23.6.12


Manhã mortal

Uma menina morre atropelada por um caminhão que foge sem prestar socorro em meio à cúpula dos povos. Além disso, existe uma velha morrendo no primeiro andar do prédio onde me encontro, ninguém sabe de quê, suspeito de remorso, ressentimento, maldade, sonho. Porque se morre de sonho. É o plano mais comum de deus. Os que sobram sem doenças graves são os maus na Terra, imunes a tudo menos ao definhamento que explode como avalanche nas vidas em volta. A velha não aceita ir ao hospital. Ela bate, cospe, subjuga a irmã mais nova, sem dentes na frente, aleijada, feliz. Mas a velha feliz não tem o corpo forte dos que podem ser felizes. A que pode andar, e vai morrer, defeca nas próprias calças, não toma mais banho, conta os homens com que copulou, muitos homens. Fico no terceiro andar, recebendo indiretamente notícias da morte. Os médicos não veem. As velhas têm cinco gatos e uma imensa tartaruga que, provavelmente, viverá muito além das duas. A velha que não quer viver, mas custa a morrer, e vai morrer, não permite que a velha mais nova que quer viver viva. A mais nova, mesmo aleijada, sem dentes na frente, acanhada, aleijada por dentro e por fora, quer viver. A que teve muitos homens, usou batom forte, bebeu, fumou, comeu quando teve fome, dormiu quando teve sono, teve pouco sono, essa quer morrer. O que fazer? – o prédio todo se pergunta.  A morte apresenta-se finalmente como fardo sem nobreza. Como é difícil livrar-se de alguém. As pessoas todas, ao sensibilizarem-se com a morte, acabam por matar em si a vida insensível, que prolonga a existência. Afasto-me para a varanda sempre que surgem notícias. Tampo os ouvidos e fumo um cigarro. Espero ansiosamente por esta parte do dia.

Rio de Janeiro, 22 de junho de 2012

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