Disseram-me pelo telefone que eu deveria procurar um sujeito chamado Campos. Quando cheguei à livraria, vi que era ainda cedo demais, meu estômago fazia sons estranhos, então fui dar uma cagada. No banheiro percebi que estava com umas olheiras enormes, meu intestino não ia nada bem, mas eu fingi que ia tudo bem. Saí do banheiro, entrei na livraria e me dirigi a uma guriazinha muito magra com mau hálito e gânglios no pescoço, em pé atrás de um balcão, sustentando um sorriso postiço:
- Preciso falar com o Campos – eu disse a ela.
- Você veio para a dinâmica de grupo?
- Acho que sim.
- Suba até o auditório e espere.
Subi até o auditório e lá encontrei alguns rostos querendo parecer calmos. Dois ou três homens com cabelos em forma de cuia e ternos justos de veludo, fumando cigarro. No mais eram umas dez mulheres, todas arrumadas como se tivessem apenas aquelas roupas, todas parecendo mulheres duras e fatais capazes de tudo. Aquilo era parte do processo seletivo, na certa, mas como era cedo demais para demonstrar dureza e capacidade, dei meia-volta e permaneci no andar de baixo, como um homem ridículo com disfunção renal, folheando um livro com as obras completas de Van Gogh, divididas por período. O período posterior à internação no manicômio de Saint-Rémy era o melhor - disparado. Depois que ele saiu de lá e foi para Auvers, suas pinturas abandonaram a até então vigorante inquietude ecumênica e se tornaram sobrenaturais, mal-assombradas, feitas por um homem de gênio que perdeu a cabeça. Umas gravuras japonesas também me chamaram a atenção quando, de repente, vi que as pessoas começaram a entrar no auditório, atrás de um rapaz careca aparentemente efeminado.
Fui o último a entrar, acreditando que aquilo poderia causar algum impacto positivo para minha insegurança. O impacto foi que comecei a suar no buço, e a camisa começava a marcar debaixo das axilas.
Campos era um homem lá pelos seus trinta anos, ou talvez fosse mais jovem, mas, pela careca, parecia mais velho. Ele era o psicólogo que analisaria os candidatos à vaga de vendedor.
Ao lado de Campos havia um outro homem, bem mais simiesco, escuro mas não negro. Ele se apresentou como González, mas teve que repetir o nome três vezes até todos entenderem. Isso serviu para descontrair o ambiente que, como um todo, escorria a suor e expectativa, e todos sorriram, alguns deram risadinhas por baixo das mãos. González nos olhava como quem tem uma posição superior à sua e não se importará em dificultar a sua vida, se você ficar cheio de nove horas.
- Bom, pessoal – disse Campos –, vamos fazer hoje aqui mais uma etapa de seleção para o departamento de vendas da Livraria Cultura. Meus parabéns aos que passaram pela primeira fase, de conhecimentos gerais sobre a cultura universal...
“Cultura universal”, e toda aquela velha conversa mole.
- Agora, cada um de vocês deve ir até a frente do palco para se apresentar, contar um pouco da vida de vocês. Você – e apontou para uma menina completamente estrábica, e seus olhos vesgos tinham um charme sutil.
Era magra e angulosa. Você podia pensar nela em centímetros quadrados. Se era atraente? Não especialmente. Usava óculos com aros transparentes e parecia ter uma perna mais curta que a outra. Sem jeito, disse seu nome, que eu esqueci assim que ouvi, disse também que trabalhava num brechó e estudava filosofia medieval. Isso é mais fácil de lembrar, por motivos óbvios.
Campos resolveu fazer um truque traiçoeiro e perguntou à menina que obra de arte a definiria. Ela gaguejou um pouco, mas, quando falou, não estava trêmula: “Campo de corvos com trigo”.
- Você quer dizer “Campo de trigo com corvos”?
Alguns riram, eu procurava seus olhos, desperdiçados pelo chão. Ela ficou vermelha e, cabisbaixa, voltou ao seu lugar. González pediu licença para ir ao banheiro.
Desnecessário discorrer sobre todo esse processo. Dos treze ou catorze candidatos, dez eram cineastas, todos com uma vasta ou pelo menos promissora bagagem, me lembro que um disse que seu filme favorito era – francamente – Kill Bill. Havia também uma outra menina que só lia ficção científica inglesa dos anos 30, e citou “A Revolução dos Bichos”, ficção não-científica dos anos 40, como obra que definia sua personalidade, pelo que alguém no fundo do auditório simulou o guincho de um porco. Alguns riram. González voltou do banheiro. Lenço na mão, suando. Pobre González.
Havia também um marxista foucaultiano que defendia a idéia de que a contradição leva à ruína – sujeito amistoso – e um antigo membro, não se sabe de que tipo de anatomia, do finado movimento punk (?) brasileiro, “dessa turma aí dos Replicantes”, disse o próprio, hoje um senhor barrigudo e bonacheirão, metido num suéter de lã vermelho, três filhos pequenos, dívidas imensas. Nesse momento senti culpa. Eu não tinha filhos. Eu nunca tinha ouvido falar do finado movimento punk brasileiro. Nada em mim, ou na minha mais remota memória, cheirava a suéter de lã. Eu não merecia a vaga dele.
De minha parte mesmo, me saí terrivelmente na apresentação. Olhando os encontros das vigas de sustentação vermelhas, disse basicamente que eu era um expatriado, sem rumo, que tinha acabado de chegar à cidade natal, sem saber muito por quê. E, pondo tudo a perder, citei quase aos prantos que a obra que me definia era “O sol também se levanta”.
- De quem? – disse Campos me apontando com o lápis, como se soubesse, mas tivesse esquecido propositalmente.
- De quem o quê? – eu disse, pensando em grades e calcinhas no varal.
- O livro.
- Ernest Hemingway – mas sob pressão eu pronunciava sempre mal o Ernest, para dentro.
- Herbert quem?
- Ernest, Ernesto Hemingway, o escritor americano.
Campos sorriu com um sorriso de boca aberta, o sorriso normalmente feito por uma pessoa que reflete se você é mesmo ou não um idiota. Procurei Hemingway nos olhos das pessoas sentadas nas poltronas, não achei nem mesmo Kafka. Era tudo liso, ornamentado, pronto para explodir de tanta contenção.
- Pode sentar... Como é mesmo o seu nome?
- Leonardo Marona.
- Leonardo Marone, por gentileza...
- Marona.
- Sim, oquei, ao seu lugar...
Campos sorria quando me conduziu. González tinha ido outra vez lá fora, com um cigarro na mão, murmurando algo em outra língua. Estava numa pior, o coitadinho.
Era lógico que meu desempenho na apresentação tinha contado pontos negativos na minha avaliação como candidato, mas eu ainda me mantinha razoavelmente humano. Depois que todos se apresentaram, ficamos esperando o González voltar. Alguém levantou a mão.
- Sim? – disse Campos, de braços cruzados, com as sobrancelhas.
- Qual é a função do Gonçalves?
- González...
- Sim, qual é?
- Ele é fiscalizador.
- Ele é fiscalizador da fiscalização, é isso?
Todos riram. González entrou. Um silêncio afiado de fuligem no ar. Campos dividiu as pessoas em dois grupos e simulou situações de venda. No meu grupo havia um sujeito metido a malandro que já trabalhava como caixa-registrador na livraria e estava fazendo o processo seletivo apenas para mudar de área. Ele logo antipatizou comigo, quando lhe perguntei se ele não deveria estar participando de outro processo de seleção, e não deste. Simularam um problema e todo o grupo era a favor de esconder do cliente a causa do problema. Eu defendia que era melhor jogar às claras para evitar mais problemas. Uma gordinha de cabelo roxo com um cacho branco na franja e um brinco no nariz disse que eu era “mais chato do que o cliente”. Fui voto vencido, e não senti em momento algum que aquilo pudesse ser bom para as minhas possibilidades.
Mesmo assim respirei fundo. Sempre tive tendência a me controlar nos momentos críticos. E ali estava eu, formado na faculdade, um bom filho, sem graves problemas com drogas, mesmo assim alguém de difícil convivência, com certo talento teórico, tentando mostrar normalidade, diante de um precipício. E não me interessava o trabalho no fim das contas, eu queria apenas poder estar legitimamente naquela cidade, e o trabalho era a forma mais hipócrita e, portanto, a mais natural de se alcançar isto.
Saímos da dinâmica de grupo, nos demos beijos nas bochechas e limpamos as mesmas com as costas das mãos. Seguimos direto aos cigarros e aos pontos de ônibus, diante da cor encardida de qualquer ponto em Porto Alegre. Vomitei um pouco num canto, suei frio, senti falta da minha mãe, pobrezinha, indígena, o intestino comido por dentro.
Reparei outra vez naquelas perninhas de gambito. É como se diz em Pernambuco: pernas de gambito. Ainda por cima, com os pés para dentro. Magra e desamparada, duas características irresistíveis nas mulheres, que me encantam. Muitos pêlos nos braços, negros, grossos, dando a entender um cheiro entranhado extremamente frágil, e sexual.
- Oi, sabe que ônibus eu pego pro Bonfim?
- Eu vou pra lá.
- Você errou o quadro do Van Gogh.
- Pois é, acontece.
- O que foi?
- Fiquei nervosa.
- Acontece, realmente.
Entramos no ônibus, fomos em pé, ele passou lotado.
- Escuta, você dança? É que eu ainda não conheço ninguém. Não saio nunca.
- Não danço. Como vê, sou manca.
E eu poderia apenas dizer o quanto ser manco era antigo para mim. Os olhos alucinados de Van Gogh em Saint-Rémy resplandeciam sobre os olhos da menina de quem eu nem mesmo sabia o nome e, afinal, no fundo não se sabe o nome de ninguém. Eu tinha vontade de dizer coisas bonitas sobre alguns momentos breves do cérebro enfim refeito. Dizer que algumas vezes realmente sabemos o que nos pode encantar, reconhecemos isso, e damos o braço a torcer por isso, e repetimos as mesmas antigas doses exageradas, e desejamos amantes com certa coerência, e nisso reconhecemos os estrangeiros do mundo, por isso queremos os amputados, os mancos e os com a cabeça a prêmio: eles são os mais nobres, com as cordas em volta do pescoço e o grito amputado.
- Ei, aquela conversa de filosofia celta medieval é verdade?
- Não falei nada sobre filosofia celta.
- Você tem quantos graus?
- Nove e meio de miopia.
- Isso não é muito?
- É quase tudo.
- No fundo, sempre é.
Ela disse também que cantava numa banda de rock. De que tipo? Alternativo. Enfim, de vez em quando ela pintava o cabelo de verde, ou de roxo, e saía derrubando latas de lixo por aí. Uma bela alma, duas almas sem emprego, nem felizes nem tristes, apenas assustados. Com os pés para dentro, as pernas tortas, todos os graus possíveis, pedindo carona para o dia seguinte.
- Você acha possível que a gente consiga o emprego? – eu perguntei a ela, enquanto ela descia do ônibus.
- Você acha que Van Gogh conseguiria? – ela disse, e me mandou um beijinho com a mão.
- Preciso falar com o Campos – eu disse a ela.
- Você veio para a dinâmica de grupo?
- Acho que sim.
- Suba até o auditório e espere.
Subi até o auditório e lá encontrei alguns rostos querendo parecer calmos. Dois ou três homens com cabelos em forma de cuia e ternos justos de veludo, fumando cigarro. No mais eram umas dez mulheres, todas arrumadas como se tivessem apenas aquelas roupas, todas parecendo mulheres duras e fatais capazes de tudo. Aquilo era parte do processo seletivo, na certa, mas como era cedo demais para demonstrar dureza e capacidade, dei meia-volta e permaneci no andar de baixo, como um homem ridículo com disfunção renal, folheando um livro com as obras completas de Van Gogh, divididas por período. O período posterior à internação no manicômio de Saint-Rémy era o melhor - disparado. Depois que ele saiu de lá e foi para Auvers, suas pinturas abandonaram a até então vigorante inquietude ecumênica e se tornaram sobrenaturais, mal-assombradas, feitas por um homem de gênio que perdeu a cabeça. Umas gravuras japonesas também me chamaram a atenção quando, de repente, vi que as pessoas começaram a entrar no auditório, atrás de um rapaz careca aparentemente efeminado.
Fui o último a entrar, acreditando que aquilo poderia causar algum impacto positivo para minha insegurança. O impacto foi que comecei a suar no buço, e a camisa começava a marcar debaixo das axilas.
Campos era um homem lá pelos seus trinta anos, ou talvez fosse mais jovem, mas, pela careca, parecia mais velho. Ele era o psicólogo que analisaria os candidatos à vaga de vendedor.
Ao lado de Campos havia um outro homem, bem mais simiesco, escuro mas não negro. Ele se apresentou como González, mas teve que repetir o nome três vezes até todos entenderem. Isso serviu para descontrair o ambiente que, como um todo, escorria a suor e expectativa, e todos sorriram, alguns deram risadinhas por baixo das mãos. González nos olhava como quem tem uma posição superior à sua e não se importará em dificultar a sua vida, se você ficar cheio de nove horas.
- Bom, pessoal – disse Campos –, vamos fazer hoje aqui mais uma etapa de seleção para o departamento de vendas da Livraria Cultura. Meus parabéns aos que passaram pela primeira fase, de conhecimentos gerais sobre a cultura universal...
“Cultura universal”, e toda aquela velha conversa mole.
- Agora, cada um de vocês deve ir até a frente do palco para se apresentar, contar um pouco da vida de vocês. Você – e apontou para uma menina completamente estrábica, e seus olhos vesgos tinham um charme sutil.
Era magra e angulosa. Você podia pensar nela em centímetros quadrados. Se era atraente? Não especialmente. Usava óculos com aros transparentes e parecia ter uma perna mais curta que a outra. Sem jeito, disse seu nome, que eu esqueci assim que ouvi, disse também que trabalhava num brechó e estudava filosofia medieval. Isso é mais fácil de lembrar, por motivos óbvios.
Campos resolveu fazer um truque traiçoeiro e perguntou à menina que obra de arte a definiria. Ela gaguejou um pouco, mas, quando falou, não estava trêmula: “Campo de corvos com trigo”.
- Você quer dizer “Campo de trigo com corvos”?
Alguns riram, eu procurava seus olhos, desperdiçados pelo chão. Ela ficou vermelha e, cabisbaixa, voltou ao seu lugar. González pediu licença para ir ao banheiro.
Desnecessário discorrer sobre todo esse processo. Dos treze ou catorze candidatos, dez eram cineastas, todos com uma vasta ou pelo menos promissora bagagem, me lembro que um disse que seu filme favorito era – francamente – Kill Bill. Havia também uma outra menina que só lia ficção científica inglesa dos anos 30, e citou “A Revolução dos Bichos”, ficção não-científica dos anos 40, como obra que definia sua personalidade, pelo que alguém no fundo do auditório simulou o guincho de um porco. Alguns riram. González voltou do banheiro. Lenço na mão, suando. Pobre González.
Havia também um marxista foucaultiano que defendia a idéia de que a contradição leva à ruína – sujeito amistoso – e um antigo membro, não se sabe de que tipo de anatomia, do finado movimento punk (?) brasileiro, “dessa turma aí dos Replicantes”, disse o próprio, hoje um senhor barrigudo e bonacheirão, metido num suéter de lã vermelho, três filhos pequenos, dívidas imensas. Nesse momento senti culpa. Eu não tinha filhos. Eu nunca tinha ouvido falar do finado movimento punk brasileiro. Nada em mim, ou na minha mais remota memória, cheirava a suéter de lã. Eu não merecia a vaga dele.
De minha parte mesmo, me saí terrivelmente na apresentação. Olhando os encontros das vigas de sustentação vermelhas, disse basicamente que eu era um expatriado, sem rumo, que tinha acabado de chegar à cidade natal, sem saber muito por quê. E, pondo tudo a perder, citei quase aos prantos que a obra que me definia era “O sol também se levanta”.
- De quem? – disse Campos me apontando com o lápis, como se soubesse, mas tivesse esquecido propositalmente.
- De quem o quê? – eu disse, pensando em grades e calcinhas no varal.
- O livro.
- Ernest Hemingway – mas sob pressão eu pronunciava sempre mal o Ernest, para dentro.
- Herbert quem?
- Ernest, Ernesto Hemingway, o escritor americano.
Campos sorriu com um sorriso de boca aberta, o sorriso normalmente feito por uma pessoa que reflete se você é mesmo ou não um idiota. Procurei Hemingway nos olhos das pessoas sentadas nas poltronas, não achei nem mesmo Kafka. Era tudo liso, ornamentado, pronto para explodir de tanta contenção.
- Pode sentar... Como é mesmo o seu nome?
- Leonardo Marona.
- Leonardo Marone, por gentileza...
- Marona.
- Sim, oquei, ao seu lugar...
Campos sorria quando me conduziu. González tinha ido outra vez lá fora, com um cigarro na mão, murmurando algo em outra língua. Estava numa pior, o coitadinho.
Era lógico que meu desempenho na apresentação tinha contado pontos negativos na minha avaliação como candidato, mas eu ainda me mantinha razoavelmente humano. Depois que todos se apresentaram, ficamos esperando o González voltar. Alguém levantou a mão.
- Sim? – disse Campos, de braços cruzados, com as sobrancelhas.
- Qual é a função do Gonçalves?
- González...
- Sim, qual é?
- Ele é fiscalizador.
- Ele é fiscalizador da fiscalização, é isso?
Todos riram. González entrou. Um silêncio afiado de fuligem no ar. Campos dividiu as pessoas em dois grupos e simulou situações de venda. No meu grupo havia um sujeito metido a malandro que já trabalhava como caixa-registrador na livraria e estava fazendo o processo seletivo apenas para mudar de área. Ele logo antipatizou comigo, quando lhe perguntei se ele não deveria estar participando de outro processo de seleção, e não deste. Simularam um problema e todo o grupo era a favor de esconder do cliente a causa do problema. Eu defendia que era melhor jogar às claras para evitar mais problemas. Uma gordinha de cabelo roxo com um cacho branco na franja e um brinco no nariz disse que eu era “mais chato do que o cliente”. Fui voto vencido, e não senti em momento algum que aquilo pudesse ser bom para as minhas possibilidades.
Mesmo assim respirei fundo. Sempre tive tendência a me controlar nos momentos críticos. E ali estava eu, formado na faculdade, um bom filho, sem graves problemas com drogas, mesmo assim alguém de difícil convivência, com certo talento teórico, tentando mostrar normalidade, diante de um precipício. E não me interessava o trabalho no fim das contas, eu queria apenas poder estar legitimamente naquela cidade, e o trabalho era a forma mais hipócrita e, portanto, a mais natural de se alcançar isto.
Saímos da dinâmica de grupo, nos demos beijos nas bochechas e limpamos as mesmas com as costas das mãos. Seguimos direto aos cigarros e aos pontos de ônibus, diante da cor encardida de qualquer ponto em Porto Alegre. Vomitei um pouco num canto, suei frio, senti falta da minha mãe, pobrezinha, indígena, o intestino comido por dentro.
Reparei outra vez naquelas perninhas de gambito. É como se diz em Pernambuco: pernas de gambito. Ainda por cima, com os pés para dentro. Magra e desamparada, duas características irresistíveis nas mulheres, que me encantam. Muitos pêlos nos braços, negros, grossos, dando a entender um cheiro entranhado extremamente frágil, e sexual.
- Oi, sabe que ônibus eu pego pro Bonfim?
- Eu vou pra lá.
- Você errou o quadro do Van Gogh.
- Pois é, acontece.
- O que foi?
- Fiquei nervosa.
- Acontece, realmente.
Entramos no ônibus, fomos em pé, ele passou lotado.
- Escuta, você dança? É que eu ainda não conheço ninguém. Não saio nunca.
- Não danço. Como vê, sou manca.
E eu poderia apenas dizer o quanto ser manco era antigo para mim. Os olhos alucinados de Van Gogh em Saint-Rémy resplandeciam sobre os olhos da menina de quem eu nem mesmo sabia o nome e, afinal, no fundo não se sabe o nome de ninguém. Eu tinha vontade de dizer coisas bonitas sobre alguns momentos breves do cérebro enfim refeito. Dizer que algumas vezes realmente sabemos o que nos pode encantar, reconhecemos isso, e damos o braço a torcer por isso, e repetimos as mesmas antigas doses exageradas, e desejamos amantes com certa coerência, e nisso reconhecemos os estrangeiros do mundo, por isso queremos os amputados, os mancos e os com a cabeça a prêmio: eles são os mais nobres, com as cordas em volta do pescoço e o grito amputado.
- Ei, aquela conversa de filosofia celta medieval é verdade?
- Não falei nada sobre filosofia celta.
- Você tem quantos graus?
- Nove e meio de miopia.
- Isso não é muito?
- É quase tudo.
- No fundo, sempre é.
Ela disse também que cantava numa banda de rock. De que tipo? Alternativo. Enfim, de vez em quando ela pintava o cabelo de verde, ou de roxo, e saía derrubando latas de lixo por aí. Uma bela alma, duas almas sem emprego, nem felizes nem tristes, apenas assustados. Com os pés para dentro, as pernas tortas, todos os graus possíveis, pedindo carona para o dia seguinte.
- Você acha possível que a gente consiga o emprego? – eu perguntei a ela, enquanto ela descia do ônibus.
- Você acha que Van Gogh conseguiria? – ela disse, e me mandou um beijinho com a mão.