31.12.16

"cabaço"


ainda falo veementemente
sobre a perda do meu cabaço,
capa frágil que me protegia
da inevitável humanidade.

sem crânio volto ao gólgota,
com o esqueleto aposentado.
a montanha-russa dos dados
já não faz o mesmo sentido;
já não faz o mesmo sentido
falar sobre isso agora.

eu não inventarei
um novo sentido.

entrei calado num país manco,
me diverti aos prantos
com o fato de não ter criado
nada com que se ganha algo.

corre as gavetas o azeite único
do último navio que se afasta,
migrando no tronco firme
de uma longa dinastia anã.

não ganho, nunca perdido,
me envolvi com certo fogo,
certo charme de incêndio.

na minha opinião recolho,
dos repolhos que, feios, são
sempre muito nutritivos.

então eu reponho a face
no lugar da metade sobrante
porque ainda estou aqui,
nos meus anos oitenta,
nascido charrua natural
na lembrança da membrana
violada que rompe o crânio.

mas ainda não sou eu aqui,
este ainda não é o meu país.
é apenas mais um cabaço
possesso gritando em vão,
anões distantes, sujo rastro
na magenta de um vulcão.

25.12.16

"nossas pedras"



na escuridão da estrada
estão as pedras inevitáveis
do crescimento, no sentido
de passagem atropelada
e sem explicação sólida.

na clareza do amor
também há pedras,
porque se algo é criado,
vem sempre da pedra,
a coisa que não sabemos,
a coisa que muda o curso,
a coisa que assassina,
chamada pedra máxima.

estamos na escuridão
da estrada agora e,
por enquanto, as pedras
que nós sabemos
estão nas nossas mãos.

mas elas virão sem desespero,
as pedras inevitáveis, pedreira,
as pedras maiores que amassam
e as menores que se infiltram
no sangue e debaixo das unhas.

e quando vierem, é provável,
estaremos de olhos fechados
e as pedras em nossas mãos,
fechadas de medo e de fúria,
justificarão nossa esperança,
uma última vez ainda e mais,
o sangue da carne apedrejada.

24.12.16

"poema azul para paul celan"





ao romper do osso,
jaz o equilibrista azulado
com a corda na volta do pescoço.

um pente de areia varre
os ossos velhos rompidos,
entre as unhas sobram
filetes de coisas mortas.

nas papoulas do esquecimento
jaz o homem-tocha, azul.
na peruca das horas
nasce o filho sem olhos.

as sobras do passado
carregamos entre as unhas.

nas cutículas do tempo
carregamos o amor, azulado.

se roemos vorazmente,
osso com osso, unha com dente,
é porque o domador
de leões foi engolido vivo.

o passado desgovernou-se
em presente marinho
e no filete do sangue,
no filho sem horas,
na sobra das unhas,
no tempo dos ossos,
trazemos o amor, azulado.

23.12.16

“um poema temeroso”


– ó meu deus é preciso!
saber filtrar a nobre experiência
de tudo que perdura no caldo
da experiência humana
correspondente a ti próprio,
que és um pouco de todos
e um muito do que não há.

mesmo assim reténs aos atropelos
pelo mínimo cada vez menor
que tens de humano reconhecível
e não usas lanternas no escuro
dos labirintos que nunca houve
a não ser na tua calva têmpora
que agora se cansa em calo
de emoção represada,
de emoção despejada,
de emoção desprezada.

porque não sabes o combate
para fazer valer os sonhos
e cantar fardos noutra língua.

– ó meu deus é preciso!
saber lamber a nova língua
que, monstro mitológico
num preâmbulo pouco
aguardado no mundo,
suspende teu coração fraco
com mil dentes de medo.

12.12.16

"elegia ao fim do mundo"


um jardineiro é sempre
uma motivação.

eu não acharia ridículo
mais armadilhas,
um aspecto importante
que fica de fora.

dentro de todo jardim,
uma motivação,
para não achar ridículo
um jardineiro.

armadilhas são jardins
que motivam
o jardineiro a ficar fora.

revirar a terra
é como revirar os olhos.

verter o sexo
no estupro da papoula,
o áspero que
já não sabe mais chorar.

o sexo revira
a terra do olho áspero
em papoulas
de divertidos aspectos.

motivamos,
estuprados, bílis fiel,
áspero revirar.

que o jardineiro limpe
o ainda motivo.

estupradas armadilhas:
o ainda choro
do jardim motivacional.

os divertidos
revirados fora do sexo,
terra no olho
de papoulas decoradas.