5.1.06
"O menino com barba"
hoje eu vi na rua um menino
camisa listrada, vermelha e branca
calça de brim escura, tênis bamba
pensei: com quem é parecido?
se dobrava por dentro dos arcos do Edifício Argentina
depois abriu um sorriso e deu a mão para um mendigo
então ambos correram atrás das pombas até o fim do dia
não para pegar uma pomba mas só para correr atrás delas
cinco minutos vendo o menino
e lembrei de um passeio de barco até Paquetá
lembrei de uma camisa amarela em que se lia:
“Não enche! Comando de caça aos chatos”
uma bota pesada ortopédica para pés chatos
e de duas dentadas de uma menina mais velha
lembrei de óculos ridículos em formato de coração
um baile de máscaras com dez crianças negras e uma branca
um carro carregando um caixão ao lado de um menino de bicicleta
mulheres com tetas enormes de porre num baile finlandês em Penêdo
uma velha pequena muito encolhida dentro da noite fumando escondida
um esconderijo com senha de entrada e saída debaixo de um sofá vermelho
e outras coisas menores: olhos, partidas, dedos, um colchão amarelo de mijo
(sonhos, dúvidas, receios, tombos, feridas, cuspes, beijos, cicatrizes, cascas)
fora tudo que precisei inventar para pôr no lugar do buraco esquerdo do peito
então pensei em tudo o que diferia
(todo espaço de erros e precipícios
apesar da sutil expansão corporal)
aquele menino faceiro com relógio do Batman
de um homem com barba que não soube nascer.
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