mundo sabe que esse demônio é simplesmente o mesmo instinto que faz um bebê chamar a atenção aos berros. E no entanto também é verdadeiro que é impossível escrever algo legível sem lutar constantemente para apagar a própria personalidade. A boa prosa é como uma vidraça. Não sei dizer com certeza qual de meus motivos é o mais forte, mas sei qual deles merece ser seguido. E, ao reexaminar minha obra, percebo que foi sempre onde me faltou um propósito político que escrevi livros sem vida e fui induzido a escrever passagens floreadas, frases sem significado, adjetivos decorativos e, em geral, falsidades."
Gangrel, 1946.

12.1.06

"Aos que se embrenham cegamente na escuridão da arte"

"Um verdadeiro romancista não precisa ter cuidados com a sua moral.
Ela está ali. Em alguma parte. No tempo próprio ela aparecerá.
Virá à luz tudo o que ele tencionava dizer,
tudo o que não tencionava,
juntamente com tudo aquilo que ele devia ter tencionado.
E o resto que ele claramente pretendia tencionar.
Assim sendo, tudo dará certo, no fim."

*recortado do conto "Nunca aposte sua cabeça com o diabo", de Edgar Allan Poe (1809 - 1849).

11.1.06

"Cantares de Sulamita" (Dalton Trevisan)

Cantar 1
Se você não me agarrar todinha
aqui agora mesmo
só me resta morrer

se não abrir minha blusa
violento e carinhoso
me sugar o biquinho dos seios
por certo hei de morrer

estou certa perdidamente certa
se não me der uns bofetões estalados
não morder meus lábios
não me xingar de puta
já já hei de morrer

bata morda xingue por favor
morrerei querido morrerei
se você não deslizar a mão direita
sob a minha calcinha
murmurando gentilmente palavras porcas
sem dúvida hei de morrer

também certa a minha morte
se você não acariciar o meu púbis de Vênus
com o terceiro quirodáctilo
já caio morta de costas
defuntinha
toda morta de morte matada

morrerei gemendo chorando se você titilar
a pérola na conhca bivalve
morrerei na fogueira aos gritos
se não o fizer

amado meu escuta
se você não me ninar com cafuné
me fungar no cangote
mordiscar as bochechas da nalga
me lamber o mindinho do pé esquerdo
juro que hei de morrer
certo é o meu fim

te peço te suplico
meu macho meu rei meu cafetão
eu faço tudo o que você mandar
até o que a putinha de rua tem vergonha

eu fico toda nua
de joelho descabelada na tua cama
eu fico bem rampeira
ao gazeio da tua flauta de mel
eu fico toda louca
aos golpes certeiros do teu ferrão de fogo
ereto duro mortal

ó meu santinho meu puto meu bem-querido
se você não me estuprar
agora agorinha mesmo
sem falta hei de morrer

se não me currar
em todas as posições indecentes
desde o cabelo até a unha do pé
taradão como só você
é certo que faleci me finei
todinha morta

se não me crucificar
entre beijos orgasmos tabefes
só me cabe morrer
minha morte é fatal
de sete mortes morrida
mortinha de amor é Sulamita

Cantar 2

Ó não amado meu
moça honesta já não sou
e como poderia
se você me corrompeu até os ossos
ao deslizar a mão sob a minha calcinha
acariciou a secreta penugem arrepiada?

como seria honesta
se você me deitou nos teus braços
abriu cada botão da blusa
sussurrando putinha no ouvido esquerdo?

se pousou delicadamente sem pressa
a ponta dos dedos nos meus mamilos
até que ficassem duros altaneiros
apontando em riste só para você?

maneira não há de ser moça direita
depois de ter as bochechas da nalga
mordidas por teu canino afiado
que gravou em brasa para sempre
com este sinal sou tua

não nenhum resto de pureza
assim que descerrou os meus lábios
dardejando a tua língua poderosa
na minha enroscada em nó cego

como ser mocinha séria
depois de beijar todinho o teu corpo
com medo com gosto com vontade
de joelho descabelada mão posta
à sombra do cedro colosso do Líbano
mil escudos e treoféus pendurados

é possível ser moça de família
se me sinto a rosa de Sarom
orvalhada da manhã
com um só toque do teu terceiro quirodáctilo?

Ai precioso amado querido
meu corpo tem memória e febre
meu puto me abrace me beije
sirva-se tire sangue me rasgue inteira
satisfaça a tua e a minha fome
finca o teu pendão estrelado
onde ele deve estar

oh não meu príncipe senhor da guerra
mocinha séria já não sou
me boline devagarinho
no uniforme de gala da normalista
atenção às luvas brancas de renda
me derrube na tua cama
de lado supina de bruços

me desnude diante do espelho
me arrume de pé dentro do armário
me ponha de quatro
me faça de carneirinha viciosa do bruto pastor
me violente sem dó com firmeza
só isso mais nada

sim bem-querido meu
sou putinha feita pra te servir
me abuse desfrute se refocile

quero sim apanhar de chicotinho
obedecer a ordens safadas
submissa a todos os teus caprichos
taras perversões fantasias
quais são? como são? onde são?

me diga como posso ir à igreja
de véu no rosto Bíblia na mão
se você afastou com dois dedos firmes e doces
o mar vermleho entre as minhas pernas
expondo à vista ao ataque frontal
meu corpinho ansioso e assustado
me estuprou me currou me crucificou?

quando separou os joelhos
abrindo as minhas coxas
um querubim fogoso
de delícias me cobriu
com sua terceira asa de sarça ardente

como ser moça ingênua
se antes sou uma grande vadia
o teu exército com fanfarras desfilando
na minha cidadela arrombada?

ai quero te dar até o que não tenho
amado meu santuário meu
quero ser a tua cadelinha mais gostosa
como nunca terá igual
serei vagabunda eu juro
todas as posições diferentes
todos os gemidos gritos palavrões
todas as preces atendidas

desfaleço de desejo por você só você
montar o teu corpo cândido e rubincundo
é galopar no céu
entre corcéis empinados relinchantes

vem ó princesa minha
depressa vem ó doce putinha
aos gritos fortes do rei que batem à porta
o meu coração se move
salta de um a outro lado do peito
já se derretem as minhas entranhas
o rosto do amor floresce nesse copo d'água

eu sou tua você é meu
por você inteirinha me perco
quem fez de mim o que sou?

sim amado meu
sou virgem princesa concubina
égua troteadora no carro do Faraó
vento norte água viva
sou rameira tua ramperia Sulamita
lírio-do-vale pomba branca
morrendinha de tanto bem-querer
até que sejamos um só corpo
um só amor
um só

*texto retirado do livro "A gorda do Tiki Bar", L&PM pocket, 2005

5.1.06

"O menino com barba"


hoje eu vi na rua um menino
camisa listrada, vermelha e branca
calça de brim escura, tênis bamba
pensei: com quem é parecido?

se dobrava por dentro dos arcos do Edifício Argentina
depois abriu um sorriso e deu a mão para um mendigo
então ambos correram atrás das pombas até o fim do dia
não para pegar uma pomba mas só para correr atrás delas

cinco minutos vendo o menino
e lembrei de um passeio de barco até Paquetá
lembrei de uma camisa amarela em que se lia:
“Não enche! Comando de caça aos chatos”
uma bota pesada ortopédica para pés chatos
e de duas dentadas de uma menina mais velha
lembrei de óculos ridículos em formato de coração
um baile de máscaras com dez crianças negras e uma branca
um carro carregando um caixão ao lado de um menino de bicicleta
mulheres com tetas enormes de porre num baile finlandês em Penêdo
uma velha pequena muito encolhida dentro da noite fumando escondida
um esconderijo com senha de entrada e saída debaixo de um sofá vermelho
e outras coisas menores: olhos, partidas, dedos, um colchão amarelo de mijo
(sonhos, dúvidas, receios, tombos, feridas, cuspes, beijos, cicatrizes, cascas)
fora tudo que precisei inventar para pôr no lugar do buraco esquerdo do peito

então pensei em tudo o que diferia
(todo espaço de erros e precipícios
apesar da sutil expansão corporal)
aquele menino faceiro com relógio do Batman
de um homem com barba que não soube nascer.

3.1.06

"O louco que desenhava perfis num único traço"

Corre, corre, corre, vai logo senão você vai acabar alcançando a si mesmo. Quero aquela mulher agora. Azar o teu. Hoje é o enterro dos vivos logo ali? Sim, e você está atrasado. Mas estou morto. Bom, nesse caso, aceita mais um trago? Não, desculpe, o fígado... Amanhã? Que tal depois de amanhã? Pode ser hoje? Sim, claro, desde que hoje seja amanhã... E quando é amanhã? Hoje. E quando é agora. Já foi. Aí está a nascente da angústia. O problema é que não existe foz.

O cérebro humano, quando os pensamentos são organizados linearmente, não faz o menor sentido. Na rua, eu vinha andando olhando para cima e conversando com meus botões, quando reparei que um deles tinha se desprendido e caído no chão, no que me pararam para pedir informação. Um sujeito abriu a janela do carro. Tinha a manivela emperrada. Nhec, nhec, nhec. Ele era careca mas, estranhamente, estava descabelado.

“Por gentileza, amigo, você sabe me informar onde fica o Instituto Pinel?”

“Claro! Vamos juntos... Tomo banho de sol lá nos domingos com um amigo. Me dá uma carona que eu te mostro o caminho.”

O quarto de Jácomo, meu amigo insano, tinha as paredes de madeira clara, era tranqüilo, apertado, estofado, sufocante, cheio de bactérias e fungos, mas te forçava a ficar sossegado, exatamente como um caixão. O sujeito que eu acompanhava chamava-se Seu Cirilo e, por algum motivo, não era possível se esquecer do Seu antes do Cirilo. Velho meio cegueta, provavelmente surdo, voz estridente entrecortada por suspiros, largou seu biruta num quarto ao lado do quarto de Jácomo e foi até o refeitório comprar sanduíches de salame para alimentar um parasita que, segundo me contou, estava alojado na sua barriga havia mais de dez anos e comia de sete a oito vezes por dia: “uma despesa louca com comida”, disse enquanto mastigava a bochecha por dentro.

Eu dei dois toques delicados e um murro de rachar os nódulos dos dedos na porta do meu amigo Jácomo – esse era nosso código secreto – e fui com minha touca de banho até a varanda onde se apanhava sol. No meio do caminho fui chamado de louco por um louco, pelo que, lisonjeado, agradeci vomitando no chão depois de plantar uma bananeira. O louco ficou tão histericamente eufórico que foi correndo até seu quarto buscar também sua touca de banho e um cutelo sujo de sangue coagulado (escondido há dias na gaveta dos gibis, roubado da cozinha). Então, meio de repente, éramos dois loucos sentados de pernas cruzadas no chão jogando Escravos de Jó com o dedo anelar de um terceiro louco, arrancado pelo cutelo do louco que tinha me chamado de louco.

O terceiro louco, exceto pelo dono do cutelo e eu, era um irlandês de origem celta (mesmo sendo de Erechim, no Rio Grande do Sul), veterano de guerras imaginárias, devoto do deus Belenos, chamado pelos enfermeiros de Brito Teutônico, mais conhecido na casa como Merlin, por causa da longa barba branca suja de sopa e da origem celta, que carregava num brasão junto à lapela, só permitida a ele porque a barba longa e branca lhe dava certa autoridade. E afinal, na cabeça, ele era um oficial.

Logo após ter seu dedo delicadamente decepado, pouco antes da tropa de choque terapêutica arrastar todos dali, Merlin me contou que havia combatido junto à foz do Mondego, e disse tudo de costas para mim, enquanto olhava o sangue borbotar em bolhas do seu dedo, e antes que eu pudesse replicar qualquer coisa, me interrompeu alegando que, infelizmente, apesar da boa prosa, teria que me deixar, pois estava atrasado para a Festa da Bergamota. Apertamos as mãos segundo os preceitos da Távola Redonda, com uma cusparada em cada palma, e Merlin acabou espancado por dois enfermeiros sem olhos e de colarinho alto. Logo depois foi levado embora, enquanto olhava maravilhado seu sangue escorrer e ainda gritava palavras enigmáticas, entre as quais: “Avante, tropa, até as colinas de Salamanca!”.

Deixei meu amigo recente com seu cutelo na mão – ele logo também foi arrastado a bordoadas pelos enfermeiros –, enquanto que com a outra mão ele contava pontos pretos na parede verde com pontos pretos. Fui encontrar meu amigo Jácomo no terraço feito de azulejos.

Tinha muitas afinidades com Jácomo, como por exemplo a participação na frente de Matamoros durante a Guerra de Secessão. Conversamos um pouco sobre seu livro preferido, “A Cabana do Pai Tomás”, que ele estava relendo por uma brochura em cuja capa estava escrito: “Corto Maltese em: a balada do mar salgado”.

Falamos sobre lembranças da guerra, como o dia em que os primeiros tiros ecoaram no Forte Sumter, e ao conversarmos sobre como manter a mente sã dentro de um sanatório, chegamos à conclusão de que era mais ou menos da mesma forma que se faz na fila do banco, debaixo do chuveiro, na sala de espera do dentista, com uma flor na mão debaixo da chuva, numa sala de aula, tirando meleca sem ninguém ver, na ópera, numa jaula ou numa casa de massagem.

Então, assim, repentinamente, Jácomo se deprimiu, encolhendo-se e me dando murros como se fosse um gorila. Segundo ele, era porque o sol tinha mudado de lugar e eu não o havia prevenido.

Me estapeou e disse, com uma mão no meu colarinho e outra enfiada no buraco da sua lapela, que os enfermeiros insistiam em chamar de camisa de força por algum motivo desconhecido e óbvio:

“Diga ao seu amigo que não se destrata um oficial reformado das tropas de McDowell... E diga a ele que eu estive, entre muitos outros nobres homens, no entroncamento ferroviário de Manassas Junction!”

“Que amigo, Jácomo?”, perguntei levando a mão ao queixo para recolher um dente podre que havia se descolado da gengiva depois do tapa na cara.

“Aquele dali”, ele disse apontando para cima, com sobrancelhas monteirolobatianas.

E foi embora furioso. Fiquei ali com o culpado: o sol.

Jácomo tinha uma história de vida interessante, da qual, talvez felizmente, não se lembrava. Mas os enfermeiros me contaram durante dois cafezinhos como ele havia parado no hospício pouco antes de eu tê-lo conhecido, completamente bêbado e tuberculoso, num bar sem nome de fim de noite.

Aos 26 anos de idade se graduou doutor em filosofia oriental pela faculdade federal. Filho de pais abastados, entretanto, recém casado e com esposa grávida de uma menina, começou a levantar sua casa, tijolo por tijolo, com as próprias mãos, sem ajuda de ninguém. Nesse meio-tempo passou a beber, porque não tinha mais dinheiro para continuar a obra, nem mesmo a quem recorrer, já que a família, desgostosa por ele ter se casado com uma catadora de latas, o deserdou. Ainda sem saber como terminar a obra, casa sem teto, soube do suicídio do pai, que deixou uma carta dizendo que, de todas as decepções, de duas ele nunca conseguiu se recuperar: um a morte de Plínio Salgado, dois o desgosto com o filho único.

Jácomo bebia cachaça pura em copo de requeijão, misturava tudo que podia, fritava os olhos estourados de veias debaixo do sol quente, suava a testa para levantar a casa e não pensar em culpa.

Única dádiva, sua filha Dulcinéia nasceu de quatro quilos e setecentos. Se divertia vendo o pai empilhar tijolos. O diabo vendeu livro, furou sola de sapato atrás de dar aula particular, vendeu alma e até santinho na rua para terminar o teto da casa e poder finalmente dormir em paz. Mas um dia, de olho bambo, deixou cair um tijolo sobre a moleira de Dulcinéia, que dormia ao lado no berço e morreu imediatamente.

Uma semana depois sua esposa pulou pela janela. Deixou uma carta na qual dizia não ser possível viver sem conseguir perdoar o marido. Então Jácomo, com todo direito, enlouqueceu. E foi para o manicômio, com ajuda de um ex-aluno dedicado. Rapidamente se adaptou, pois acreditava que sempre há um pouco de loucura no amor, porém sempre há um pouco de razão na loucura. Empreendedor, organizou com outros loucos pacíficos uma empresa de reciclagem de papel, na qual trabalhava como operário e distribuidor. Não era violento, o que rapidamente lhe trouxe privilégios, como três noites por semana para passear na rua.

Como já disse, conheci Jácomo num bar desses que nem nome têm. Sangrava pelo nariz e babava pela boca. Tossia bacilos. Magro, olho zureta, desenhava perfis num único traço em troca de qualquer nota. Chovia muito quando nos vimos pela primeira vez. Perguntei a ele onde ele desenhava. Me disse que poderia apanhar bloco e lápis em dois minutos. Eu disse que pagaria apenas se gostasse do desenho. Concordou com a cabeça e saiu aos tropeços debaixo da neblina moldada pela chuva.

Meu perfil ficou mesmo bom, num único traço, e lhe dei dois reais. Mas antes pedi que ele assinasse, que fizesse uma dedicatória. Olhou para mim por dois ou três minutos, sem dizer nada: um olho no meu ombro, outro na minha clavícula. Mas senti que me olhava nos olhos.

“Você sofre por quê?”, me perguntou.

“Viver é uma opção muito difícil de escolher”, eu disse sem pensar.

“Queria estar morto?”

“Não. Mas também não queria estar vivo, eu acho”.

Ele ia falar, mas estacou, engasgado. Espremeu os lábios feridos pela herpes. Os olhos piscavam sem parar, assustados com a força da respiração que sofria pelo nariz.

“Você me serve um copo de cerveja?”

“Mas é claro”, e acenei ao balconista, no que Jácomo segurou meu braço com força.

“Não deixa ele me ver por aqui... Não me serve nem se eu pagar. Bate em mim se me vê. Foi semana passada... Fiquei na rua... Me deu com um cano... Manco desde então”.

Levantei sem fazer alarde e pedi um copo plástico ao balconista. Fui ao banheiro enquanto Jácomo olhava para todos os lugares ao mesmo tempo e assoava sangue do nariz para o chão. Quando voltei à mesa encontrei apenas meu perfil desenhado, já manchado de chuva, com uma assinatura, seguida da seguinte frase: “O homem que sofre antes de ser necessário, sofre mais que o necessário”.

Por semanas achei que fosse um anjo ou um aviso, até que o encontrei mais algumas vezes no mesmo lugar, sempre ruim da tosse, voz empolada, roxo ou sangrando, pedindo uns trocados pelos perfis de traço único. Ele lembrava meu nome e me disse que a frase da dedicatória era de Sêneca, sobre quem eu nunca tinha ouvido falar, apesar de demonstrar intimidade com o filósofo. Trocamos endereços e começamos a nos corresponder.

Quase nunca entendia de onde Jácomo tirava as idéias para suas cartas, mas reconheci nelas um tremendo potencial literário, ligado diretamente a sua loucura. Depois ele mesmo me explicou que todas as cartas se baseavam em situações pelas quais ele nunca havia passado em vida, mas sim durante todas as suas mortes.

“Ninguém esquece da morte”, me disse uma vez, vermelho.

Transcrevo abaixo portanto, como documento para estudos futuros, e para que vocês, caros leitores, possam comprovar seu poder idílico e literário, uma das trocas de carta entre Jácomo e eu. Tentei, nas minhas réplicas, manter a mesma linha do seu estilo, na tentativa de estimular seus pensamentos mais enraizados de forma natural. E os meus também.

***


(Jácomo: carta sobre um coração partido)

Caro Richard Ellsworth Savage,

Te escrevo da frontaria de Walla Walla no momento em que um francês faz sua barba diante de um espelho rachado. Estou à paisana, para confundir os malditos hunos. Me demiti da unidade dos Quacres. A situação no fronte tem-se mostrado complicada. Choro e rio com facilidade, o que é um grande problema quando é preciso pegar em armas. Por favor, mande-me notícias da minha querida Evelyn Hutchins, se já se arranjou com um pega capaz de dar-lhe umas bodas e um par de rebentos cheios de ranho. Já não sei mais como é um dia sem chuva. O tempo está chegando ao seu fim. Mande saudações para Zarvoleta Karamázov.

Beijos a ti e a todos os teus,
Don Stevens.

(minha resposta)

New York, NY, agosto/1960

Respeitável Don,

Recebi seu telegrama à tarde. As notícias que envio a você não são boas. Evelyn precipitou-se e agora é a Senhora Williams. McCoy Williams é um pé-rapado vendedor de melancias. Fugiram para Louisiana, onde McCoy possui parentes ricos. Creio que ela não suportou a solidão em que você a deixou. Com o coração em pedaços faço-te saber que Níkolay Botikaiev foi atirado atrás das grades e pretendem deixá-lo lá indefinidamente. O motivo? Estuprou e matou Zarvinni, o italiano do realejo. Sabe, Don, lembro-me de ti quando me perguntam o que tenho feito. Que respostas esses sanguessugas esperam? Diabos, acordar todos os dias e encarar a desgraçada natureza dos seres humanos já não basta? Meu bom amigo Don Stevens, enfatizo outra vez minha vontade de que baixe as armas e retorne; a guerra arruinou seu juízo. Para que não fique de todo entristecido, saiba que Coltrane acaba de lançar um novo LP. Elvin Jones comeu com farofa e alcaparras os benditos tambores. Mando-te um exemplar, mas é provável que se perca no caminho e, além do mais, não terias como ouvir.

Ficam meu desejo de melhores dias e a esperança de que retorne com vida. Lembre-se: aqui também há uma guerra. Preciso da sua ajuda para vencê-la.

Dick.

(tréplica de Jácomo)

Caríssimo Richard,

Te escrevo agora de dentro de uma trincheira enlameada onde me sinto como um rato de esgoto. Posso te dizer que já esperava esse fim para Evelyn, já que nunca consegui arrancar dela um sorriso honesto que não fosse seguido de uma facada nos colhões. Saiba que posso ouvir os tambores de Elvin daqui das trincheiras do País de Trebizonda. São semelhantes aos estalidos das matracas dos pobres diabos que, como eu, destrincham suas patas de boi com molho, que na verdade não passa de uma água lamacenta. Lembro deles também quando ouço o matraquear das metralhadoras que vem do Encouraçado Bismarck. A fumaça que solta o navio me lembra uma dança de tango que tive com uma rapariga cheia de pêlos nos sovacos às margens do Rio Prata. Mas lembranças não me tiram o terror da guerra. E lhe digo: nenhum homem volta com vida de uma guerra. Até mesmo os que voltam vivos, voltam mortos. De qualquer maneira tenho levantado uma quantia razoável de táleres, moeda corrente nas trincheiras, pelando alguns eslavos fedorentos e os deixando só com as calças na mão depois de algumas rodadas de Bacará. Tomo um trago por ti, meu caro. E danço a rumba quando posso.

Saudações de um morto-vivo.
Don.

***
Estou em vias de terminar a compilação de todas as correspondências, as quais pretendo publicar separadas por quatro temas: guerra, amor, bebida, delírio.

2.1.06

"Desespero de Piedade" (Vinicius de Moraes)

Meu senhor, tende piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
Quando enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.
Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina.
Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.
Tende imensa piedade dos músicos dos cafés e casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.
Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.
Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
Que em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...
Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por profissão mas que são humildes nas suas carícias
Mas tende mais piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!
Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
Que lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.
Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tende mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.
Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.
E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tende píedade das mulheres
Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!
Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta – que o homem não presta, não presta, meu Deus!
Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.
Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.
Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.
Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.
Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.
Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçada
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.
Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.
Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
E que têm a única emoção da vida nelas.
Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si mesma e de sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.
Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.
Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados – sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!