21.2.08

“orangotangos”

herdeiros da poesia enlatada e da urina impura,
colheremos o excremento das mentes inseguras.

engoliremos o escárnio dos anos em lusco-fusco.

as tradições tribalistas dos hinos de guerra e paz,
nós as criamos, todos, e estávamos desacordados.

não tente entender as convicções que ressoavam,
carinhosas como abutres sobre a carne entorpecida.

herdeiros da poesia sem olhos, tatearemos por trás,
navegaremos incertos, horizontes de mil naufrágios.
e talvez de nossos olhos, ao menos, pobres, os abutres
herdarão um resto magro de uma arte ancestral.

"Meu Amor Me Agarra & Geme & Treme & Chora & Mata" (Jards Macalé / Capinam)

Meu amor é um tigre de papel.
Range, ruge, morde
mas não passa de um tigre de papel.
numa sala ausente meu amor, presente.
me esconde entre os dentes
depois me abandona e vai... definitivamente.
definitivamente volta ilude, desilude,
range, ruge, rosna...
velho tiiigre de virtudes!
Nas Selvas De Seu Quarto Entre Florestas...
Cartas Frases Desesperadas (e) Lençóis...
Onde Me Ama.....................
Furiosas Garras,
Meu Amor Me Agarra & Geme & Treme & Chora & Mata!!!
Um Tigre De Papel... Perdido No Lençóis Da Casa.

“o não”

minha concepção acerca do fracasso
é tão simples quanto o fracasso em si.
não há uma razão pela qual temê-lo,
correr dele, açoitá-lo nu pelas ruas,
acusá-lo com desculpas descabidas.

as pessoas nascem para certas mortes;
e para certas pessoas, nascem mortes.
há que, antes de tudo, aceitar o fato.

o fracasso, não tente compreendê-lo.
por quanto não passa de alivio aos que,
por não saberem de nada, necessitam
seguir em frente, pois nada lhes resta
atrás do que não seja perfume do antes.

20.2.08

"Obrigado pela adorável lembrança..."

obrigado, Polvo, você é o amor; Manoel, gênio.


"Retrato de um artista quando coisa"

3

Há um cio vegetal na voz do artista.
Ele vai ter que envesgar seu idioma ao ponto
de alcançar o murmúrio das águas nas folhas
das árvores.
Não terá mais o condão de refletir sobre as
coisas.
Mas terá o condão de sê-las.
Não terá mais idéias: terá chuvas, tardes, ventos,
passarinhos...
Nos restos de comida onde as moscas governam
ele achará solidão.
Será arrancado de dentro dele pelas palavras
a torquês.
Sairá entorpecido de haver-se.
Sairá entorpecido de escuro.
Ver sambixuga entorpecida gorda pregada na
barriga do cavalo -
Vai o menino e fura de canivete a sambixuga:
Escorre sangue escuro do cavalo.
Palavra de um artista tem que escorrer
substantivo escuro dele.
Tem que chegar enferma de suas dores, de seus
limites, de suas derrotas.
Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de
enxergar no olho de uma garça os perfumes do
sol.

18.2.08

"Minutos antes do primeiro passo"

Sento-me de mãos vazias. Passo uma na outra. Continuam vazias. Olho para elas. Pasmo, passo uma na outra. Nada acontece. Aparentemente nada. Mas o que ainda podemos ver nas aparências? Levanto, sento, vou até a janela em passo acelerado, esperando ser de algum modo surpreendido. Faz um barulho surdo lá fora, constante, por dentro da terra. Sobre a terra nenhum carro, dilúvio, onça pintada. Volto a sentar-me. Essa frase ficaria bem melhor em Tchekhov. De qualquer maneira, ali estou, um rapazinho de estrutura média para baixa, ascendência quiçá siciliana, na língua das ruas conhecido como atarracado, muitas idéias sobre questão nenhuma, mas existe ternura, existe o apoio na terceira haste, existe a pérola submersa revestida em lodo. Há que se perder a respiração em apnéia. A que se nadar bem ao fundo até perder a consciência. Até afundar placidamente, deslizar como deus na superfície intacta, deslizar como Carlos. Formigas voadoras de repente invadem o quarto. Existe harmonia e destruição entre elas. Me pergunto por que não conseguimos. Tenho ganas de escrever. Isso ficaria talvez bom em Hemingway. É tarde demais, mas parece que em algum lugar ulterior as coisas ainda estão em choque e tudo está em aberto. De novo à janela. É inútil. As formigas voadoras desistem e partem. O desprezo das formigas voadoras é irrevogável. Sim, há em cada um de nós esse tempo longínquo, um futuro raso que quase podemos tocar. Ele se aproxima de nós nas noites não tão frias, nas quais os corações enregelados perdem seus álibis. As cadeiras, o pó sobre a escrivaninha, o antigo sapo de pelúcia, tudo está ali há milênios insondáveis, me observando mineralmente enquanto muda de forma. Os olhos cheios de areia. Dormir já não se pode. Isso daria um péssimo Beckett. Pego o lápis, encaro o papel. O papel é muito grande e minhas mãos doem.

“rock n’ roll suicide”

não suma, não desapareça,
faça um esforço por encontrar-se
(que não seja por ti, pelos outros),
seja aquilo que falam bem de ti,
seja verve inata, culpa em bronze.

tentei escutar o presente que me deste,
mas não ouvi nada – estarei surdo? não...
te amo pelo pequeno desenho: "Candy says",
muito legal, mas sou péssimo com adjetivos.

o que importa, poeta, é se cuidar um pelo outro.
o que importa é isso que escorre dos meus olhos
enquanto te escrevo e Jards Macalé canta na lua,
e ele diz que não sujará seus olhos vermelhos
– e sujaremos nós os nossos?

12.2.08

"Marta"

Seu nome era Marta, escritora de longos romances e ensaios filosóficos acerca da existência humana, Marta, que certamente lia livros policiais de capa cor de rosa, Marta-Dorothy Parker-Clarice Lispector, Marta quase Ana C., dava para se perceber, ninguém chamado Marta pode ser outra coisa se não escritora ou atleta. Ela poderia ser os dois, estava na pista onde alguns dançavam em ritmo blow-up, se agarrando lascivamente com um camarada um tanto duvidoso. Era óbvio que para ela não passava de um consolo, algo a que se apegar por uns minutos. Marta dos cabelos curtos, franja seca, Marta despercebida de todo o seu próprio mistério, Marta, o mistério despercebido e fulminante da pronuncia de “Marta”, escritora certamente de contos e poesias e ainda por cima uma entusiasta, de certo, da grande literatura, autora de livros infantis sobre a morbidez, Marta dos pés grandes, pés de Marta sobre o chão, cuidado, Marta, com o samba, com o chão nas tuas costas, escorregando... Apenas um deslize e Marta retorna placidamente à sua posição de vestido colorido costurado junto ao corpo, seda chinesa e botas envernizadas estilo Nancy Sinatra, óculos de lente, um deles rachado, três graus e meio de miopia, a dança do coito e sexo jamais, meu deus, Marta, por que fui chegar perto de ti, escritora suicida, premiada, Jabuti e o escambau, apenas para dizer duas ou três bobagens, e te chamar de Mara?

9.2.08

"digas também" (Paul Celan)

Digas também,
digas no fim,
digas teu dito.

Digas -
Mas não distingas o não do sim.
Dá também sentido ao teu dito:
dá-lhe a sombra.

Dá-lhe sombra bastante,
dá-lhe tanta
quanta vês ao redor repartida entre
meia-noite e meio-dia e meia-noite.

Olha em torno:
vê como tudo ressurge -
Na morte! Vivo!
Diz a verdade quem sombras diz.

Agora, porém, encolhe-se o lugar onde estás:
Para onde agora, dessombrado, para onde?
Sobe. Tateia em frente.
Tu te tornas mais franzino, irreconhecível,
[fino!

Mais fino: um fio,
em que ele quer descer, o astro:
para em baixo nadar, em baixo,
onde ele se vê cintilar: na ondulação
de palavras peregrinas.

5.2.08

“nascido em 1982”

nós viemos abortados
para recolher a culpa
de séculos não-vividos.

viemos encarnados,
faróis cegos, tulipas
ardentes, responder
pela dúvida com sangue.

encurralados seguimos,
se nos vêem, estamos,
se não, muda-se a pele,
veste a face outra roupa,
para seguirmos pálidos,
entre o susto e a epilepsia.

viemos hoje, ontem,
viemos antes, sempre,
estamos vindo ainda,
olhe para baixo e veja:
estamos nas dobras,
nossa cor carmesim,
chegue mais perto e toque
nosso fogo brando, e morra.

“canção para mulher alguma”

colírio nos olhos do além,
uma paixão violeta, vulgar,
dos dentes tortos, paixão
para algo como esperar pelo impossível.

uma paixão para dois, três, quatro,
paixão de pés não tão bonitos,
como já disse, dentes tortos,
suja de purpurina, firme, delicada,
já assim meio lasciva, embriagada,
aquela que pensou antes o que me excita.

paixão que me leva até perto das nuvens
paixão de cintura fina, do tamanho da minha mão,
que me larga de saia nas alturas, paixão violeta,
nem minha nem de ninguém: só dela mesma.

“erros mágicos – mesa para dois”

preciso da tua ajuda,
não de outra, da tua,
preciso saber da sina,
dos erros mágicos, esses
que nos corrompem
enquanto a negra onda
passa por mim e penso
nessa eterna magia negra
de dois sentados juntos
dividindo a mesma mesa,
ambos sedentos de ajuda,
de antigos erros mágicos,
falando sobre novos planos
para uma vida celofane,
esta que não permitiremos
– pela magia ou pelo erro.

"a questão"

se eu sou apenas antena,
paradeiro de milhares,
então quem me pode amar,
não eu sendo como sou,
mas tudo sendo como é?

“gambá sobre o fio de luz”

usar poucos olhares
e concentrar tudo que tiver
nesses poucos.

saber cortar fora os braços
quando eles pedem carona
para trás.

saber mudar de idéia
como curva que a cada milésimo
reconhece o que lhe pisa firme.

primeiramente reconhecer
o que somos porque nos faz mal
sermos o que nos disseram.

“uma trégua”

não permita mais que eu deixe
de ver essas ondas do mar
como os cílios de Deus
sobre a Terra.

ou os naufrágios dos homens
nos triângulos das bermudas
como A Tentativa Frustrada
dos homens de furar os olhos
de Deus.

"eureka"

é isso:
quando a pessoa
se conhece bem,
não precisa mais
tomar nenhuma
decisão. apenas
é, ponto.

"Camus"

se não haverá fatalmente
ninguém para contar a história
do fim do nosso mundo,
então surge a pergunta:
“por que motivo cultivá-la?”

3.2.08

"Noturno" (Mario Quintana)

Não sei por que, sorri de repente
E um gosto de estrela me veio na boca...
Eu penso em ti, em Deus, nas voltas inumeráveis que fazem os caminhos...
Em Deus, em ti, de novo...
Tua ternura tão simples...
Eu queria, não sei por que, sair correndo descalço pela noite imensa
E o vento da madrugada me encontraria morto junto de um arroio,
Com os cabelos e a fronte mergulhados na água límpida...
Mergulhados na água límpida, cantante e fresca de um arroio!