23.6.12


Toulouse-Lautrec



Estas linhas serão preenchidas porque me sinto muito abatido. Completo as linhas disso com que não consigo completar meu sentimento. Sou aquele homem ao meio. Convulsão da selva em paralisia de boulevard. Ainda assim, sento-me à mesa do bar, abro o caderno, peço uma bebida. Hoje sou o pequeno gigante à mesa, atento e desleixado junto ao seu material, à sua substância. Com paciência ouço os grunhidos dos embriagados: os únicos que sentem o peso da noite sobre a Terra. Preciso manter-me atento, engolir rápido o líquido e me ater ao papel. Hoje serei isso. Uma visão limitada por cinturas, mais esguia que uma fresta, suplicante de membros que não saibam falar.

Rio de Janeiro, 23 de junho de 2012.

Manhã mortal

Uma menina morre atropelada por um caminhão que foge sem prestar socorro em meio à cúpula dos povos. Além disso, existe uma velha morrendo no primeiro andar do prédio onde me encontro, ninguém sabe de quê, suspeito de remorso, ressentimento, maldade, sonho. Porque se morre de sonho. É o plano mais comum de deus. Os que sobram sem doenças graves são os maus na Terra, imunes a tudo menos ao definhamento que explode como avalanche nas vidas em volta. A velha não aceita ir ao hospital. Ela bate, cospe, subjuga a irmã mais nova, sem dentes na frente, aleijada, feliz. Mas a velha feliz não tem o corpo forte dos que podem ser felizes. A que pode andar, e vai morrer, defeca nas próprias calças, não toma mais banho, conta os homens com que copulou, muitos homens. Fico no terceiro andar, recebendo indiretamente notícias da morte. Os médicos não veem. As velhas têm cinco gatos e uma imensa tartaruga que, provavelmente, viverá muito além das duas. A velha que não quer viver, mas custa a morrer, e vai morrer, não permite que a velha mais nova que quer viver viva. A mais nova, mesmo aleijada, sem dentes na frente, acanhada, aleijada por dentro e por fora, quer viver. A que teve muitos homens, usou batom forte, bebeu, fumou, comeu quando teve fome, dormiu quando teve sono, teve pouco sono, essa quer morrer. O que fazer? – o prédio todo se pergunta.  A morte apresenta-se finalmente como fardo sem nobreza. Como é difícil livrar-se de alguém. As pessoas todas, ao sensibilizarem-se com a morte, acabam por matar em si a vida insensível, que prolonga a existência. Afasto-me para a varanda sempre que surgem notícias. Tampo os ouvidos e fumo um cigarro. Espero ansiosamente por esta parte do dia.

Rio de Janeiro, 22 de junho de 2012

o nascimento alheio
o nascimento de si
o nascimento de si no alheio
e do alheio em si

Aconteceu uma coisa e não consigo me desvencilhar de pensar nela o tempo todo, desde que aconteceu. Algo foi gerado dentro de um corpo enquanto eu também estava dentro desse corpo gerando a mim mesmo, “ganhando vida”, como se diz nos bosques queimados. Portanto, algo foi gerado dentro de um corpo enquanto eu mesmo me gerava dentro dele. Ciúmes do algo gerado, porque esse algo gerado foi gerado dentro, por forças de fora; seu estado é, portanto, de dádiva pura, aparição, profecia, milagre da existência divina. Já no meu caso, fui gerado a mim mesmo dentro do mesmo corpo, mas esse corpo não me gerou, não se trata, portanto, de aparição; a situação é  mais sofrível, pois parte da falta de escolhas, mas da impossibilidade de não escolher. Fui eu que me gerei nesse corpo e, apesar de responder por isso em pessoa, porque eu fui até esse corpo pessoalmente, ou seja, uma pessoa fez isso por mim, no meu lugar, como que substituindo o eumesmo mais crítico e inatingível, que, este sim, através de um movimento pessoal, cometido por alguém que não sou eu mesmo no meu lugar, mas sou eu porque quero sempre pensar que eu seja eu, o eumesmo mais crítico e inatingível permitiu-se rasgar mais uma vez pelo comportamento de um corpo que não o pertence, mas que ele habita, e habitando nesse não pertencido o eumesmo só pode se gerar no outro corpo, o que o coloca bem mais numa situação de pedinte, como quem grita “ei, deem-me um lugar para que eu possa me gerar!”. E isso tudo me difere daquele ainda outro corpo, este sim, terceiro, gerado exteriormente, num movimento de fora para dentro, que resulta em vida plena, chance, estrada. Minha falta de convicções me atribui espaços alheios como próprios, e só posso gerar a mim mesmo muito ocasionalmente, quando uso um corpo alheio para me fazer sentir gerado, mesmo estando na posição de gerador, o que causa muita confusão e disritmia. Mas dessa vez estive gerado, dividindo o espaço com outro corpo não ativo que manifesta um poder geograficamente mais forte do que eu neste corpo em que me gero. Algum dia gerarei algo além de mim mesmo, nalgum corpo, que nunca tenha sido eu? Algum dia poderei ver um pedaço de mim funcionando com maior prestígio num campo alentado para sua chegada e providência? Sou irmão do corpo gerado externamente e com o qual divido espaço no mesmo corpo em que me gero. Fomo-nos gerados, isso basta. Tenho um irmão que posso ver, que não sou eu, de uma diferente constituição, mas ocupamos a mesma caverna e, apesar das diferentes formatações, somos vias anacrônicas de uma mesma tragédia, formada do espaço que fica entre o que é gerado e o que se gera em si mesmo através disso. Mas uma coisa é certa e, talvez por isso, fique na cabeça: fui-me gerado ao saber que, no deserto da minha geração, havia outro gerado, senão dentro de mim, ao menos ao lado, usado da mesma substância aleatória, a que podemos aos prantos – porque no fundo não sabemos – chamar de amor ou vibração de mistérios.

Rio de Janeiro, 21 de junho de 2012

18.6.12

"malha fina"

imaginemos então que
sobre a malha fina
de um gramado celeste
houvesse um ser esperando por nós.

ali estaria ele esperando
que déssemos a ele um nome,
ele que foi concebido na mistura
de dor e afeto e plasmas de paixão,
e ali estaríamos nós sem nomes
para dar a nós mesmos.

é preciso força,
contra a paralisia e contra
a falta de coragem,
para imaginar acima das palavras
essa malha fina
onde nos espera o antecriado.

do vão inacessível de nossos excrementos
surge o inanimado presente,
o feto do amor romanesco
em tempos de corpos em sacos.

e sabemos que uma vez pusemos
o nascente em contato com o que morre,
aquilo que se mexe em nós
avassalando a pele com pontas;
houve o encontro, imaginemos,
nessa malha fina, onde enfim
pudemos inaugurar um sonho.

13.6.12

"adiantamento semiótico"


o que eu quero de nós é o sim maior,
porque é a única forma de que o não
seja pequeno e não pequeno o sim,
ou então esse não maior que é sim,
para manobrar o tempo palpável,
pedir um adiantamento e a conta,
quando no fundo o que eu quero
é um adiantamento semiótico de ti,
que abuses da minha índole e fira
com entusiasmo as correntes frias
que nos mantêm em uníssono sim
ao que não sabemos como se dará,
e que nos faz guardar nãos no bolso
como pétalas manchadas de sangue.

8.6.12

"cair de joelhos em Minas Gerais"



“If you can bring nothing to this place
but your carcass, keep out.”

(William Carlos Williams)

a menina que puxa a perna e cuja dor
a faz sorrir sem força é a massagem do tempo
sobre as panturrilhas dos meus anos.
sem ênfase – oh salvá-la! – salvá-la de mim.
dar a ela ênfase de mim para que nunca se desespere.
para que das minhas pernas taludas surja
o aleijão divino ainda embrionário,
fruto de um estupro perene, com dentes abertos.

e com tua perna manca eu posso ter três pernas.
que é o que sempre tive e nunca mais me recordei.
porque quando amamos sempre surge o terceiro fator.
brecha aveludada de mar bravio e intoxicação lacrimosa.
que me faz perguntar: “algum dia tive?”

mas é o fim das perguntas, quero apenas saber
sem pontuação de que forma preferes ser penetrada.
e será em muitas posições as mais variadas
e servirá para nos fazer gozar e aumentar a dor
– florescer exige irromper a pele –
sem aresta de passo largo funcionaremos
em meio a gritos de assalto, crianças e açoites,
seremos netos e avós sem saber como encontrar os pais.
darei em minutos de ano a volta,
para erguer teu quadril por ora devastado.
usarei tuas tintas e beberei tua atenção,
para rasgar com alguma dignidade os quadros velhos
que no fundo nunca nos serviram e jamais nos deixarão.
porque fungávamos de amor,
seminal amor dos que só podem amar.

aqui estou pela primeira vez apaixonado e lúcido.
já que os bloqueios são apenas frases e nosso grafite
se faz em movimentos firmes, gestantes.
alquebradas fases do que com a purpurina de nossa carne
chamaremos nova forma, como nem mesmo
Carlos Williams pode ver com sua chave médica.
ensina-me portanto o corpo finalmente relacionado com a vida.
ensina-me finalmente o corpo-máquina
que até aqui decepou mãos suplicantes.
arranca-me da base de meus joelhos estupefatos
e a cabeça afrouxará as rédeas do medo.
acaba agora com minhas ideias gestantes.
afasta-me – retorna-me à vida física sem convicções,
plasma vivo sem amém.

quero tua história para que eu me cale em desafio
e ressurja para ser a prova de vergonha
deglutida em foice pela aflição do afeto.
dobra de causas minhas vazias pretensões.
derruba o muro do meu fingimento fílmico
e deforma o meu silêncio imprestável.
assim termino.

voltar enfim para casa estuprado pela vida
– e não ter mais casa.
matuta voragem de raízes, ingênua comoção da química.
adeus ideia de conjunto, carinho de gênese.
adeus beleza ensurdecedora do brutal convívio,
poema supremo, estrada.
adeus Carlos Williams e seus dez passos
até o centro da velha cidade.
bem-vindo medo comprovado de toda beleza,
impossível beleza que acena de nossos cílios,
a mancos passos de glória.