30.11.08

"Lady Day"


nanicos pisaram as gardênias
nascidas da pedra e do suor
e mesmo o solo esmorecido
ajudava a situar a precoce
figura de mulher em que vibra
dor dos séculos, sinos da terra.

entre brancos e pretos, a filha
amante preciosa, pele de visom
sem saber que poucos homens
poderiam ouvir a verdade bruta
sem pasmarem com o derrame
de tanta violência, tanta ternura
como dizia aquele outro poeta
que morreu de acidente e afinal
você tantas vezes quase se foi
que agora me parece fácil falar
assim como de alguém a quem
se pode verdadeiramente amar
por estar morta e por isso dentro
de cada um que por tantas vezes
quase se foi e não sabe onde está.

mas eles fecharam as cortinas
os nanicos que cospem moedas.
mesmo assim ali há uma fresta,
uma luz cansada tremula ainda.

não foi mesmo possível, Billie
corrigir o coração dos homens
escapar ao terror a cada esfinge
mas essa luz cansada é a prova
de que onde houver amor e fome
haverá aquela música de marfim
essa brutal melancolia africana
para lembrar que vivemos muito
muito pouco, e não temos demais.

29.11.08

LEONARDO MARTINELLI (1971-2008)

Mais um poeta se matou. Por que essa frase parece tão cômica e eu não consigo rir? – a cara torta se engana diante do espelho. A morte do poeta é o próprio mito da contradição de viver. A busca do poeta, o verdadeiro poeta, que é só poeta e mais nada, portanto sendo nada, a busca do poeta é sempre a morte, o andar cambaleante de quem espera um cataclismo, a direção do poeta é sempre a resolução inevitável do que se funde fátuo, mas muitos poetas, como quase eu muitas vezes ou anteontem, não admitem que na busca da morte se encontre a vida bruta, sem regras, inacessível porque dispersa e cheia, sem arestas. E para isso serve o poeta: ensinar sobre a vida com a própria morte. Não falo aqui de apologias ou bustos erguidos em pedra. Falo da presença eterna dos vultos, dos signos insondáveis que regem vagas potências, falo aqui da necessidade violenta de se olhar fundo a morte nos olhos, assim frente a frente, oferecer a ela um pirulito, mas há que se voltar, isso muitos poetas se esquecem, porque algo de fora, de muito lá fora, lembrou que nem tudo está sob controle, e as paredes de repente incharam, e os amigos tomaram as mais longínquas embarcações, mas equivoca-te se pensas estar só, és da cor do precipício mas brilha em ti a máscara mais delicada, pudera alguém chegar bem perto, inclinar o julgamento para apaziguar o ânimo, devagar, junto ao ouvido, dizer: “calma, dorme um pouco, esquece isso”. Mas estás num círculo de coisas que giram e não lhe dizem mais nada, procuraste em falsos cânones a resolução do tempo errado, o tempo certo se apresenta e não sabes que decisão tomar, as portas se fecharam, não lembras de nenhuma prece, és todo caminho sem rédea, o desfecho se precipita à preguiça irrevogável de apenas e tão somente ser. É, sim, extremamente compreensível esse clichê antigo: a morte de mais um poeta. O que não se compreende muito bem – ah e com que força! – é a contradição representada pela sua perda, sem ao menos reconhecer sua presença. Porque o poeta será sempre essa contradição contínua, essa contramão da hipótese, vácuo a que se soma a palavra, que deserta sem se desculpar.

27.11.08

"um blue"

Então a música feita de fuligem se instalou provisoriamente por dentro das redomas do cérebro, e ele num piscar de olhos, muitos olhos em volta e por entre as moitas de calças arriadas, não estava mais ali, diante de máquinas feitas para não serem percebidas e sim eficientes na sua eficácia, mas ele não era de repente mais uma dessas máquinas e podia ouvir cordas, chocalhos grudados aos pés em choque violento com uma poesia analfabeta, a seqüência pulsante de que se precisa para suportar as esporas nas costas, o cavalo que suava pelas narinas, o povo de boca aberta, os pescoços vermelhos tilintando sob o sol, e ele não era mais máquina olhando para máquina apenas, havia na atmosfera algo que parecia espremer as existências para um canto sem oxigênio, havia o óleo quente e o cheiro de galinha frita, alguma risada desafinada e a lembrança de que somos todos feios em essência, de que, incompletos, arquejamos e esperamos ansiosamente pelo fim alheio, de que somos feitos de poeira cósmica e por isso devemos nos abraçar, unir os corpos feito elemento químico, e não era mais possível agora odiar a feiúra, negar a natureza como presente trabalhoso, sons muito agudos marcavam a chegada dos desajustados, a milenar cavalaria barroca, os traços de pele curtida rechaçada pelo sol com náusea, o gêiser de mil bocas abaixo da terra como que se mexendo, prestes a mudar de novo o quadro, e ali estamos todos em roda, não há mais porque falar em nada, somos a junção da existência e precisamos fazer seguir a ventoinha ceifadora, cacete falar em dicotomias mitológicas: bom-mau, bonito-feio, deus-diabo, estamos aqui e queremos tudo que não for diagnosticável, queremos a morte desprovida de sintoma, o toque de caixa exige que se preste atenção ao ritmo, as notas são pés negros que pulam do tiro que obriga a dançar – e de onde vocês acham que veio o reggae? – os pés sobre a brasa, a música primitiva dos homens sincréticos, dos negros fugitivos, a música dos contrabandistas de vinho barato, daqueles que recolhem tocos de cigarro do chão e, sempre elegantes, tiram o chapéu a quem passa, antes de lhe roubar a carteira, porque somos todos um pouco pedintes, rasgos ainda em sangue sensíveis ao artifício, por isso a música veloz, o murmúrio macambúzio por tragédias ancestrais, somos a música de após o maremoto, somos apóstolos vestidos com macacões sujos de graxa, mas isso por agora não é mais problema, chegue mais perto, não ligue para o cheiro forte, quanto à música, não se assuste, ela se torna mesmo mais rápida, assim, de um suingue como o coração ainda vivo, pegando fogo de repente no meio do ar, mas não perca o ponto, bata forte o pé no chão porque é música da terra, encha o peito de ar e sorria, pois pode ser a última vez – e será.

Então resta vestir o capuz, acomodar a corda em torno à garganta ressecada, as mãos impotentes não fazem mais acordes, estão trincadas uma na outra e delas agora escorre a seiva extinta, a música então desacelera, a paisagem fica por um instante esfacelada, todos fazem o sinal da cruz, mas deus sabe que chega a hora de cada um, e todos pensam: “mais um dia e não chegou minha vez” – a música pára somente quando não passa de um corpo dependurado.

25.11.08

"simples"

meu amor
é culpa das
noites banais
e das flores
encurvadas
por poderes
sobrenaturais:

alimentação
dura de paredes
inconstantes.

"esperando o metrô"

- O Tchekhov é o escritor que tem maior intimidade com a natureza.

- Que tipo de intimidade?

- Sexual.

“ladainha”

uma pessoa imbecil
que se comporta como uma pessoa imbecil
não passa de uma pessoa imbecil.

agora...

uma pessoa atenta
que se comporta como uma pessoa imbecil
para se infiltrar no mundo dos imbecis
pode ser o que bem quiser.

19.11.08

"o problema da comunicação"

verdade

- você diz sempre a verdade?
- de qualquer modo eu diria que sim.

gripe

- sempre que eu me gripo meu nariz fica um saco.
- engraçado, sempre que eu me gripo meu nariz continua um nariz.

frases

- há frases ridículas quando ditas aos vinte e poucos anos...
- esta, por exemplo?

"poema ridículo"

sou matéria pura
carne em chamas
inchaço de urina
sou matéria-prima
a boca na lama
o fruto proibido
da minha verdade.

não busco verdade
pois na busca dela
matamos a poesia.

um caminho para
onde não importa
a vida não passa
do caminho para
o nó sem aviso
que se perde quando
confiamos demais
na direção dos pés.

17.11.08

"uma trégua"

por favor não cuide
do seu amor, deixe-o
em paz, do contrário,
transformará em ódio
a pele de cor púrpura.
o que se cuida se mata,
pois abandone seu amor
sob chuva forte, pise,
e faça com que duvidem
de sua força, e queime
sua pele rara, arranque
seus olhos, então cego
ele não verá nada e só
depois ele não será mais
seu amor, ou de alguém:
ele será amor do mundo.

14.11.08

"longe do perdão"

é preciso dizer o que não se sabe.
é extremamente necessário sorrir,
equivocar a face longe do perdão.

a linha parece curta, mas o sangue é ralo.
melhor não pensar no que teria coalhado
e abraçar o refluxo, desinfetar a marcha,
como há milênios somos aos milhares viemos
exigir implorar em silêncio pela última antítese
que no fundo nos constrange e ao fim da conversa
já não sabemos se somos caetano, chico ou hitler.

e as letras minúsculas se proliferam sem aviso
e carregamos a marca dos milênios, irresolutos,
mas a resolução só está na cabeça de quem precisa
e a precisão está na mente de quem ignora o muito.

12.11.08

“whitman = pessoa + beckett”

Quero dizer e repetir e repetir e dizer mais uma vez. Que importam as convenções do tempo, a boca funda da esperança tardia? Quero partir os ossos antes que seja tarde, resgatar o brilho no fundo do que um dia se fez criança e hoje não lembra e se vira do avesso e morre, sente a pele descolar, os olhos repuxados pela goela do absurdo. Mas sinto qualquer coisa por dentro envergonhada do estertor, a caixa que pensa se compele, então uma sensação de algo súbito subindo pela garganta e que não pode sair porque são milênios de mentiras e precisamos das letras. Mas quero dizer e dizer e repetir. Repetir que não quero ter que dizer coisa nenhuma e repito. É necessário mais que uma forma, mais que um conteúdo, benzina, um precipício, é necessário acima de tudo o ímpeto desesperado de repetir e dizer mais uma vez e dizer de novo e mais alto, não gritar, lançar os olhos para fora das órbitas, espremer o mundo sobre a retina, repetir a tauromaquia da visão turva em vermelho, com o espeto no dorso, ainda assim derrubar os muros da arena, expulsar os vendilhões, ludibriar os sicofantas e, às crianças, sorvetes de marfim. Ah como eu queria poder dizer e repetir tantas e tantas vezes sem usar a substância do ar, não para me fazer entender apenas, mas para me entranhar da idéia de me entregar ao impulso sem ordem que move as coisas no espaço. Ah tão bom seria gritar cheio de veias “Daqui pra fora, políticos, literatos, comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs, tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida. O espírito que dá a vida neste momento sou EU!” Mas não me assusto se acordar sentindo um aperto no peito sem que se encontre uma boa explicação para isso. Às vezes ocorrem uns reacertos nos subterrâneos da nossa mente que não alcançamos, então é preciso soltar a linha, quebrar as portas à chave, é preciso esbravejar e fazer tudo com fome, nunca se esbaldar, do contrário, deixar a fome roer para então dar o bote, chegar à ponta do animal para resgatar o sentido do que fazemos ainda e não sabemos mais. Gritar mais alto e ser tudo que gera e alimenta e apodrece, ser ao mesmo tempo o padre e a catedral em chamas. Repetir e, quando o derrubarem, repetir outra vez. Negar-se qualquer causa em prol do sacrifício contínuo. Eis tudo o que deve ser feito diante da roda enorme. Errar ou não errar é apenas um detalhe. No jogo de corpos humanos vale bem mais o pulo.

10.11.08

"A boa vida segundo Hemingway"


Scott Fitzgerald veio me visitar. Ele estava hospedado no Ritz, como de costume. Sua filha pequena, Scotty, estava com ele. Enquanto conversávamos, ela disse que queria fazer xixi, mas, quando eu disse a Scott que o banheiro ficava no andar de baixo, ele disse à filha que o banheiro era muito longe e que ela fizesse ali mesmo, no corredor. O concierge observou o filete descendo escada abaixo e subiu para saber o que se passava. "Senhor", ele disse a Scott muito polidamente, "não seria mais confortável para a senhorita usar o banheiro?" Scott respondeu: "Volte para seu quarto miserável, concierge, ou então vou colocar sua cabeça na provada". Ele estava furioso. Voltou para meu quarto e rasgou o papel de parede, que era velho e começava a descascar. Implorei a ele que não fizesse aquilo, pois, como sempre, o pagamento de meu aluguel estava atrasado, mas ele estava nervoso demais para poder ouvir. O proprietário me fez pagar pela recolocação do papel no quarto todo. Mas Scott era meu amigo e, em nome da amizade, tolera-se muitas coisas.


***


Quando eu era jovem, nunca quis me casar, mas no momento em que desejei isso, nunca mais consegui ficar sem uma esposa. O mesmo se aplica a ter filhos. Nunca quis nenhum, mas depois que tive o primeiro, nunca mais quis ficar sem eles. No entanto, para ser um pai bem-sucedido, há uma regra absoluta: quando você tiver um filho, não olhe para ele durante os primeiros dois anos.


***


Conheci James Joyce em 1921 e convivi com ele até sua morte. Em Paris, ele estava sempre rodeado de amigos profissionais e sicofantas. Costumávamos ter debates que chegavam a ficar bastante acalorados e, mais cedo ou mais tarde, Joyce incluía na discussão algum insulto realmente ríspido; era um homem bom, porém desagradável, especialmente se alguém começasse a falar sobre o ato de escrever. Desagradável como o diabo, e, quando ele já tinha provocado um verdadeiro tumulto, repentinamente ia embora, esperando que eu lidasse com os sujeitos que vinham atrás, pedindo uma satisfação. Joyce era muito oruglhoso e muito rude - especialmente com imbecis. Ele realmente gostava de beber, e, naquelas noites em que eu o trazia de volta para casa após várias e prolongadas rodadas de bebidas, sua mulher, Nora, abria a porta e dizia: "Aí está, James Joyce, o autor, novamente bêbado com Ernest Hemingway". Ele tinha um medo mortal de relâmpagos.

7.11.08

“ofício”

Para falar a verdade, há qualquer coisa de fútil em somar palavras. O tipo inquieto, os olhos preguiçosos, e de nenhuma ocupação, alheio, pouca técnica e muito sentimento, intensidade, não podia ver uma chuva e achava que era comunhão com deus. Mas, bêbado, não havia deus. Era a própria afirmação da consciência do Senhor. Acima de tudo sentia-se amaldiçoado, um pouco como que se arrastando por uma trilha desastrosa. Perseguir o desastre, aí estava a grandeza. E, no caminho, descrever a paisagem. Os corpos caindo em torno, as cabeças soltas ainda gritando, os campos azuis, as paredes submersas, os cata-ventos em chamas e as harpas vermelhas. Daí o começo da morte, quando o corpo, mais complexo, não dava conta, e a vida tornava-se algo secreto. Doía o cenho manter os olhos injetados. A desculpa para o precipício era falta de força moral, talvez a perda da mãe muito cedo, o que atraía almas caridosas, logo massacradas por sua ferocidade juvenil. Pois que o corpo era continuação do raio, o sumo do prazer que deveria circular pela carne presente, constantemente em cada atitude o baque, o trocar o cerne, o ser antena parabólica, o ser deus e diabo, acender as velas e cuspir no chão. Perder a dicotomia: seu único pavor. E toda essa idéia patética consumia-lhe as veias. Não sabia ele que para ser o que teria sido era preciso receber os tomates, justificar a existência do homem através de demonstrações ridículas de toda espécie, ser o bêbado que se estapeia ou o palhaço que se molha, acima de tudo um microscópico ser, urgido na linha do tempo sem sentido, o ajudante de pedreiro quando as pedras são de Sísifo, o santo decaído porque não pode negar o pecado, o que se entranha sem fazer alarde e grita quando se apavora. Mas, para falar a verdade, há qualquer coisa de fútil em somar palavras.

6.11.08

"Pastoral" (Murilo Mendes)

Traze a sandália e o bordão para passearmos no campo
[sereno.

Somos contemporâneos de raças extintas,
Viemos de torres golpeadas e de hóstias profanadas.
Até que desçamos para os rios invisíveis
Convém dançar entre os humanos, comer o pão e o mel.
Os imortais nos aguardam nas esferas da música:
Muitos pássaros, muitas luas viajantes têm nostalgia de nós.
Esquadrilhas de mitos são enviadas para nos protegerem.
Hospedamos companheiros imprevistos,
O Máscara de Ferro, Nosferatu,
Ou então a Órfã do Castelo Negro.
As fontes esperam nosso sinal para murmurarem,
E os germes da peste se contêm ante a nossa benção.
Paz aos corpos insaciados de amor, aos membros genitais
[em delírio:

Suspendei de novo a gaiola dos anjos,
Voltem de novo os lírios do vale em lugar dos fuzis.

5.11.08

"fim"

nunca mais bonnie & clyde
a pele cinza, o dia doloroso,
não mais o passa-que-pego,
estamos sós, a lua pastosa.
imaginar o amor é poético,
amar é pôr a poesia em risco.