26.8.18

"debaixo estou eu alejandra"




faço as pazes com a falha,
teu olho cinza me acalma
dentro do inferno de ferro
que sobrevoa nossos dias.

fugiste pelo mundo, deste
tantas voltas – fiquei aqui.
a mil por hora tu dormiste,
sentada e triste no poema.

eu olho para tua tristeza,
engulo tua voz madrasta
que range feito essa porta
que se abre para o exílio.

é tua a tristeza mais linda,
ficas linda assim horrível.
não me admira tu teres
levado isso tão a serio.

eu também teria amado
a morte, erguido os olhos
para as rachaduras nítidas
na harpa do riso mortal.

amanheço calmo de ti,
tua carne barbitúrica
arremete em todo lugar
contra meus sonhos.

alheia à dor do mundo
entraste no teu buraco
com brios cossacos
na voragem do luto.

te aceito aqui bem morta
como um anjo cinza.
teu sexo feito a mão
sobre o rosto sem traços.

verde úmido de bosta antiga:
húmus ereto do meu descaso.
gongo infantil, cocktail mental;
fantasmas em doce ereção.








18.8.18

“quando começamos”



quantas vezes não pensei em ti
antes de conseguir começar o que pensei e era:
eu preciso começar imediatamente
os tempos estão soturnos não há brecha
veja o labirinto não tem saída
amigos eu gostaria de ajudá-los
eu gostaria que me ajudassem
eu preciso desesperadamente
entender eu não tenho forças
para ser eu mesmo nem pensar
uma dose um tiro um tapa você
precisa mudar e parar de pensar
em mudar quantas vezes mesmo hoje
se contarmos apenas hoje foram já
muitas vezes eu não mereço tudo isso
eu preciso de mais ou pelo menos alguma coisa
porque não tenho nada e com nada vim
sem nada sairei e do nada vim e para o nada voltarei
ok então o amor esse atraso de maturidade
mas o que é isso rapaz sem essa ideia
não se começa nada então comecemos por
amor meu escudo minha espada meu maior medo
quando surge quando some quando empilha
que impede de começar e
quantas vezes não pensei em ti
antes de começar a pensar
em como seria começar por ti
a partir de ti reverter minha história
quebrar o muro do labirinto estar nu
diante do pensamento que diz é preciso começar
não  posso começar a pensar em começar é o fim
se começar e aqui vamos nós outra vez se começar
púrpuras repetições em volta do pescoço se começar
mas ah meu bem começar como é bom começar
e parar de pensar as mil vezes sobre quando e como começar
se a partir de ti ou inventar tudo antes mesmo de ti
e mil vezes dentro de ti me enganar e começar
sem pensar a inventar dentro de mim
o que se começasse nunca mais teria fim.

15.8.18

“poema limpo”


abandonado de idéias é possível que se veja
a espessura lisa de uma identidade rasgada em tiras
as máquinas flácidas das emoções de aleijão
quando as sirenes penetram o fígado
e os cascos pisam fundo uma esteira mecânica
de acertos velhos e impossíveis conveniências
                                             eu quero também voltar a morrer
– sentir de novo aquele gosto cinza –
e sei que não posso e não irei mas resvala
em meus sentidos essa paixão pelo medo
que me deixa mudo sempre diante
de qualquer inteligência boquiaberta e talvez fosse
impossível não fosse esse cabresto de ouro
vaga colisão de ambivalências controláveis
em suicídio lento cheio de esperanças
de um vulto maravilhoso às quatro da manhã

armas químicas de madrigais
               no inferno seco dos neurônios
a solidão ímpar da burrice
              o freio invencível do escárnio

na derrapagem de um enigma que se esparrama
naquilo que vai morrer de tanto se acertar
e periga não haver mais idéias genuínas
é o que dizem somos dantes sem dentes
numa irrupção de egos sub-cômica
em festas regadas a tinta guache
em nossas almas violadas de silêncios
                                                          intransponíveis
dos quais rimos entre nós sempre nas vezes
em que chove muito e ficamos ilhados
então não podemos desesperar a fuga
esse amor entre estranhos
                                              vendados que decidem pelas mãos
porque é preciso ao menos dois para não saber nada
entanto as palavras fogem pelo corrimão dos milagres forçados
a tolice mansa senta-se no trono de um adeus que falta
em vibrar nos bolsos do casaco de poeta
                       do qual se diz: é um casaco de mendigo

raspas de compreensão nas sobras do almoço sobre a mesa
chegaste ao ponto de ter uma mesa e isso te envergonha
no ritmo do milagre também é tua a derrapagem
nos lugares escuros que ainda amas e que te fizeram
miséria preciosa de uma terrível humilhação
nas caneletas do medo escoar a água das montanhas
aquelas mesmas da queda infinita e sem cura
e juntas as mãos se apóiam em fé reversa
já não está em seu domínio a nova semelhança
as luzes brilham mas as mãos não alcançam
no pudim do tempo senta bunda sadia mas tu
como pedinte tens a elegância de um deus ruim.

12.8.18

“no dia dos pais”



você desaparece para sempre
a cada encontro desde sempre.
essas curvas a que damos nomes
de pessoas, cidades, continentes,
desaparecem na borracha quente
dos afetos, do que segue entrando e saindo,
deixando para trás a culpa
de não ter sido muito porque não foi possível
ser de uma vez tudo que era possível ser.

não se pode querer o que é dado:
o desejo extermina o mérito.
fomos dados um para o outro,
nascemos um para o outro por isso,
para estarmos disponíveis,
ainda que às vezes mortificados,
um para o outro a toda hora.

outra vez não fiz o que você pediu,
não esperei a poeira do caos baixar,
não contei dias, não pude ser muito.
eu nunca fiz o que você pediu e veja,
aqui estamos nós dois mais uma vez.

de certa forma, te ouvir, como sempre,
mesmo quando nunca houve uma saída,
me ajudou a ganhar um pouco de tempo.

aqui em casa, agora, os gatos dormem,
eles dormem de dia e azucrinam à noite,
estou ouvindo leonard cohen, porque ele
sempre me lembra você, veja você, toda
aquela alfaiataria judaica super-chique,
e mesmo assim ele me faz pensar em ti.

os gatos dormem a tarde toda, mais ainda
quando ponho essas músicas com violino,
e meu amor está em ti porque eu vim dele.
logo mais almoçaremos desatentos juntos,
as pazes refeitas porque se pode abraçar,
e pensaremos um no outro mais uma vez
sem nos dar conta de que esse pensar agudo
e bastante estupefato um no outro é a força
do sangue na passagem perigosa do segredo.


11.8.18

“deus maneta”



nada se revela ainda,
é cedo para não tentar mais uma vez.
aqui se vai mais um pensamento
no lugar de um espelho bom.
fluindo escapando em recalques
sobre como ser um nanico
em meio a gigantes ciclopes
com olhos de anzol e fúria.

melhor a pele em ganchos
nas carnes da minha culpa.
gritar seria a mão do gênio,
mas organismos esperam
todo um ciclo de catástrofes
para o que sempre se calou
transformar-se noutra língua.

aqueles que amamos mais –
mortos que embelezam a vida
com sua pitada d’eu-estive-lá.
torcer o nariz depois cair de joelhos
é ritmo para um herói romano
– uma cartilagem reta de tesão –
e levo comigo um nariz indígena
e na minha testa não percebo
o que vai escrito enquanto evoco
serenidade nas ruelas do meu ser.

caído do mastro observo impune
a fuga repentina da tripulação,
enquanto machados de plumas
aguardam a cabeça hesitante,
querente dos prazeres mesmos
que beiravam as cartas de napoleão.

rumo à antipatia que trazem
os amantes joviais muito magros
a quem prejudico com sorrisos
de silêncio viril sedento de ternura,
aquele mesmo silêncio de faca
tão calmo que nos completa.

ruborizo na imensidão da minha fraqueza,
dou a curva na piedade com escoriações,
vago no óleo de uma máquina em apuros,
nova centopéia cega com suas cem patas,
na boca de um eclipse na juba de um leão,
uma nova máquina me domina em mim.

voltei a violentar as palavras
naquele caderninho sem pauta,
talvez de medo que elas venham
quando eu não estiver pronto.

ainda posso ver um rapaz magro
cheio de poeira e queixo prognata,
esse já não virá mas não me larga.
entender o caos que me abandona
enquanto o carro das revoluções
passa diante dos meus olhos acesos.
num fim de feira fixo a preço baixo
vejo meus amigos tornarem-se bustos.
minha bondade arranca a mão de deus.