Manhã mortal
Uma menina morre atropelada por um
caminhão que foge sem prestar socorro em meio à cúpula dos povos. Além disso, existe
uma velha morrendo no primeiro andar do prédio onde me encontro, ninguém sabe
de quê, suspeito de remorso, ressentimento, maldade, sonho. Porque se morre de
sonho. É o plano mais comum de deus. Os que sobram sem doenças graves são os
maus na Terra, imunes a tudo menos ao definhamento que explode como avalanche
nas vidas em volta. A velha não aceita ir ao hospital. Ela bate, cospe, subjuga
a irmã mais nova, sem dentes na frente, aleijada, feliz. Mas a velha feliz não
tem o corpo forte dos que podem ser felizes. A que pode andar, e vai morrer,
defeca nas próprias calças, não toma mais banho, conta os homens com que copulou,
muitos homens. Fico no terceiro andar, recebendo indiretamente notícias da
morte. Os médicos não veem. As velhas têm cinco gatos e uma imensa tartaruga
que, provavelmente, viverá muito além das duas. A velha que não quer viver, mas
custa a morrer, e vai morrer, não permite que a velha mais nova que quer viver
viva. A mais nova, mesmo aleijada, sem dentes na frente, acanhada, aleijada por
dentro e por fora, quer viver. A que teve muitos homens, usou batom forte,
bebeu, fumou, comeu quando teve fome, dormiu quando teve sono, teve pouco sono,
essa quer morrer. O que fazer? – o prédio todo se pergunta. A morte apresenta-se finalmente como fardo
sem nobreza. Como é difícil livrar-se de alguém. As pessoas todas, ao
sensibilizarem-se com a morte, acabam por matar em si a vida insensível, que
prolonga a existência. Afasto-me para a varanda sempre que surgem notícias.
Tampo os ouvidos e fumo um cigarro. Espero ansiosamente por esta parte do dia.
Rio de Janeiro, 22 de junho de 2012
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