Corre, corre, corre, vai logo senão você vai acabar alcançando a si mesmo. Quero aquela mulher agora. Azar o teu. Hoje é o enterro dos vivos logo ali? Sim, e você está atrasado. Mas estou morto. Bom, nesse caso, aceita mais um trago? Não, desculpe, o fígado... Amanhã? Que tal depois de amanhã? Pode ser hoje? Sim, claro, desde que hoje seja amanhã... E quando é amanhã? Hoje. E quando é agora. Já foi. Aí está a nascente da angústia. O problema é que não existe foz.
O cérebro humano, quando os pensamentos são organizados linearmente, não faz o menor sentido. Na rua, eu vinha andando olhando para cima e conversando com meus botões, quando reparei que um deles tinha se desprendido e caído no chão, no que me pararam para pedir informação. Um sujeito abriu a janela do carro. Tinha a manivela emperrada. Nhec, nhec, nhec. Ele era careca mas, estranhamente, estava descabelado.
“Por gentileza, amigo, você sabe me informar onde fica o Instituto Pinel?”
“Claro! Vamos juntos... Tomo banho de sol lá nos domingos com um amigo. Me dá uma carona que eu te mostro o caminho.”
O quarto de Jácomo, meu amigo insano, tinha as paredes de madeira clara, era tranqüilo, apertado, estofado, sufocante, cheio de bactérias e fungos, mas te forçava a ficar sossegado, exatamente como um caixão. O sujeito que eu acompanhava chamava-se Seu Cirilo e, por algum motivo, não era possível se esquecer do Seu antes do Cirilo. Velho meio cegueta, provavelmente surdo, voz estridente entrecortada por suspiros, largou seu biruta num quarto ao lado do quarto de Jácomo e foi até o refeitório comprar sanduíches de salame para alimentar um parasita que, segundo me contou, estava alojado na sua barriga havia mais de dez anos e comia de sete a oito vezes por dia: “uma despesa louca com comida”, disse enquanto mastigava a bochecha por dentro.
Eu dei dois toques delicados e um murro de rachar os nódulos dos dedos na porta do meu amigo Jácomo – esse era nosso código secreto – e fui com minha touca de banho até a varanda onde se apanhava sol. No meio do caminho fui chamado de louco por um louco, pelo que, lisonjeado, agradeci vomitando no chão depois de plantar uma bananeira. O louco ficou tão histericamente eufórico que foi correndo até seu quarto buscar também sua touca de banho e um cutelo sujo de sangue coagulado (escondido há dias na gaveta dos gibis, roubado da cozinha). Então, meio de repente, éramos dois loucos sentados de pernas cruzadas no chão jogando Escravos de Jó com o dedo anelar de um terceiro louco, arrancado pelo cutelo do louco que tinha me chamado de louco.
O terceiro louco, exceto pelo dono do cutelo e eu, era um irlandês de origem celta (mesmo sendo de Erechim, no Rio Grande do Sul), veterano de guerras imaginárias, devoto do deus Belenos, chamado pelos enfermeiros de Brito Teutônico, mais conhecido na casa como Merlin, por causa da longa barba branca suja de sopa e da origem celta, que carregava num brasão junto à lapela, só permitida a ele porque a barba longa e branca lhe dava certa autoridade. E afinal, na cabeça, ele era um oficial.
Logo após ter seu dedo delicadamente decepado, pouco antes da tropa de choque terapêutica arrastar todos dali, Merlin me contou que havia combatido junto à foz do Mondego, e disse tudo de costas para mim, enquanto olhava o sangue borbotar em bolhas do seu dedo, e antes que eu pudesse replicar qualquer coisa, me interrompeu alegando que, infelizmente, apesar da boa prosa, teria que me deixar, pois estava atrasado para a Festa da Bergamota. Apertamos as mãos segundo os preceitos da Távola Redonda, com uma cusparada em cada palma, e Merlin acabou espancado por dois enfermeiros sem olhos e de colarinho alto. Logo depois foi levado embora, enquanto olhava maravilhado seu sangue escorrer e ainda gritava palavras enigmáticas, entre as quais: “Avante, tropa, até as colinas de Salamanca!”.
Deixei meu amigo recente com seu cutelo na mão – ele logo também foi arrastado a bordoadas pelos enfermeiros –, enquanto que com a outra mão ele contava pontos pretos na parede verde com pontos pretos. Fui encontrar meu amigo Jácomo no terraço feito de azulejos.
Tinha muitas afinidades com Jácomo, como por exemplo a participação na frente de Matamoros durante a Guerra de Secessão. Conversamos um pouco sobre seu livro preferido, “A Cabana do Pai Tomás”, que ele estava relendo por uma brochura em cuja capa estava escrito: “Corto Maltese em: a balada do mar salgado”.
Falamos sobre lembranças da guerra, como o dia em que os primeiros tiros ecoaram no Forte Sumter, e ao conversarmos sobre como manter a mente sã dentro de um sanatório, chegamos à conclusão de que era mais ou menos da mesma forma que se faz na fila do banco, debaixo do chuveiro, na sala de espera do dentista, com uma flor na mão debaixo da chuva, numa sala de aula, tirando meleca sem ninguém ver, na ópera, numa jaula ou numa casa de massagem.
Então, assim, repentinamente, Jácomo se deprimiu, encolhendo-se e me dando murros como se fosse um gorila. Segundo ele, era porque o sol tinha mudado de lugar e eu não o havia prevenido.
Me estapeou e disse, com uma mão no meu colarinho e outra enfiada no buraco da sua lapela, que os enfermeiros insistiam em chamar de camisa de força por algum motivo desconhecido e óbvio:
“Diga ao seu amigo que não se destrata um oficial reformado das tropas de McDowell... E diga a ele que eu estive, entre muitos outros nobres homens, no entroncamento ferroviário de Manassas Junction!”
“Que amigo, Jácomo?”, perguntei levando a mão ao queixo para recolher um dente podre que havia se descolado da gengiva depois do tapa na cara.
“Aquele dali”, ele disse apontando para cima, com sobrancelhas monteirolobatianas.
E foi embora furioso. Fiquei ali com o culpado: o sol.
Jácomo tinha uma história de vida interessante, da qual, talvez felizmente, não se lembrava. Mas os enfermeiros me contaram durante dois cafezinhos como ele havia parado no hospício pouco antes de eu tê-lo conhecido, completamente bêbado e tuberculoso, num bar sem nome de fim de noite.
Aos 26 anos de idade se graduou doutor em filosofia oriental pela faculdade federal. Filho de pais abastados, entretanto, recém casado e com esposa grávida de uma menina, começou a levantar sua casa, tijolo por tijolo, com as próprias mãos, sem ajuda de ninguém. Nesse meio-tempo passou a beber, porque não tinha mais dinheiro para continuar a obra, nem mesmo a quem recorrer, já que a família, desgostosa por ele ter se casado com uma catadora de latas, o deserdou. Ainda sem saber como terminar a obra, casa sem teto, soube do suicídio do pai, que deixou uma carta dizendo que, de todas as decepções, de duas ele nunca conseguiu se recuperar: um a morte de Plínio Salgado, dois o desgosto com o filho único.
Jácomo bebia cachaça pura em copo de requeijão, misturava tudo que podia, fritava os olhos estourados de veias debaixo do sol quente, suava a testa para levantar a casa e não pensar em culpa.
Única dádiva, sua filha Dulcinéia nasceu de quatro quilos e setecentos. Se divertia vendo o pai empilhar tijolos. O diabo vendeu livro, furou sola de sapato atrás de dar aula particular, vendeu alma e até santinho na rua para terminar o teto da casa e poder finalmente dormir em paz. Mas um dia, de olho bambo, deixou cair um tijolo sobre a moleira de Dulcinéia, que dormia ao lado no berço e morreu imediatamente.
Uma semana depois sua esposa pulou pela janela. Deixou uma carta na qual dizia não ser possível viver sem conseguir perdoar o marido. Então Jácomo, com todo direito, enlouqueceu. E foi para o manicômio, com ajuda de um ex-aluno dedicado. Rapidamente se adaptou, pois acreditava que sempre há um pouco de loucura no amor, porém sempre há um pouco de razão na loucura. Empreendedor, organizou com outros loucos pacíficos uma empresa de reciclagem de papel, na qual trabalhava como operário e distribuidor. Não era violento, o que rapidamente lhe trouxe privilégios, como três noites por semana para passear na rua.
Como já disse, conheci Jácomo num bar desses que nem nome têm. Sangrava pelo nariz e babava pela boca. Tossia bacilos. Magro, olho zureta, desenhava perfis num único traço em troca de qualquer nota. Chovia muito quando nos vimos pela primeira vez. Perguntei a ele onde ele desenhava. Me disse que poderia apanhar bloco e lápis em dois minutos. Eu disse que pagaria apenas se gostasse do desenho. Concordou com a cabeça e saiu aos tropeços debaixo da neblina moldada pela chuva.
Meu perfil ficou mesmo bom, num único traço, e lhe dei dois reais. Mas antes pedi que ele assinasse, que fizesse uma dedicatória. Olhou para mim por dois ou três minutos, sem dizer nada: um olho no meu ombro, outro na minha clavícula. Mas senti que me olhava nos olhos.
“Você sofre por quê?”, me perguntou.
“Viver é uma opção muito difícil de escolher”, eu disse sem pensar.
“Queria estar morto?”
“Não. Mas também não queria estar vivo, eu acho”.
Ele ia falar, mas estacou, engasgado. Espremeu os lábios feridos pela herpes. Os olhos piscavam sem parar, assustados com a força da respiração que sofria pelo nariz.
“Você me serve um copo de cerveja?”
“Mas é claro”, e acenei ao balconista, no que Jácomo segurou meu braço com força.
“Não deixa ele me ver por aqui... Não me serve nem se eu pagar. Bate em mim se me vê. Foi semana passada... Fiquei na rua... Me deu com um cano... Manco desde então”.
Levantei sem fazer alarde e pedi um copo plástico ao balconista. Fui ao banheiro enquanto Jácomo olhava para todos os lugares ao mesmo tempo e assoava sangue do nariz para o chão. Quando voltei à mesa encontrei apenas meu perfil desenhado, já manchado de chuva, com uma assinatura, seguida da seguinte frase: “O homem que sofre antes de ser necessário, sofre mais que o necessário”.
Por semanas achei que fosse um anjo ou um aviso, até que o encontrei mais algumas vezes no mesmo lugar, sempre ruim da tosse, voz empolada, roxo ou sangrando, pedindo uns trocados pelos perfis de traço único. Ele lembrava meu nome e me disse que a frase da dedicatória era de Sêneca, sobre quem eu nunca tinha ouvido falar, apesar de demonstrar intimidade com o filósofo. Trocamos endereços e começamos a nos corresponder.
Quase nunca entendia de onde Jácomo tirava as idéias para suas cartas, mas reconheci nelas um tremendo potencial literário, ligado diretamente a sua loucura. Depois ele mesmo me explicou que todas as cartas se baseavam em situações pelas quais ele nunca havia passado em vida, mas sim durante todas as suas mortes.
“Ninguém esquece da morte”, me disse uma vez, vermelho.
Transcrevo abaixo portanto, como documento para estudos futuros, e para que vocês, caros leitores, possam comprovar seu poder idílico e literário, uma das trocas de carta entre Jácomo e eu. Tentei, nas minhas réplicas, manter a mesma linha do seu estilo, na tentativa de estimular seus pensamentos mais enraizados de forma natural. E os meus também.
***
(Jácomo: carta sobre um coração partido)
Caro Richard Ellsworth Savage,
Te escrevo da frontaria de Walla Walla no momento em que um francês faz sua barba diante de um espelho rachado. Estou à paisana, para confundir os malditos hunos. Me demiti da unidade dos Quacres. A situação no fronte tem-se mostrado complicada. Choro e rio com facilidade, o que é um grande problema quando é preciso pegar em armas. Por favor, mande-me notícias da minha querida Evelyn Hutchins, se já se arranjou com um pega capaz de dar-lhe umas bodas e um par de rebentos cheios de ranho. Já não sei mais como é um dia sem chuva. O tempo está chegando ao seu fim. Mande saudações para Zarvoleta Karamázov.
Beijos a ti e a todos os teus,
Don Stevens.
(minha resposta)
New York, NY, agosto/1960
Respeitável Don,
Recebi seu telegrama à tarde. As notícias que envio a você não são boas. Evelyn precipitou-se e agora é a Senhora Williams. McCoy Williams é um pé-rapado vendedor de melancias. Fugiram para Louisiana, onde McCoy possui parentes ricos. Creio que ela não suportou a solidão em que você a deixou. Com o coração em pedaços faço-te saber que Níkolay Botikaiev foi atirado atrás das grades e pretendem deixá-lo lá indefinidamente. O motivo? Estuprou e matou Zarvinni, o italiano do realejo. Sabe, Don, lembro-me de ti quando me perguntam o que tenho feito. Que respostas esses sanguessugas esperam? Diabos, acordar todos os dias e encarar a desgraçada natureza dos seres humanos já não basta? Meu bom amigo Don Stevens, enfatizo outra vez minha vontade de que baixe as armas e retorne; a guerra arruinou seu juízo. Para que não fique de todo entristecido, saiba que Coltrane acaba de lançar um novo LP. Elvin Jones comeu com farofa e alcaparras os benditos tambores. Mando-te um exemplar, mas é provável que se perca no caminho e, além do mais, não terias como ouvir.
Ficam meu desejo de melhores dias e a esperança de que retorne com vida. Lembre-se: aqui também há uma guerra. Preciso da sua ajuda para vencê-la.
Dick.
(tréplica de Jácomo)
Caríssimo Richard,
Te escrevo agora de dentro de uma trincheira enlameada onde me sinto como um rato de esgoto. Posso te dizer que já esperava esse fim para Evelyn, já que nunca consegui arrancar dela um sorriso honesto que não fosse seguido de uma facada nos colhões. Saiba que posso ouvir os tambores de Elvin daqui das trincheiras do País de Trebizonda. São semelhantes aos estalidos das matracas dos pobres diabos que, como eu, destrincham suas patas de boi com molho, que na verdade não passa de uma água lamacenta. Lembro deles também quando ouço o matraquear das metralhadoras que vem do Encouraçado Bismarck. A fumaça que solta o navio me lembra uma dança de tango que tive com uma rapariga cheia de pêlos nos sovacos às margens do Rio Prata. Mas lembranças não me tiram o terror da guerra. E lhe digo: nenhum homem volta com vida de uma guerra. Até mesmo os que voltam vivos, voltam mortos. De qualquer maneira tenho levantado uma quantia razoável de táleres, moeda corrente nas trincheiras, pelando alguns eslavos fedorentos e os deixando só com as calças na mão depois de algumas rodadas de Bacará. Tomo um trago por ti, meu caro. E danço a rumba quando posso.
O cérebro humano, quando os pensamentos são organizados linearmente, não faz o menor sentido. Na rua, eu vinha andando olhando para cima e conversando com meus botões, quando reparei que um deles tinha se desprendido e caído no chão, no que me pararam para pedir informação. Um sujeito abriu a janela do carro. Tinha a manivela emperrada. Nhec, nhec, nhec. Ele era careca mas, estranhamente, estava descabelado.
“Por gentileza, amigo, você sabe me informar onde fica o Instituto Pinel?”
“Claro! Vamos juntos... Tomo banho de sol lá nos domingos com um amigo. Me dá uma carona que eu te mostro o caminho.”
O quarto de Jácomo, meu amigo insano, tinha as paredes de madeira clara, era tranqüilo, apertado, estofado, sufocante, cheio de bactérias e fungos, mas te forçava a ficar sossegado, exatamente como um caixão. O sujeito que eu acompanhava chamava-se Seu Cirilo e, por algum motivo, não era possível se esquecer do Seu antes do Cirilo. Velho meio cegueta, provavelmente surdo, voz estridente entrecortada por suspiros, largou seu biruta num quarto ao lado do quarto de Jácomo e foi até o refeitório comprar sanduíches de salame para alimentar um parasita que, segundo me contou, estava alojado na sua barriga havia mais de dez anos e comia de sete a oito vezes por dia: “uma despesa louca com comida”, disse enquanto mastigava a bochecha por dentro.
Eu dei dois toques delicados e um murro de rachar os nódulos dos dedos na porta do meu amigo Jácomo – esse era nosso código secreto – e fui com minha touca de banho até a varanda onde se apanhava sol. No meio do caminho fui chamado de louco por um louco, pelo que, lisonjeado, agradeci vomitando no chão depois de plantar uma bananeira. O louco ficou tão histericamente eufórico que foi correndo até seu quarto buscar também sua touca de banho e um cutelo sujo de sangue coagulado (escondido há dias na gaveta dos gibis, roubado da cozinha). Então, meio de repente, éramos dois loucos sentados de pernas cruzadas no chão jogando Escravos de Jó com o dedo anelar de um terceiro louco, arrancado pelo cutelo do louco que tinha me chamado de louco.
O terceiro louco, exceto pelo dono do cutelo e eu, era um irlandês de origem celta (mesmo sendo de Erechim, no Rio Grande do Sul), veterano de guerras imaginárias, devoto do deus Belenos, chamado pelos enfermeiros de Brito Teutônico, mais conhecido na casa como Merlin, por causa da longa barba branca suja de sopa e da origem celta, que carregava num brasão junto à lapela, só permitida a ele porque a barba longa e branca lhe dava certa autoridade. E afinal, na cabeça, ele era um oficial.
Logo após ter seu dedo delicadamente decepado, pouco antes da tropa de choque terapêutica arrastar todos dali, Merlin me contou que havia combatido junto à foz do Mondego, e disse tudo de costas para mim, enquanto olhava o sangue borbotar em bolhas do seu dedo, e antes que eu pudesse replicar qualquer coisa, me interrompeu alegando que, infelizmente, apesar da boa prosa, teria que me deixar, pois estava atrasado para a Festa da Bergamota. Apertamos as mãos segundo os preceitos da Távola Redonda, com uma cusparada em cada palma, e Merlin acabou espancado por dois enfermeiros sem olhos e de colarinho alto. Logo depois foi levado embora, enquanto olhava maravilhado seu sangue escorrer e ainda gritava palavras enigmáticas, entre as quais: “Avante, tropa, até as colinas de Salamanca!”.
Deixei meu amigo recente com seu cutelo na mão – ele logo também foi arrastado a bordoadas pelos enfermeiros –, enquanto que com a outra mão ele contava pontos pretos na parede verde com pontos pretos. Fui encontrar meu amigo Jácomo no terraço feito de azulejos.
Tinha muitas afinidades com Jácomo, como por exemplo a participação na frente de Matamoros durante a Guerra de Secessão. Conversamos um pouco sobre seu livro preferido, “A Cabana do Pai Tomás”, que ele estava relendo por uma brochura em cuja capa estava escrito: “Corto Maltese em: a balada do mar salgado”.
Falamos sobre lembranças da guerra, como o dia em que os primeiros tiros ecoaram no Forte Sumter, e ao conversarmos sobre como manter a mente sã dentro de um sanatório, chegamos à conclusão de que era mais ou menos da mesma forma que se faz na fila do banco, debaixo do chuveiro, na sala de espera do dentista, com uma flor na mão debaixo da chuva, numa sala de aula, tirando meleca sem ninguém ver, na ópera, numa jaula ou numa casa de massagem.
Então, assim, repentinamente, Jácomo se deprimiu, encolhendo-se e me dando murros como se fosse um gorila. Segundo ele, era porque o sol tinha mudado de lugar e eu não o havia prevenido.
Me estapeou e disse, com uma mão no meu colarinho e outra enfiada no buraco da sua lapela, que os enfermeiros insistiam em chamar de camisa de força por algum motivo desconhecido e óbvio:
“Diga ao seu amigo que não se destrata um oficial reformado das tropas de McDowell... E diga a ele que eu estive, entre muitos outros nobres homens, no entroncamento ferroviário de Manassas Junction!”
“Que amigo, Jácomo?”, perguntei levando a mão ao queixo para recolher um dente podre que havia se descolado da gengiva depois do tapa na cara.
“Aquele dali”, ele disse apontando para cima, com sobrancelhas monteirolobatianas.
E foi embora furioso. Fiquei ali com o culpado: o sol.
Jácomo tinha uma história de vida interessante, da qual, talvez felizmente, não se lembrava. Mas os enfermeiros me contaram durante dois cafezinhos como ele havia parado no hospício pouco antes de eu tê-lo conhecido, completamente bêbado e tuberculoso, num bar sem nome de fim de noite.
Aos 26 anos de idade se graduou doutor em filosofia oriental pela faculdade federal. Filho de pais abastados, entretanto, recém casado e com esposa grávida de uma menina, começou a levantar sua casa, tijolo por tijolo, com as próprias mãos, sem ajuda de ninguém. Nesse meio-tempo passou a beber, porque não tinha mais dinheiro para continuar a obra, nem mesmo a quem recorrer, já que a família, desgostosa por ele ter se casado com uma catadora de latas, o deserdou. Ainda sem saber como terminar a obra, casa sem teto, soube do suicídio do pai, que deixou uma carta dizendo que, de todas as decepções, de duas ele nunca conseguiu se recuperar: um a morte de Plínio Salgado, dois o desgosto com o filho único.
Jácomo bebia cachaça pura em copo de requeijão, misturava tudo que podia, fritava os olhos estourados de veias debaixo do sol quente, suava a testa para levantar a casa e não pensar em culpa.
Única dádiva, sua filha Dulcinéia nasceu de quatro quilos e setecentos. Se divertia vendo o pai empilhar tijolos. O diabo vendeu livro, furou sola de sapato atrás de dar aula particular, vendeu alma e até santinho na rua para terminar o teto da casa e poder finalmente dormir em paz. Mas um dia, de olho bambo, deixou cair um tijolo sobre a moleira de Dulcinéia, que dormia ao lado no berço e morreu imediatamente.
Uma semana depois sua esposa pulou pela janela. Deixou uma carta na qual dizia não ser possível viver sem conseguir perdoar o marido. Então Jácomo, com todo direito, enlouqueceu. E foi para o manicômio, com ajuda de um ex-aluno dedicado. Rapidamente se adaptou, pois acreditava que sempre há um pouco de loucura no amor, porém sempre há um pouco de razão na loucura. Empreendedor, organizou com outros loucos pacíficos uma empresa de reciclagem de papel, na qual trabalhava como operário e distribuidor. Não era violento, o que rapidamente lhe trouxe privilégios, como três noites por semana para passear na rua.
Como já disse, conheci Jácomo num bar desses que nem nome têm. Sangrava pelo nariz e babava pela boca. Tossia bacilos. Magro, olho zureta, desenhava perfis num único traço em troca de qualquer nota. Chovia muito quando nos vimos pela primeira vez. Perguntei a ele onde ele desenhava. Me disse que poderia apanhar bloco e lápis em dois minutos. Eu disse que pagaria apenas se gostasse do desenho. Concordou com a cabeça e saiu aos tropeços debaixo da neblina moldada pela chuva.
Meu perfil ficou mesmo bom, num único traço, e lhe dei dois reais. Mas antes pedi que ele assinasse, que fizesse uma dedicatória. Olhou para mim por dois ou três minutos, sem dizer nada: um olho no meu ombro, outro na minha clavícula. Mas senti que me olhava nos olhos.
“Você sofre por quê?”, me perguntou.
“Viver é uma opção muito difícil de escolher”, eu disse sem pensar.
“Queria estar morto?”
“Não. Mas também não queria estar vivo, eu acho”.
Ele ia falar, mas estacou, engasgado. Espremeu os lábios feridos pela herpes. Os olhos piscavam sem parar, assustados com a força da respiração que sofria pelo nariz.
“Você me serve um copo de cerveja?”
“Mas é claro”, e acenei ao balconista, no que Jácomo segurou meu braço com força.
“Não deixa ele me ver por aqui... Não me serve nem se eu pagar. Bate em mim se me vê. Foi semana passada... Fiquei na rua... Me deu com um cano... Manco desde então”.
Levantei sem fazer alarde e pedi um copo plástico ao balconista. Fui ao banheiro enquanto Jácomo olhava para todos os lugares ao mesmo tempo e assoava sangue do nariz para o chão. Quando voltei à mesa encontrei apenas meu perfil desenhado, já manchado de chuva, com uma assinatura, seguida da seguinte frase: “O homem que sofre antes de ser necessário, sofre mais que o necessário”.
Por semanas achei que fosse um anjo ou um aviso, até que o encontrei mais algumas vezes no mesmo lugar, sempre ruim da tosse, voz empolada, roxo ou sangrando, pedindo uns trocados pelos perfis de traço único. Ele lembrava meu nome e me disse que a frase da dedicatória era de Sêneca, sobre quem eu nunca tinha ouvido falar, apesar de demonstrar intimidade com o filósofo. Trocamos endereços e começamos a nos corresponder.
Quase nunca entendia de onde Jácomo tirava as idéias para suas cartas, mas reconheci nelas um tremendo potencial literário, ligado diretamente a sua loucura. Depois ele mesmo me explicou que todas as cartas se baseavam em situações pelas quais ele nunca havia passado em vida, mas sim durante todas as suas mortes.
“Ninguém esquece da morte”, me disse uma vez, vermelho.
Transcrevo abaixo portanto, como documento para estudos futuros, e para que vocês, caros leitores, possam comprovar seu poder idílico e literário, uma das trocas de carta entre Jácomo e eu. Tentei, nas minhas réplicas, manter a mesma linha do seu estilo, na tentativa de estimular seus pensamentos mais enraizados de forma natural. E os meus também.
***
(Jácomo: carta sobre um coração partido)
Caro Richard Ellsworth Savage,
Te escrevo da frontaria de Walla Walla no momento em que um francês faz sua barba diante de um espelho rachado. Estou à paisana, para confundir os malditos hunos. Me demiti da unidade dos Quacres. A situação no fronte tem-se mostrado complicada. Choro e rio com facilidade, o que é um grande problema quando é preciso pegar em armas. Por favor, mande-me notícias da minha querida Evelyn Hutchins, se já se arranjou com um pega capaz de dar-lhe umas bodas e um par de rebentos cheios de ranho. Já não sei mais como é um dia sem chuva. O tempo está chegando ao seu fim. Mande saudações para Zarvoleta Karamázov.
Beijos a ti e a todos os teus,
Don Stevens.
(minha resposta)
New York, NY, agosto/1960
Respeitável Don,
Recebi seu telegrama à tarde. As notícias que envio a você não são boas. Evelyn precipitou-se e agora é a Senhora Williams. McCoy Williams é um pé-rapado vendedor de melancias. Fugiram para Louisiana, onde McCoy possui parentes ricos. Creio que ela não suportou a solidão em que você a deixou. Com o coração em pedaços faço-te saber que Níkolay Botikaiev foi atirado atrás das grades e pretendem deixá-lo lá indefinidamente. O motivo? Estuprou e matou Zarvinni, o italiano do realejo. Sabe, Don, lembro-me de ti quando me perguntam o que tenho feito. Que respostas esses sanguessugas esperam? Diabos, acordar todos os dias e encarar a desgraçada natureza dos seres humanos já não basta? Meu bom amigo Don Stevens, enfatizo outra vez minha vontade de que baixe as armas e retorne; a guerra arruinou seu juízo. Para que não fique de todo entristecido, saiba que Coltrane acaba de lançar um novo LP. Elvin Jones comeu com farofa e alcaparras os benditos tambores. Mando-te um exemplar, mas é provável que se perca no caminho e, além do mais, não terias como ouvir.
Ficam meu desejo de melhores dias e a esperança de que retorne com vida. Lembre-se: aqui também há uma guerra. Preciso da sua ajuda para vencê-la.
Dick.
(tréplica de Jácomo)
Caríssimo Richard,
Te escrevo agora de dentro de uma trincheira enlameada onde me sinto como um rato de esgoto. Posso te dizer que já esperava esse fim para Evelyn, já que nunca consegui arrancar dela um sorriso honesto que não fosse seguido de uma facada nos colhões. Saiba que posso ouvir os tambores de Elvin daqui das trincheiras do País de Trebizonda. São semelhantes aos estalidos das matracas dos pobres diabos que, como eu, destrincham suas patas de boi com molho, que na verdade não passa de uma água lamacenta. Lembro deles também quando ouço o matraquear das metralhadoras que vem do Encouraçado Bismarck. A fumaça que solta o navio me lembra uma dança de tango que tive com uma rapariga cheia de pêlos nos sovacos às margens do Rio Prata. Mas lembranças não me tiram o terror da guerra. E lhe digo: nenhum homem volta com vida de uma guerra. Até mesmo os que voltam vivos, voltam mortos. De qualquer maneira tenho levantado uma quantia razoável de táleres, moeda corrente nas trincheiras, pelando alguns eslavos fedorentos e os deixando só com as calças na mão depois de algumas rodadas de Bacará. Tomo um trago por ti, meu caro. E danço a rumba quando posso.
Saudações de um morto-vivo.
Don.
***
Estou em vias de terminar a compilação de todas as correspondências, as quais pretendo publicar separadas por quatro temas: guerra, amor, bebida, delírio.
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